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Blogadas


 

Democracia verdadeira

ao Congresso da Cidadania - ruptura e revolução democrática

13/03/2015


 

Como, quanto e com quem? – o Rendimento Básico Incondicional

à polémica com FL 6/3/2015


Praxe e fascismo

Por ser frequentador assíduo do Estádio Universitário, em Lisboa, observo regular e distraidamente as práticas das praxes. Porque sou professor universitário, recordo-me de quando as praxes se começaram a impor às aulas. Primeiro durante uma semana. Depois por mais tempo. Paulatinamente foram aparecendo estudantes fardados nas aulas. As praxes foram proibidas dentro dos recintos universitários e passaram a praticar-se virtualmente todo o ano nas imediações das faculdades.

Grande gritaria, palavrões que baste, pinturas de guerra, marchas daqui para acolá. Dizem-me que é para integração social (todo o ano?). Com o caso das mortes no Meco fiquei a saber da constituição de uma hierarquia da praxe com códigos secretos publicados e uma tendência para o endurecimento do tratamento entre pares e junto dos caloiros, por ser essa a ideia dominante sobre o que seja a integração social. Era tanto mais integrado quem detivesse um lugar de poder, tão elevado quanto possível, numa hierarquia de excelência na aplicação de programas auto consentidos de violência gratuita, a pretexto de não haver nada de melhor para fazer. A dinâmica institucionalizada reclamava mínimos de integração para quem quiser participar em actividades como cantar ou tocar nas tunas académicas. E oferecia uma carreira de integração social feita de maus tratos auto infligidos e estimulados mutuamente por adoradores da hierarquia assim gerada.

Da discussão pública recordo a boçalidade alarve e ignara do Dux de Coimbra, levado à RTP ao programa Prós e Contras para representar as praxes directamente. Figura hierárquica máxima, terá eventualmente sido apresentado como demonstração de a hierarquia ser em si mesma a finalidade da praxe. Não interessa quem esteja a ocupar os lugares. Qualquer imbecil tem a mesma probabilidade de subir na hierarquia como outro qualquer.

O argumento único em defesa da praxe foi a liberdade. Liberdade de fazer o que quiser, como montar uma hierarquia, por muito imbecis que sejam a ideia e as pessoas que nela participam. Defendido por todos os dirigentes associativos presentes. Nenhum se declarou adepto da praxe e todos se limitaram, com a máxima ingenuidade que o dirigente associativo pode manifestar, defender a liberdade de expressão daqueles que ali, no debate público, não se manifestaram a não ser por figuras menores e anónimas.

É esta a formação política dos nossos jovens? É, sim. É a formação política que ensinamos em sociedade e também nas universidades.

A mesma irracional irresponsabilização aconteceu quando chegou a hora de assumir responsabilidades pelas mortes no Meco. A cobardia do Dux foi defendida por toda a hierarquia secreta. E a mentira foi o prato do dia. Para efeitos de defesa jurídica perante os apelos à instauração de acusações criminais contra o jovem sobrevivente da noite fatídica.

Tudo isto não pode deixar de fazer moça no prestígio daquelas actividades de integração social, a que Mariano Gago, com frontalidade de louvar, chamou fascistas. Infelizmente tal intervenção não suscitou um debate mais sério sobre – precisamente – o fascismo. O que foi e o que é. E o que é que a praxe terá a ver com o fascismo.

O fascismo poderá ser definido como um modelo de integração social hierarquizado com idolatria do chefe e em particular do chefe máximo, em que este raramente assume responsabilidades e jamais aceita ser escrutinado? Modelo de integração alegando vinculação a tradições populares eternas, ignaras e buçais imutáveis? Hierarquia controlada informalmente por eminências pardas – como a brigada do reumático ou os ultras – capazes de condicionar a acção dos dirigentes visíveis – como o Presidente do Conselho (de ministros) e o Presidente da República – portanto à margem dos regulamentos e leis alegadamente em vigor mas na prática escritas para inglês ver?

Pessoalmente odeio praxes. E apenas uma vez fui confrontado com isso, na minha juventude. Achei um abuso o que me fizeram, sabendo todos os abusadores perfeitamente que não aceitaria que mo fizessem. Não me esqueço do sorriso da autoridade (um adulto) que autorizou e incentivou o abuso: “Não custa nada! Vês?” Custa ser humilhado e lembrado da nossa impotência perante o mundo, a começar pela falta de solidariedade dos companheiros, neste caso desportivos. Uns imbecis aceitaram cumprir os desejos do chefe, não apenas praxando-se mutuamente como impondo a praxe a terceiros. Não aceitei. Fez-se. E não se falou mais nisso. Falo disso agora. Porque é a hora de voltar a recordar os tempos do fascismo já vivido. Para que nunca mais se volte a viver aquilo que alastra a olhos visto pela Europa: na Rússia, na Ucrânia, na Hungria, na Grécia, em França, no Reino Unido, na Holanda.

Ao passar pelo Estádio Universitário em Setembro de 2014, no ano seguinte ao caso das mortes de praxistas no mar do Meco, os grupos da praxe estavam sobretudo formados por gente fardada (menos caloiros que no ano anterior) e, mais importante, não havia gritaria: decoravam-se os versos de uma canção de cujos versos não me pareceu ouvir palavrões. Não se pode tirar um padrão de uma observação ou duas, num único dia. A praxe é hoje um negócio com estabelecimentos especializados na venda de produtos para a praxe aberto todo o ano. E os praxistas organizam actividades todo o ano. Com excepção das férias.

Junto da Faculdade de Direito um grupo de uns cinquenta fardados sentava-se à volta de um outro. De pé usava da palavra: “Que nos chamam cobardes, vá. Agora que nos falem de mortes? Isso é demais!”. O grupo respondeu em coro, como acontece nas igrejas: “Sim, chefe!”

Nunca tinha assistido a uma coisa assim. Será que voltarei a assistir? O jovem que falava continuava a falar no meio do grupo de adoradores … de quê? Das fardas? Da praxe? Do chefe? Do fascismo? Da cobardia? Da morte não eram adoradores, parece. Para já.

2014-09-16


Reconstruir a esperança

Pode ser impressão minha. Mas as notícias sobre os casos judiciais abertos contra corrupção estão a aumentar. Será isso uma boa notícia? Seria, caso a confiança nas instituições não estivesse abaixo da linha de água. Infelizmente o problema é mais fundo.

Portugal foi sempre um local de passagem para outras margens. Os primeiros reis foram cruzados em Al-Andaluz. Os Descobrimentos foram a expansão dessa Fé em nome da reposição do Império. O V Império foi e é a utopia possível para se conjugar com a lenda de D. Sebastião e as dependências impostas pela globalização, a cujos ventos o país sempre esteve sujeito. Politicamente congelado durante meio século sob o salazarismo, ao voltar a abrir as portas ao mundo Portugal, com o 25 de Abril de 1974, voltou a sentir o ar agitado da modernização. Encolheu-se (os demógrafos dizem a população envelheceu – aqui a minha homenagem ao Mário Leston Bandeira que faleceu no dia do trabalhador) e manteve-se das sociedades mais desiguais da Europa.

O meu pai recusou-se a fazer aquilo que o meu avô tinha feito com ele: mexer cordelinhos para arranjar um bom emprego para o filho. Era preciso combater o nepotismo, a discriminação e a corrupção. Estou seguro que muitos portugueses dessa geração fizeram o mesmo. Não por serem moralmente especiais. Mas porque foi assim que viveram esse tempo de esperança. Percebo hoje porque preferiu abandonar o país para trabalhar (por moto próprio). Foi tratado por parvo. Não que ele mo tenha dito. Admito até que não compreendeu o que se passou com ele. Eu mesmo só agora percebi o que aconteceu. Enquanto uns imaginaram mundos melhores, outros organizavam, com os pés assentes na terra, alguma maneira de subirem na vida, mascarando isso com serviço público e bem comum. Como então se dizia, “não é um mal as pessoas na política terem as suas ambições pessoais”.

Um porto, como é afinal Portugal, nunca foi, nem talvez possa algum dia vir a ser, um poço de virtudes. É, como todos sabem, um lugar de desenrasca. Em que cada um troca o que tem, sentindo-se sempre estrangeiro na sua terra – desde sempre foram os estrangeirados quem mandou no país, como continua a ser. Como mostram os inquéritos internacionais com grande clareza, os portugueses limitam-se a desconfiar de tudo e de todos,[1] sobretudo de si próprios. De que vale pensar e estabelecer regras (jurídicas ou morais) se tudo está sempre em grande mudança? Para ser verdadeiro, há que entender que esta versatilidade nacional é fomentada intencionalmente pela direcção do porto: primeiro pelo fascismo (o chamado obscurantismo) e depois pela democracia limitada que vivemos: a nível educativo (onde, apesar dos avanços, continuamos lanterna vermelha isolada), a nível cívico (com taxas de participação cívica igualmente destacadas no fim da linha), a nível judicial (onde se persegue quem sinalize problemas e, ao mesmo tempo, se rejubila pelo número limitado de queixas recebidas) e, necessariamente, a nível da transparência.

Não vale a pena esperar de fora as soluções que precisamos cá dentro. A vitória dos aliados na II Grande Guerra não apeou Salazar; a NATO não conteve o 25 de Abril; a troika não combateu as rendas monopolistas nem as inverdades políticas, que continuam manifestamente a campear. Porém não se pense que basta o povo unido – como esteve em 15 de Setembro de 2012.

Não será à justiça, ela própria corrompida por uma selectividade e incapacidade muito bem estudada, disfarçada de dureza para com os números obscenamente crescentes de prisioneiros pilha-galinhas, a quem devamos recorrer à procura de socorro para lutar contra a corrupção. Recorramos antes à memória dos nossos pais – aqueles que pensaram em aproveitar a revolução para serem melhores. Façamos justiça a todos os que foram derrotados pelo rolo compressor da modernização desertificante – do território, dos que assinalaram as perversidades do regime e do nosso ânimo. Transformemos essas derrotas em vitória.  3-5-2014


Requiem pelo 25 de Abril, em nome de uma nova esperança

Em homenagem ao 25 de Abril, há a reconhecer que a) os discursos oficiais contra o 25 de Abril inexistem; b) mas há muito quem se recuse a usar o cravo vermelho. O 25 de Abril para uns é um estado de espírito que pode ou não concretizar-se, aqui e acolá. Para outros, o 25 de Abril é um facto, ultrapassado por outros factos, como a descolonização, o 25 de Novembro, a entrada do FMI em Portugal, a entrada de Portugal na CEE, o fim da hegemonia da esquerda na política portuguesa.

A violência (guerra colonial e revolução, por exemplo) é um acto soberano raro (Collins) tabu de reequilíbrio pessoal e social, praticado sobre a capacidade de autodeterminação das pessoas adversárias, reduzindo-as ao corpo (abstraindo das suas mentes) (Reemptsa) com vista a libertar as mentes e as acções dos agressores.

O acto de violência visa estabelecer uma nova estrutura da conflitualidade  (Wieviroka) e tabus da gestão da instabilidade essencial à vida. Resulta de uma necessidade própria de um estado de excepção (Agamben) – por isso é raro e tabu. Transforma a situação a partir do princípio do primado à iniciativa – que define a soberania no tempo imediatamente subsequente. E coloca certas pessoas (de outro modo marginais, bandidos) em posições de poder – dentro e fora da sociedade, tutelando-a espiritual ou/e factualmente.

Totalitarismo ou despotismo é, do ponto de vista da nossa civilização, o poder que procura e/ou consegue confundir e misturar tutela espiritual e tutela factual – i.e. o poder de tornar ilegítimos e culposos os estados de espírito contra factuais em nome de um estado de espírito singular, como juiz da verdade factual em causa própria, reclamando para si o privilégio da iniciativa protegida da/por ameaça credível de violência e a inacção de todos os outros (monopólio estatal da violência, censura, repressão policial, encarceramento, tortura, mas também teoria social e seus tabus (Lahire)).

A violência mais vulgar – como mostram as actividades policiais e penais, por exemplo – toma por alvo, adversários ou inimigos os mais fracos entre os seres sociais. Como o fazem os predadores no topo da cadeia alimentar. Ainda mais excepcionalmente do que a violência vulgar ocorre a violência heróica, quando os alvos da violência são os mais fortes e poderosos, quais David face a Golias. Nessas situações a esperança dos povos de se transformarem de bandos em sociedades, de povos em Povos, de gentes em humanidade, pode emergir em espíritos de liberdade, igualdade, fraternidade, jamais plenamente concretizados. Por isso os heróis são tão perigosos e são tratados como seres sagrados, isto é, imediatamente traídos, antes que se tornem eles próprios traidores.

Mas a esperança é a última a morrer. Por isso vivemos, 40 anos depois, este período de luto. Até que alguma violência heróica sirva a desesperança com uma nova esperança, em estado nascente (Alberoni).                                             

2014-04-16  

 


Praxes e política

No mesmo dia que saiu um relatório da Comissão Europeia a dizer que o Estado português pouco tem feito para combater a corrupção, o programa Prós e Contras trouxe a debate as praxes académicas, salientando-se a posição “habilidosa” de um professor de direito que, sem nunca reconhecer as responsabilidades próprias – ao contrário do que fez o professor de psiquiatria explicitamente – dispersou culpas para as políticas governamentais e para a autorregulação dos abusadores organizados “livremente” para que não abusem demais.

Resumindo um debate pobre, ninguém esteve ali para explicar as violências expressamente impostas pelo código da praxe – muito bem trazida a debate pela jornalista Fernanda Câncio – ou as imagens das humilhações das praxes, trazidas pelo realizador de um documentário com o mesmo nome – que usa o seu trabalho para o combate anti-praxe. Mas esteve a representante de uma associação anti-praxe constituída há uma semana, isto é, já bem depois da exploração do escândalo das mortes de seis jovens em praxe na praia do Meco. Mais vale tarde do que nunca. E como estamos necessitados de compromissos destes. Obrigado,

O argumento a favor da praxe foi que ela é “informal”, não existe a não ser na cabeça de quem quer brincar às praxes, como forma de convívio – como o desporto, o teatro, os clubs de discussão. É claro, argumentou o presidente da AAC, que é uma coisa mais ao gosto popular, como a imbecilidade do Dux representante da praxe de Coimbra. Imbecilidade estudada, ou não fosse representante de estudantes. Os abusadores clandestinos que se escondem na hierarquia das praxes escudam-se na imbecilidade dos seus Dux e atrás, também, da conivência do direito e dos jotas, que usam “livremente” as associações de estudantes para se prepararem para a vidinha política.

As praxes, para os seus defensores, são as partes não criminalizáveis das praxes (o traje, as serenatas, a recepção aos caloiros, a procura de amizades), tal como as actividades legais dão cobertura aos abusos de poder, aos ilícitos, nos negócios ou na política. As praxes são uma vigarice organizada por irresponsáveis, a coberto dos poderes instituídos, para manifestar a superioridade natural dos superiores. Sejam eles os Dux ou os ricos ou a troika ou os políticos ou os representantes das associações académicas, todas, como se viu, fiéis ao seu eleitorado estudantil organizado.

São as jotas a preparar a integração nas sociedades secretas que, segundo alguns, dominam as instituições portuguesas, sobretudo as instituições judiciais. Como no futebol, vêm agora os defensores das praxes e dos abusos sexuais dizer-nos que quem é contra as praxes deve provar, caso a caso, cada crime cometido por membros isoláveis (e, em abstracto, condenáveis, e com direito a defesa). Como em teoria tudo o que seja condenável não é praxe, os juristas terão aí mais uma fileira de rendimentos por muitos anos.

Há duas formas de desmontar estes raciocínios: a) a apresentação de casos e mais casos de abusos nas praxes, como se propõe fazer, e muito bem, a associação anti-praxe representada no debate; b) impor às instituições universitárias um ambiente civilizado, anti-competitivo, anti-corrupção, anti-legalista, democrático, preocupado com a prevenção da violência, em particular de género. Ambos os raciocínios podem e devem articular-se. Criar um movimento de cura para os sobreviventes da praxe deve saber mobilizá-los, juntamente com outros sobreviventes, como os bolseiros da FCT ou os enfermeiros da linha Saúde 24 ou outros precários, para uma luta política mais geral, para uma sociedade nova que se está a construir em Portugal. E que convinha que não continuasse a ser protagonizada por sociedades secretas, corrupção mental e corrupção venal.

2014-02-04


As praxes - universidade do abuso

A abertura de um debate sobre as praxes e a canalização de informações e testemunhos sobre o aconteceu na praia da Meco (onde morreram seis jovens) e sobre o que aconteceu no passado (jovens assassinados cujos casos as instituições não deram importância; jovens abusados cujas súplicas foram levadas para a brincadeira e caladas, até que agora têm oportunidade de serem expostas) é de uma enorme relevância social: vivemos numa sociedade abusadora dos seus membros e estamos a tomar consciência disso, outra vez.

Da última vez, em Portugal, foi com a Casa Pia. Também nesse caso a comunicação social (apesar de amordaçada e sujeita a todas as vilezas) conduziu uma investigação que os órgãos de polícia e judiciais se recusaram a fazer antes. Assim como os educadores das crianças abandonadas e isoladas pela vida não só se tinham recusado a fazer como estavam até habituados a pensar que os abusos eram normais. Até porque alguns deles eram também praticantes de abusos sexuais às crianças e jovens. Descobriu-se então o mestre Américo, pregador no deserto durante anos, sem qualquer eco.

É, portanto, sintomático, que a par do escândalo das praxes, a ministra da justiça venha revelar a sua brutalidade ao propor para Portugal um programa de estímulo da estigmatização social contra alegados pedófilos, em vez de combater os abusos de poder – sejam sexuais de crianças, de facto os mais repugnantes, sejam os outros.

Nada a esperar desta classe política a não ser abusos de poder. Também ela entende serem tais abusos normais. Como bem sabemos. A proposta de retomar o caso Casa Pia para propor aos portugueses que se vinguem dos abusadores que sejam apanhados pela justiça (que não funciona) é uma forma de distrair o ódio que a classe política está a promover (contra si) juntos dos populares. Quando o que há a fazer é transformar esse ódio (justificado) em forças positivas de reconstrução de uma sociedade pervertida pela corrupção política e moral.

Propor aos portugueses uma lei cuja avaliação negativa está feita é um acto de perversidade. É mais uma proposta para abusar dos portugueses, num tema que o Estado ignorou enquanto pode e actualmente trata mal (seria preciso começar por discutir e avaliar os efeitos práticos da criminalização dos abusos sexuais).

Do mesmo modo, as praxes comportam uma dimensão de segredo (entre os praxistas contra os praxados, para lhes fazerem medo mas, sobretudo, para abusar dos mais frágeis de entre eles/elas), de alheamento das autoridades universitárias, de silenciamento das vítimas, de estigmatização do saber, do trabalho intelectual e da ciência, de cumplicidade da sociedade – que assiste e não sabe como actuar perante a estupidez dos “doutores”.

A ignorância sobre o que é a violência – monopolizada pelo Estado, em defesa dos seus próprios segredos – bem como a pragmática individualista dominante, são um dos pratos forte do ensino. Basta assistir ao desespero das escolas para lidarem com a violência das crianças (ignorando a violência da própria escola contra crianças discriminadas pelas suas origens sociais), o recurso às polícias e até a criminalização para “educar” os jovens. As praxes, prato forte das universidades portuguesas, começa a perceber-se, é uma forma de reconhecimento dos humilhados para reforçar a aceitação das humilhações e para a sua reprodução.

O que as escolas e as universidades ensinam é a tradição milenar da legitimidade de bater nas mulheres (e nos escravos) por parte dos seus donos. Por isso os pretextos sexuais foram banalizados (a começar na brejeirice e acabar no sadismo). Aproveitar a fragilização de algumas pessoas em certas circunstâncias para as humilhar de forma irreversível (está à vista pelos testemunhos os efeitos a longo prazo dessas humilhações, junto de centenas de estudantes ao longo dos últimos anos) e as apresentar, depois, como prova do poder dos abusadores. As praxes ensinam os prazeres envolvidos nos abusos, para os abusadores e para as vítimas. Integrados, como dizem, uns nos outros. “Amigos” para o resto da vida, como a heroína ou o jogo ficam “amigos” dos viciados para o resto da vida.

Uma política de prevenção da violência para evitar abusos sexuais de crianças e mulheres, manifestamente, não está ao alcance deste Estado abusador, dominado por uma classe política alheada e corrupta. Também não está ao alcance de um sistema judicial incapaz de servir as populações, tão empenhado que está em servir-se da “economia”. Os reitores, gestores ao serviço da economia política vigente e cúmplices, como a própria sociedade, dos abusadores, foram denunciados pela reitoria da UTAD, cuja política pró-praxe solidária conseguiu denunciar os abusos e dar a volta ao texto. Cabe aos movimentos anti-praxe, aos movimentos feministas anti-violência, aos novíssimos movimentos sociais que procuram reagir contra os abusos perpetrados pelo Estado a pretexto da dívida, aliarem-se entre si e organizarem políticas públicas de prevenção da violência, agindo na sua denúncia, na tomada de consciência da sua ubiquidade, tomando a iniciativa de apoiar as pessoas mais fragilizadas entre nós, em solidariedade, evitando criminalizações que apenas desviam as energias.

2014-02-03


Fundamentalismo penal

Um dos maiores fracassos do actual regime é, sem dúvida, o sistema judicial. Decretada oficialmente a crise da justiça, faz quinze anos, não há melhorias e adivinham-se pioras. A proposta de um registo público para pedófilos, avançada pela Ministra da Justiça, retoma a campanha de pânico moral lançada há vinte anos nos países anglófonos. Numa altura em que até a Wikipédia (http://en.wikipedia.org/wiki/Megan's_Law, em 2014-01-30) já descobriu que, em termos práticos, a avaliação feita dos resultados para o público e para as vítimas, em Nova Jérsia, foi zero. Portanto, trata-se de uma caça às bruxas perversamente organizada em nome da justiça e de um sistema político disfuncional.

O caso Casa Pia mostrou o alheamento dos agentes da justiça da defesa das vítimas, a cumplicidade das instituições do Estado com os abusadores – parece que faziam visitas guiadas ao jardim zoológica das criancinhas. O desinteresse político em cuidar do bem-estar das crianças à guarda do Estado revelou-se, também, noutras instituições de acolhimento, públicas e privadas, tuteladas pelo Estado (como de resto acontece com pessoas sem autonomia entregues a lares). Nas prisões portuguesas – isso é menos conhecido – a esmagadora maioria dos presos têm atrás de si uma história de abandono das famílias e de experiências de frequência de instituições de acolhimento impróprias e incapazes.

O público continua a confundir pedofilia com abuso sexual de crianças, que estão uma para a outra como o futebol escolar para o futebol profissional. Os pedófilos sentem atracção sexual por crianças, mas ninguém nem nada os obriga a abusarem de crianças. E muitos (não há quantificações conhecidas) não o fazem. Há abusadores sexuais de crianças que são pedófilos. Mas muitos (novamente, não conheço quantificações) não sentem atracção sexual por crianças: são apenas abusadores sexuais, pelo prazer de exercer o poder, como os estudantes das praxes que gostam de humilhar os “coloiros” e, sobretudo, as “caloiras”.

A pedofilia não é lepra, nem cancro, nem sida. Também não é uma orientação sexual. Não é crime. Crime é abusar de crianças, sexualmente e de outros modos, como o próprio Estado o faz, quando permite que crianças passem fome e vivam como pobres, antes sequer de terem possibilidade de tomar consciência do que é a vida (o que também ocorre com pessoas de idade ou com necessidades especiais).

Dito isto, o principal para combater o abuso sexual de crianças é conhecer o fenómeno (em vez de o esconder e evitar, como tem sido feito depois do acalmar do caso Casa Pia) e responsabilizar quem seja abusador, incluindo os seus cúmplices (como o Estado), comprometendo-os a mudarem de campo, isto é, a serem os abusadores e seus amigos a assumirem as despesas principais de mostrar à sociedade como será possível acabar com tais práticas miseráveis. Pela lei de Megan, já sabemos, não vamos lá.

Não precisamos de segredos de justiça por detrás de listas de bodes expiatórios, para uso de políticas desumanas, como as de abandono de crianças, idosos e todas as pessoas fragilizadas à sua sorte, num ambiente competitivo. Precisamos de assumir que são pessoas como nós que abusam de outras, não uma espécie à parte que podemos extinguir. No caso do abuso sexual de crianças, geralmente são abusadas em suas próprias casas, sobretudo quando os abusadores lhes são familiares, e as ameaçam para se calarem sob pena de castigos. Como a justiça faz com os abusadores, ao torná-los arguidos – sem resultados práticos para a prevenção dos abusos de novas crianças.

Os pedófilos não são monstros. Muitos deles nunca fizeram mal a ninguém. Nem todas as pessoas organizam a sua vida em função das fantasias sexuais. Os abusadores sexuais de crianças fazem coisas monstruosas. Não são os únicos seres humanos a tratarem como lixo outros seres humanos. Por exemplo, nas mãos dos peritos forenses e dos tribunais, as crianças abusadas e os seus curadores sofrem revitimações repetidas, ao terem de recordar detalhadamente o que lhes aconteceu, contando histórias inacreditáveis, sem que ninguém queira saber do sofrimento causado – incluindo o afecto e a preocupação da vítima relativamente ao destino do seu agressor (que pode ser o progenitor, amado apesar de tudo).

Se os abusadores forem recebidos como seres humanos, pode ser que mais alguns deles colaborem na luta para prevenir mais abusos sexuais. Há quem acredite (http://home.iscte-iul.pt/~apad/justica%20transformativa), por tem experiência de trabalho de terreno na prevenção dos abusos sexuais de crianças, serem eles – os ex-abusadores activos na luta contra os abusos actuais – a chave que permitirá encontrar a cura dessa epidemia, segundo o mesmo princípio que funciona com as vacinas.

Se tiverem razão, quando a justiça justiceira organiza a sua caça às bruxas, ao mesmo tempo, está a tornar mais improvável a colaboração dos abusadores na luta contra os abusos sexuais de crianças, mantendo ocultas as condições sociais que permitem que os abusos continuem a acontecer. A Lei de Megan não ofereceu resultados práticos. Mas pode muito bem ter sido uma ajuda para perpetuar as condições sociais e políticas para a continuação dos abusos sexuais de crianças. Como no combate ao uso das drogas, o fundamentalismo penal pode ser contraproducente para a protecção das futuras vítimas.

2014-01-30


Entre a ciência e as praxes

Sou tanto pela abolição das praxes como contra a sua proibição.

As praxes são um sintoma. Há que compreender a doença social que as faz emergir e reforçarem-se. Quando começaram, praticavam-se dentro das universidades e duravam poucas semanas. Hoje foram expulsas das universidades e duram todo o ano. São um contraponto expressivo à pasteurização instrumental das associações de estudantes para capturar jotas para a política, treinando-os a organizar bebedeiras colectivas – dentro das universidades. Qual dos sintomas, as praxes ou as jotas, é pior?

Nos tempos revolucionários em que fui estudante universitário nem se ouvia falar das praxes. Eram coisas do passado, que os estudantes afectos ao regime fascista (na verdade, estudantes que aceitavam a legitimidade política do Estado Novo) usavam para fazer a tropa, a obediência cega e hierárquica, dentro da universidade. Eram tempos em que o CDS, esperança política dos portugueses mais ligados ao regime deposto, se proponha acompanhar a marcha para o socialismo. Hoje, ao inverso, o Partido Comunista defende um capitalismo de mercado, contra os monopólios. Mudam-se os tempos e mudam-se as vontades.

Os prazeres de ser igual a todos os outros e indiferente às ideologias, à política, à solidariedade, têm sido usados pelo regime actual com o objectivo de tornar Portugal numa sociedade normal, indiferente aos destinos do país e do mundo. Quando era jovem assisti repetidas vezes a gente a gritar “agarra que é ladrão!”, pois qualquer transeunte suficientemente sólido ajudaria a parar a fuga para esclarecer se se tratava de um meliante ou não, ali. Olhávamos para a televisão, espantados, com a indiferença dos nova-iorquinos que passavam de lado perante alguém caído no chão: não se atreviam a perguntar se precisava da ajuda. Hoje em dia somos todos nova-iorquinos. Não foi um resultado que não desejássemos.

Foi uma cultura que transmitimos às novas gerações: trata da vidinha, que os nossos políticos tratam da nossa e da deles, à sombra de uma Europa connosco, como a tia do Brasil do tempo da comédia do cinema português. Transmitimos isso através das escolas e das universidades. Nomeadamente através da luta para dividir os educadores (assoberbados de trabalho, tempos de deslocação para o trabalho e burocracias) dos professores (postos a correr o país, numa instabilidade provocada, sujeitos a espartilhos programáticos e à impossibilidade prática de cumprirem com os requisitos da profissão, como ensinados nos estágios, em particular no que tange ao acompanhamento das vidas comunitárias dos alunos e a experiência da democracia). Através da subordinação da investigação científica a projectos orientados politicamente, por gestores científicos organizados pelo Estado. Através da esterilização da reacção das crianças e dos jovens à injustiça social e à incoerência das ideias: os estudantes de sociologia dizem-me, a sério, que os pobres são perigosos e a causa da pobreza é não saberem poupar. Os estudantes de economia aceitam que as técnicas de gestão são uma ciência, sobretudo no que tange ao despedimento de pessoal para emagrecimento das organizações.

Não é, evidentemente, um problema exclusivamente português. A nossa vacina anti-totalitária ainda parece ter efeitos no espectro partidário: mas a dos húngaros, dos gregos, dos franceses ou estava estragada ou já está fora de validade. A política de convergência europeia, sabemo-lo hoje, era converseta de ocasião, para satisfazer os vendedores dos produtos europeus em mercados controlados. Na primeira crise, a austeridade selectiva rouba ao Sul para dar ao Norte, segundo um sistema colonial já muito experimentado. E tal como os povos colonizados, os nossos dirigentes estão encantados com a sua vidinha de exploração dos compatriotas, enquanto estes cumprem a praxe. Chateados, é verdade. Mas incrédulos como o sistema tão bonito que os dispensava de pensar na vida colectiva pode estar a funcionar contra si, continuam a fazer o costume, esperançados na volta da tia rica.

É preciso deixar claro: só um povo crítico e informado é soberano. A prática nas praxes (e das jotas de todas as idades), bem como a dificuldade em criticá-las, são sintomas do mesmo mal que leva as reitorias a sentirem-se mais preocupadas em lidar com as praxes do que com a destruição da ciência levada a cabo por este governo.  

2014-01-30


A travessia do oceano

O principal problema epistemológico é o de capacitar o pensamento para aceitar a diversidade dialéctica, a instabilidade, como parte da natureza humana e não apenas como uma característica do cosmos. É preciso enfrentar o tabu axial de necessitarmos de algo exterior, como um Deus ou um Estado, para assegurar a legitimidade da nossa própria existência. Cada sociedade deve ser capaz de assegurar essa legitimidade a todos e cada um dos seus seres humanos, para o que precisa de se assegurar que nenhuma outra sociedade estará em condições de aproveitar da fraqueza do desarmamento bélico que tal política implica.

Uma das grandes lutas cognitivas tem sido a de ultrapassar a tensão/medo associada à morte e ao genocídio. As identidades forjam-se na referência dogmatizada a situações de alto risco que foram ultrapassadas e que devem ser a fonte de fé na continuidade da nossa existência, sistematicamente pensadas em contraste com o destino dos derrotados, não falados, tabu, de cuja existência se deve perder a memória, reforçando a perda dos genes, por terem sido ultrapassados pela evolução. (As autoridades pretenderem, desde sempre, libertar-se da “lei da morte” através de monumentos, sepulturas e da história dos grandes homens – sim, praticamente só homens).

As lutas pela memória e pela identidade dos genocidas são, naturalmente, lutas pela identidade dos herdeiros dessa memórias – sempre naturalmente selecionadas para transformar os genocidas em heróis – contrastantes com as experiências das vítimas e produtoras de segredos sociais capazes de credibilizar as memórias históricas.

O exemplo do povo judeu, cuja identidade se afirma actualmente na Palestina, é um caso evidente de luta pela memória, em nome da memória, com resultados genocidas, apesar de ter começado por ser uma tentativa de recuperar para as vítimas do Holocausto uma identidade frustrada. O ciclo genocida não foi interrompido – foi alargado. No caso dos negros assimilados em Portugal (10% dos lisboetas no século XVI eram de origem africana recente) não ficou identidade conhecida – no Alentejo fala-se dos negros do Sado, como exemplo dessa assimilação radical. Nos EUA, ao contrário, a identidade afro-americana emergiu do grande número dos escravos como das lutas de emancipação que foram capaz de organizar, resgatando – em parte – a memória de uma identidade de restos de povos alvo de genocídio amalgamados nas plantações, dependentes, para comunicarem entre si, dos instrumentos cognitivos dos esclavagistas que a todos comandam e a todos oprimem.

A fragilização ou epistemicídio dos povos originários, pelo menos no contexto norte-americano (isto é, ainda que os povos africanos de origem dos escravos possam ter continuado a existir), levou-os a uma orfandade identitária que era parte importante da condição escrava (e que faz a diferença para com os índios, que, mesmo brutalizados, se mantêm nas suas terras, capazes de reconstruir as suas redes sociais, mesmo depois do genocídio, como acontece quando reclamam as suas terras que lhes foram roubadas pelos colonizadores). Compreende-se melhor, assim, os movimentos de identificação dos negros com tradições intelectuais não africanas mas globais, como o islamismo ou o comunismo, capazes de lhes oferecerem uma plataforma de perenidade identitária anti-capitalista, contra a exploração, capaz de estabilizar a tensão/medo que a ausência de identidade naturalmente, necessariamente, provoca.

O que precisamos descobrir é o modo como ultrapassar a tensão/medo identitário sem recorrer, por nossa vez, a práticas genocidas para esse fim. Do comunismo não se pode aproveitar nem o materialismo nem o determinismo histórico, actualmente desacreditados pelas críticas ao positivismo e ao progresso, decorrentes da experiência histórica recente. Pode aproveitar-se a dialéctica, como a matemática sempre se aproveita, mesmo quando os cálculos estão errados. Neste cruzamento da civilização a espiritualidade, sobretudo a não organizada, em contraponto com o materialismo, emerge como uma potência pacificadora capaz de produzir identidades individuais susceptíveis de serem o sustentáculo das formas de transformação pessoal de que precisamos, cada um no seu ritmo e nos seus contextos. E o progresso ou desenvolvimento, claro, cada vez é mais evidente ser um beco sem saída, ecológico e social.

Perante a necessidade de diversificação epistémica – respeito pela diversidade de modos de viver – há que aproveitar as potencialidades de criação de identidades de base individual. Em vez de esperarmos por um novo Marx unificador de todas as lutas globais, devemos aceitar que as lutas contra qualquer injustiça são legítimas, e merecem a nossa solidariedade, na condição de serem capazes de evitar a síndrome genocida. Esse, sim, deve ser combatido por todos os aliados da transformação que eu aqui proponho. Mas tal combate deve ser feito na condição de, ainda assim, não se usar a síndrome genocida a pretexto de acabar com a sindrome: isto é, teremos de nos dar ao trabalho prioritário de seduzir os que não estão em condições de resistir à síndrome genocida para que possam recuperar para uma condição humana nova, livre do genocídio identitário, a que afinal todos teremos que chegar um dia. Assim o espero. Como escreve Alberto Acosta (2013) El Buén Vivir - Sumak Kawsay, una oportunidad para imaginar otros mundos, Barcelona, Icaria&Antrazyt, há epistemologías, como a dos indios dos Andes, que dão prioridade à harmonização (entre as pessoas e a natureza, entre os diferentes elementos da natureza e entre as pessoas) em vez da luta (para o que há que aprender a lutar).

Como disse Ruth W. Gilmore, trata-se de uma democracia abolicionista (gostei de ouvir, obrigado) em troca da actual democracia representativa. Trata-se de aprender a capitalizar o poder que emerge dos conflitos para capacitar as pessoas directamente envolvidas, em vez de exportar esse poder para instituições, nomeadamente através dos tribunais criminais, mas também, claro, através das empresas ou dos organismos privados ou de Estado. Trata-se também, ao contrário da ideia de Fidel de Castro sobre o barco de escravos que irá contra o iceberg a menos que a revolta ponha alguns dos revoltosos ao leme, de ser capaz de acreditar que o barco se pode transformar num submarino ou num avião ou será possível derreter o iceberg e, sobretudo, construir um poder novo, com lemes suficientes para todos poderem ter poder, anti-genocida e anti-securitário mas igualmente eficaz na dispersão da tensão/medo identitária natural nas pessoas, para que seja possível conviver em diversidade e em paz.

 2014-01-19 - para exercício de aplicação, notícia de S.Paulo


Atenas 5 anos depois

Em Atenas o que senti, comprando com a minha outra estadia em 2009, foi uma normalidade nas ruas (do centro) embora com mais policiamento e um bloqueio do acesso ao parlamento com uma fileira de grades policiais – apenas abertas para assistir ao render dos dois guardas que velam o corpo do soldado desconhecido. Pareceu-me também uma presença mais discreta dos imigrantes a vender nas ruas – confirmada pela informação do ataque à corrupção que está a ser conduzida pelo governo, neste caso contra a contrafacção e a economia paralela. Vê-se também muitas lojas fechadas e aconteceu que num jardim um homem passeava um cão muito simpático – em Atenas os cães e os gatos (gordos) são muito dados e sociáveis, parecendo transmitir o espírito democrático e sociável do povo. Perguntou-nos de onde erámos (metem conversa com toda a naturalidade e afabilidade) e explicou-nos (apesar de não ter ideia de Portugal – conhecia era Barcelona e províncias espanholas) estar desempregado há dois anos, depois de ter perdido um negócio de 200 mil euros (ar condicionado). Aparentava bom aspecto e nada depressivo. Mas apreensivo, evidentemente.

Tive oportunidade de falar com dois colegas, uma criminólogo de direita e um politólogo institucionalista (ele entende que a Grécia não tem muita escolha, para ser um país melhor, do que manter a aliança com a EU, face à situação entre os Balcãs e a Turquia ou, do outro lado do mar, o Egipto e Palestina).

A criminóloga explicou-me que a questão dos imigrantes na Grécia está minada pelos anti-fascistas que acusam todos os que apontam o problema de serem racistas. Mostrou como ruas inteiras, todas as lojas estão na posse de estrangeiros, sobretudo paquistaneses, e acusa-os de as usarem com fachada para actividades ilícitas (economia paralela ou crimes, não especificou). Pareceu-me haver uma distorção na sua conversa, talvez demasiado confusa entre crime e imigração, talvez devido ao facto do partido da Aurora Dourada ter visto seis dos seus parlamentares presos recentemente. Os dois primeiros por associação a um homicídio de um imigrante e outros quatro por associação criminosa. Mas ela não se referiu à situação política nem a esta situação em particular. Mostrou-se sobretudo preocupada com o terrorismo de estrema esquerda que disse ser desculpado por muitos colegas universitários e jornalistas e apoiado por activistas. Culpa o “sistema” pelo encobrimento da situação, por interesses conspirativos, que não foi capaz de explicar como funcionam.

Não falou da situação calamitosa nas prisões – reconhecida pelo governo, que procura soluções práticas para responder à necessidade de prestigiar o sistema prisional, à medida que ele está no centro de debates políticos (os parlamentares da Aurora Dourada ocupam uma ala só para eles na prisão de mulheres de Atenas e as mulheres acumulam-se em sobrelotação (24 num espaço de 40 metros quadrados) na única ala usada; um ex-terrorista escapou da cadeia de homens recentemente. O governo respondeu com a construção de uma cadeia de alta segurança para os ex-terroristas. E estes organizaram-se para contestar essa medida. Nas ruas, entretanto, as bombas junto de bancos e instituições estatais fazem-se ouvir, vindas destes sectores políticos, com pouco risco de acidentes pessoais mas inquietantes, claro). A confusão nas cadeias pode ser mostrada pelo episódio internacionalmente conhecido do helicóptero que poisou por duas vezes na cadeia para levar um preso “importante”, de foro criminal. Agora puseram em cima da prisão arame farpado para dissuadir o poiso de helicópteros. Não se falou de haver fome nas prisões, talvez por haver a possibilidade de entrada de alimentação do exterior, por parte das famílias.

O politólogo foi mais ponderado na sua apreciação da situação, nem sequer mencionando – a não ser a meu pedido – as situações que acabamos de referir. O problema dele é o centrão e as posições políticas de referência: a) tudo está a melhorar bastante (as receitas estão a aumentar, porque quem não pagava impostos – os exemplos que deu foi de profissões liberais – passaram a pagar – outro exemplo foi a repressão do trabalho não declarado, que levou para o sistema muitos trabalhadores antes na economia paralela e a luta da polícia contra o comércio de rua, por pressão dos pequenos lojistas em tempo de crise; falou também do ataque aos custos dos medicamentos). É a troika e o governo que defendem esta posição e que 2014 será o ano da recuperação; b) Para outros 27% de desemprego já destruiu muito do tecido social e será necessário mudar de política, nomeadamente recuperar lentamente os salários, que é o discurso de oposição, liderado pelo Syrisa. Ele próprio não vê com clareza o que se está a passar efectivamente, porque não há dados fiáveis sobre a actual situação altamente volúvel. Mas parece-lhe claro que a sociedade grega, através das suas redes familiares intensas de entreajuda, conseguiu proteger-se da miséria – embora haja mais pobreza e gente sem tecto, não acredita que sejam tantos como os 30 mil que a oposição anuncia. Como em Portugal, parece haver uma expectativa sobre esta nova “recuperação”, sendo certo que a desconfiança perante as boas intenções dos políticos nacionais e europeus está abalada definitivamente.

Do ponto de vista político há a assinalar a construção de um muro na Bulgária e na Grécia, nas fronteiras com a Turquia, para atacar o fluxo de Afegãos, Paquistaneses, Somalis e outros migrantes da África subsariana que utilizam os canais proporcionados pelos traficantes de pessoas para entrar na Europa. Aparentemente conseguiu estancar os movimentos, até porque a UE e o Frontex acordaram com a Turquia de modo a este país reprimir os tráficos de pessoas que existia na zona.

Do ponto de vista eleitoral prevê uma vitória clara do Syrisa nas Europeias, da Direita em segundo lugar e da Aurora Dourada em terceiro, sendo o PASOK relegado para pequeno partido, eventualmente atrás do PC, da Esquerda (não me lembro da designação correcta) ou do partido dos independentes (direita nacionalista, foi assim como o colega os classificou), sendo estes últimos os naturais aliados do Syrisa. Ambos são europeístas e contra as políticas de austeridade e da intervenção estrangeira na condução da política nacional. Este pequeno partido seria caracterizado socialmente por ser apoiado por gente qualificada ao serviço do estado e das empresas (talvez inquietados pela desqualificação das suas qualificações). A este respeito corre a ideia da fuga de profissionais altamente qualificados para fora da Grécia, mas a primeira colega levou a sério essa informação e o segundo colega – à falta de dados – acha que pode ser mais uma impressão do que uma realidade, porque a crise também atinge o norte da Europa e não há assim tantos lugares para posições altamente qualificadas quanto isso.

Na universidade, espera-se pela lista de despregados anunciada pelo governo para breve e os profs já perderam 40% do salário.

2014-01-17


Guerra política e científica no ISCTE

Os jornais, como ocorre frequentemente, cedem à versão normalizada de observar o que se passa. Chamam-lhe guerra jurídica nas eleições para a Reitoria do ISCTE e esperam poder colher um vencedor, após a próxima normalização do poder institucional, ignorando o que se passa.

Mais grave ainda é os próprios isctecas estarem na situação dos jornais e dos jornalistas. E contra isso me sentei a escrever estas linhas.

“Quem é ele?” perguntarão os que preferem jogos de xadrez a apre(e)nder e aprofundar ideias susceptíveis de conduzirem moral, eficaz e harmoniosamente a vida de cada um e de todos. Não posso evitar responder: sou iscteca desde 1980, do lado da sociologia. Do lado dos que não alinham com sindicatos de voto. E que, por isso, têm acesso limitado aos recursos imateriais da universidade – como, por exemplo, o estímulo organizado para ajudar a desenvolver projectos científicos. Nada menos e nada mais do que isso: alguém parcial que vive o ISCTE como a sua identidade profissional, e a quem o Reitor pediu para evitar usar o nome da instituição que dirige junto do seu nome pessoal. (O que não deixa de ser uma honra para mim, admitir que o meu nome pode ofuscar o de uma universidade inteira).

Do lado de onde vejo o problema e do ponto de vista em que me coloco ficou claro na campanha para a transformação em fundação-universidade (no tempo do governo anterior) que se tratava a) de politizar a gestão do ISCTE, pois os partidos em Portugal tem tido o exclusivo da organização política – por razões legais e culturais – e porque a sequência privilegiada da carreira universitária é servir os partidos; b) de excluir os critérios científicos dos debates de gestão universitária – burocratizando e disciplinando as cadeias de poder e, portanto, formalizando juridicamente as estruturas de liderança do que até então eram meros sindicatos de voto.

Podem dizer tratar-se de uma interpretação “radical”, “catastrofista”, “negativa”. Conheço a conversa faz muitos anos. Trata-se de reduzir o debate político (e científico) a questões de carácter ou de ideologia das pessoas individualmente tomadas e, desse modo, iludir o debate pela injecção de estigmas na corrente da ignara intrigalhada de corredores. É um problema “pessoal” ou de “mau feitio”, do mesmo modo que os abusos de poder são perdoados e escamoteados por os abusadores serem “gajos porreiros” ou dos “nossos”. Impenetrável. Irrespirável.

Na verdade a questão pode ser reduzida a coisas simples e claras: a campanha vencedora da eleição do Reitor centrou-se clara e explicitamente na ideia de que a democracia na organização das universidades era uma lógica espúria e que a democracia era tão só aplicável às instituições políticas. A maioria dos docentes votou “nisto”! E eu passei a ter necessidade de me distinguir de tal gente. Sim: sou do ISCTE e do departamento de sociologia. Mas eu sou pela democracia interna e pelo debate, sem os quais não há ciência. E o facto de os “cientistas” terem aceitado a exclusão da democracia e tardarem tanto a notar a falta de debate é mau sinal para a Ciência.

As contradições jurídicas são a forma através da qual a ciência está a ser torturada pela normalização política, neste caso no ISCTE. O que pode bem ser um espelho do País. Dirigentes abjectos seguidos por gentes amorfas. O que é lamentável quando o que era preciso para o nosso bem-estar e das próximas gerações era tudo o contrário.

Diz-se – e eu não concordo – que a política está dominada pelos interesses financeiros. Neste caso concreto é a universidade que transida, sem dúvida, pelo desrespeito dos contratos com o Estado (o que não é novidade – desde que me lembro, sempre foi assim nas relações do Estado com as Universidades, com excepção do consulado de Mariano Gago), cede nitidamente à politiquice. Arriscando o suicídio, como bem dizem os contestatários do reitor, dada a fragilidade moral de toda a situação em Portugal e, agora também, do ISCTE. Portanto, quem é o suicida? O reitor agarrado ao poder? Os seus ex-amigos na campanha contra a democracia interna e actuais detratores? Ou ambos?

Na minha perspectiva, o suicídio do ISCTE começou com as práticas de sindicatos de voto e de seguidismo científico – próprio de copistas e da escolástica – que reduziu o debate político e científico no ISCTE a lutas pelos poderes fácticos, no âmbito de uma elite auto-iluminada e controleira. O episódio da eleição do reitor é apenas a ponta do iceberg.

O ISCTE sempre viveu da cumplicidade contraditória entre a lógica pragmática e capitalista, protagonizada pela gestão, e a lógica científica e humanista, protagonizada pela sociologia, aliada a uma miríade de outras subdisciplinas, mais ou menos exóticas por não serem de fácil germinação nos meios universitários convencionais – sujeitos a forte processo de normalização que tem vingado nas últimas décadas. Estupidamente, os jovens turcos, como alguém lhes chamou, imaginando-se mais inteligentes que todos pelo facto de serem líderes carismáticos de sindicatos de voto, animados com a oportunidade oferecida pelo ministro Gago de tomarem o poder, pensaram fazer engenharia social: transformar o ISCTE numa universidade de investigação competitiva a nível mundial sob a sua direcção. Convencidos de terem sido eles a fazer o prestígio da instituição, entenderam poder dispensar os colegas de quem não gostam ou de quem discordam e perspectivar uma instituição purificada. (Qualquer gestor de recursos humanos diria ser tal intenção complicada de realizar. Sobretudo num sector onde os recursos humanos são o maior dos activos e o fruto a produzir tão impuro como o conhecimento).    

Romper o velho equilíbrio tácito e destacar a Escola de Gestão e a Escola de Sociologia como centros de interesses próprios e contraditórios, ocasionalmente aliados para subjugar o resto do ISCTE à luta de titãs gémeos bivitelinos, eis o erro político que irá destruir o ISCTE. Central, nesta discussão, é a noção de interdisciplinaridade. Para uns, é a possibilidade de os estudantes passearem de área científica em área científica, de acordo com a lógica de saberes à la carte própria de Bolonha – que é ideia predominante. Para outros, interdisciplinaridade é o respeito dos investigadores e docentes de cada área disciplinar pelos saberes, trabalhos e conhecimentos de outras áreas, nomeadamente reclamando a necessidade de interacção científica directa com especialistas nas áreas disciplinares relevantes para o trabalho de cada investigador inter ou transdisciplinar.

O ISCTE sempre teve como referência estratégica a sua potencial interdisciplinaridade. As críticas mais contundentes das avaliações produzidas, nacionais e internacionais, sempre foram a do alheamento entre as áreas disciplinares e subdisciplinares entre si. Dentro do ISCTE, quanto mais fora do ISCTE.

Os males já vêm de trás. São políticos e científicos. O facto de terem rebentado pelo lado jurídico só significa o desprezo profundo da actual situação (do pais e do ISCTE) pela democracia e pela colaboração entre disciplinas (profissionais ou universitárias), entre as quais o direito. Todos sabemos o estado em que está a justiça em Portugal…

2013-12-13


Nelson Mandela

Faleceu há poucos minutos um dos maiores vultos morais e políticos da história recente que foi também o prisioneiro número um na África de Sul e em todo o mundo. Vimo-lo sair da cadeia para uma casa sob residência fixa e depois sair em liberdade para oferecer o que ele sabia sobre isso ao povo que se constituiu em torno de si. A minha homenagem ao homem. 2013-12-06


Tortura filosófica

José Sócrates, purificado por um mestrado em Paris, aparece aos palavrões para vender o seu livro sobre confiança, ao lado de Lula da Silva e Mário Soares. Todos membros da esquerda possível (por azar, nos tempos que correm, aparentemente impossível, a não ser em filosofia da treta).

Não li o livro, mas terei que o ler em breve. Trata de tortura, o que calha no âmbito do meu estreito campo de intervenção. Escrevo agora para registar o valor dos meus actuais conhecimentos sobre o assunto e com base nas passagens da apresentação do livro que ouvi na televisão. Sinto-me capaz de fazer a crítica do que está escrito, sem perguntar em que dia da semana foram feitas as provas e sem querer saber sob que primeiro-ministro a deputada Ana Gomes questionou o governo de Portugal sobre a colaboração dada à CIA para transportar pessoas para serem torturadas em prisões secretas na Europa.

A filosofia da tortura falará da tortura feita sobre presos políticos, por distinção da outra feita sobre presos sociais. É o que se chamará filosofia política da tortura. Isso permite omitir a tortura praticada sob o governo Sócrates, em Portugal. Apenas porque essa tortura não foi reconhecida oficialmente, como ocorreu nos EUA. A tortura não reconhecida, nomeadamente aquela praticada regularmente nas prisões norte-americanas ou portuguesas contra pessoas previamente desqualificadas socialmente, essa tortura não é tortura. Pelo menos do ponto de vista da filosofia política do Sócrates. Essa tortura não é expressamente encomendada pelos políticos de serviço: é uma tortura que, do ponto de vista da disciplina filosófica do autor, servirá apenas para treinar e manter operacionais os torturadores para quando forem politicamente necessários – tentação a que um político democrata deverá resistir, para não concretizar o seu lado mais obscuro e maléfico, mesmo em tempos extremados.

Politicar, na expressão brasileira do Lula da Silva, será, em conclusão, a forma de recompor um qualquer aldrabão num esquerdista a filosofar, elevando-se assim da plebe e arrastando multidões agradecidas pelas prebendas democráticas distribuídas a seu tempo – coisa que lhes faz falta nestes tempos de comunhão com o resto da população nos dissabores da austeridade. Com Sócrates no poder, seriam maiores as oportunidades para as duas salas dos seus muitos amigos de passarem a ser eles – em vez dos da direita – a receberem os pagamentos pelos serviços prestados na venda do país aos interesses do capitalismo. Isso é que é a verdadeira tortura. Filosófica e de ciência política. Interdisciplinar, portanto.

Será o livro lançado por Sócrates capaz de me desmentir nalgum ponto? Se o for, pessoalmente retiro todos os outros pontos, mesmo o que manifestamente são verdadeiros.Lx, 24 Outubro 2013


Ovo da serpente

Jornalistas credenciados por serem ponderados e distanciados dos interesses em jogo têm escrito e enviado para publicação – efectivamente realizada – textos a mencionar o “fascismo” como palavra adequada ao comportamento induzido pelo governo. Nos media, nas instituições sociais. Mais recentemente dou-me conta de António Capucho a denunciar caça às bruxas não no PCP mas no PSD. De que é militante de primeira água e primeira hora. Caça nomeadamente aos que denunciaram práticas anti-democráticas levadas à prática e reiteradas no partido – o mais “aberto” do espectro político português.

A abertura do partido é histórica: no 16 de Abril ficou claro, para os apoiantes do regime fascista, a noção de que seria preciso virar a casaca. Nenhum dos partidos de então, incluindo os clandestinos e os mais radicais, estive imaculado quanto à infiltração de PIDES (ou terá sido ao inverso?). Mas o PSD parecia ser o preferido pela direita arrependida de ter apoiado quem perdia, na ocasião, mas ainda assim direita saudosa dos tempos de normalidade pré-revolucionária. (Ainda por estes dias o Salazar ganha concursos de prestígio e popularidade; e é fácil ouvir quem o queira ressuscitar para resolver a crise). Essa direita cobarde e dissimulada, pelos vistos, não se desvaneceu. Pelo contrário: estará no poder no PSD e no governo. A acreditar em jornalistas credenciados e em activistas bem conhecidos do PSD.

A democracia nunca soube defender-se dos totalitarismos, como se usava dizer nos anos 80. Este simulacro de democracia que temos ainda menos. Falta-lhe convicções e tomates. Foram todos para as indústrias de bens transacionáveis.

Temos os jotas que produzimos. Não são transacionáveis. São dispensáveis. Se para tal houver coragem popular.   Lx, 5 Out 2013


 

O capitalismo, a aristocracia e a crise

 


As prisões servem para ocultar a perversidade dos poderes


Por uma esquerda liberal dissidente – democracia, direito direito e virilidade feminina

O estado da esquerda portuguesa pode ser observado pelo manto pesado com que encobriu a expressão do pico das mobilizações populares, ocorrido a 15 de Setembro de 2012 – longe dos anseios populares. A mega manifestação ficou reconhecida oficialmente como expressão genuína do povo. Até o ministro Gaspar reconheceu. Nunca mais a esquerda voltou a olhar para tal acontecimento. Trata-o como trata todos os outros: desvalorizando a acção política popular.

1.       A esquerda ou é democrática ou não é de esquerda (é por isso que a esquerda está dividida: falta exigência de democracia em Portugal, tanto no arco do poder, como do lado da esquerda arredada do poder). Populista procura ser – está sempre disposta a fazer unidade sem princípios, desde que seja sob as suas palavras de ordem. Democrática é que não é: do lado da governabilidade, a esquerda faz o mesmo que a direita; do lado do arco da resistência, a esquerda procura abafar toda a liberdade de orientações políticas, abortando tanto quanto possa qualquer desenvolvimento de alternativas reais de poder.

2.       O direito ou é a estruturação institucional das garantias de possibilidade de lutar pacificamente, argumentadamente, pela verdade e pela justiça; ou é o nome dado à violação dos direitos humanos, a pretexto do qual são humilhados e aterrorizados os que se atrevem a denunciar os abusos de poder: isso não é direito, mas é muito praticado. Inclusive em Portugal.

3.       Face às actuais circunstâncias de degradação da democracia e das instituições judiciais apenas a dissidência política pode reclamar-se da esquerda liberal. Há que denunciar e romper com os esforços desenvolvidos para levar o povo a marrar com a nova “muralha de aço”, que são as instituições políticas em Portugal. Organização de marranço conduzida pelas oposições, que estão por todo o lado: na Presidência da República, no governo pelo CDS, no PSD em ruptura com o governo, no PS Dupont do PSD Dupond e pelo BE e PCP, todos ciosos e cooperantes na ocultação da revolta popular, porque ela não se exprime dentro das instituições e pode ser escamoteada pelos meios de comunicação social, paulatinamente substituídos pelas redes informáticas.

Dissidência significa romper com a direita e com a esquerda deste regime. Significa defender sistemas de promoção social do bem-estar e da igualdade viáveis, isto é, sem privilégios de funcionários e de corporações. É preciso ter presente, todavia que os inimigos principais são o capital global, corruptor e fora da lei, a classe política corrompida, cujos privilégios urge parar, e os media concentrados e aliados deste estado de coisas. 

A via bélica será uma saída catastrófica, e contra os interesses populares. Embora também seja a saída mais provável. Só uma mobilização profissional dos grandes contingentes de servidores dos serviços sociais – os empregados pelo estado e os independentes das ONGs nacionais e internacionais – nomeadamente professores, agentes de serviço social, pessoal de saúde, de forma autónoma, isto é, organizando-se a partir dos recursos do estado para realizarem na prática as funções sociais que o estado não quer cumprir e não vai querer cumprir nos próximos anos. Tal mobilização para a transformação anti-corporativa e solidária dos profissionais mais qualificados do país deverá ser feita ao serviço das populações, servindo-as, como seria o objectivo da contratação pública caso não se vive-se num estado corrompido.

Dissidência significa associar a verdadeira oposição, de direita e de esquerda, a um espaço de cooperação, solidariedade e organização com vista a um novo regime político, respeitador e promotor da democracia, do direito, onde a esquerda liberal possa ter um futuro como parte (que não é o caso do actual regime).

Uma das primeiras tarefas da esquerda liberal será, pois, encontrar e promover, à direita, interlocutores dissidentes autónomos apostados em defender a qualidade de vida dos povos.

Precisa-se da coragem viril para cuidar dos desorientados e desvalidos (que bem vistas as coisas, somos todos nós, neste momento), colaborando na sua (nossa) auto-sustentação, em liberdade.

2013-05-24


Notas sobre a necessidade de produzir uma constituição democrática para Portugal

A discussão da constituição pela sociedade civil deve ser organizada em função de um diagnóstico claro sobre as razões pelas quais se sente uma tal necessidade neste momento histórico, e não noutros momentos anteriores. Em particular para compreender quais sejam os passos necessários para tornar consequente uma tal discussão.

Este texto é uma contribuição para essa análise, de onde decorrem conclusões sobre as alterações constitucionais a propor e o tipo de processo político em que tais alterações poderão e deverão ser consideradas.

Iremos concluir pela necessidade da emergência de um processo constituinte, capaz de mobilizar e canalizar potencialidades democráticas das forças transformadores da sociedade portuguesa ante os riscos de subdesenvolvimento, no quadro de um sistema político fantoche sob protectorado, apoiado por forças imperiais que tomaram conta da União Europeia e pelos seus aliados locais, de que se destacam os partidos políticos e a hierarquia da Igreja Católica, e por reacções complacentes, à direita e à esquerda, para com práticas anti-democráticas (o que não augura nada de bom para o futuro). A prioridade deve ser evitar a degradação rápida do respeito dos direitos humanos já identificada em Portugal pelo Conselho da Europa, sobretudo no caso das crianças, dos velhos, das famílias monoparentais e dos não nacionais pobres. Bem como a crescente tendência para o recurso à violência como modo de vida e de expressão da frustração política. CONTINUA

1-1-2013


À espera do cataclismo político anunciado

 

A tarefa principal, parece-me a mim, é compreender que a questão não é o governo. É uma questão de regime e das suas parcerias internacionais que faz de Portugal um protectorado que apenas recentemente se revelou publicamente mas que foi construído paulatinamente durante as últimas décadas.
 
A forma actual de combater o estado de coisas, aquela que está à nossa mão (relativamente, claro) é denunciar a perversidade social do regime e dos nossos hábitos políticos de "deixar andar" e (pior do que isso) de procurar compromissos com as partes mais limpas do regime, como se não fosse o povo o soberano de jure (sim, é preciso sacudir com determinação o fascismo quer ficou em nós, em particular mas não só nos sistemas judiciais).
 
Para mim é tempo de atacar o Presidente que não está a cumprir a sua função única de garante do regular funcionamento das instituições - é ele, para começar - quem tem de sair. Pois está, para além do mais, a pôr em evidente risco a integridade física e existencial do povo (pela fome e pela disposição manifesta do Estado em recorrer a meios violentos e fraudulentos para conter as resistências contra a miséria punitiva anunciada).

26/12/2012


 

Nova época de revoluções, em honra do Deus-dinheiro

em Às Claras, Público


Perante a greve geral

Caros colegas e amigos,

Peço desculpa por vos interpelar mas sinto necessidade de me explicar e de vos explicar as razões do meu mal-estar neste dia de greve geral, para os efeitos que cada um entender por bem. Não aderi ao apelo para uma greve geral.

Também eu gostaria de que um governo qualquer me devolvesse os salários surripiados e confirmasse que afinal os contratos ainda valem em Portugal e na Europa dos dias de hoje. Mas isso não vai acontecer, pois não? Tenho todo o gosto em ombrear com os trabalhadores em luta pelos seus direitos e com aqueles que já não tem direitos. Mas não será isso que posso fazer nem na escola onde dou aulas (e que reclama dos seus alunos cada vez mais propinas e cada vez menos desejo de aprender) nem nas manifestações de rua, onde a separação entre dois tipos de trabalhadores é evidente – embora tenha a esperança de que todos se possam encontrar um dia nalgum ponto.

Não aderi à última greve geral e não aderi a esta. Não significa que isso tenha alguma importância, que esteja contra a greve ou contra todas as greves. Significa que nem a minha condição, nem a minha consciência, nem os meus desejos se adaptam ao abandono da actividade. E quero discutir isso com quem tenha disponibilidade e interesse em fazer essa discussão. Não aceito mais (ou melhor, cada vez aceito menos) enfileirar com desejos de exteriorização que escondem medos de questionar o que se passa mal no interior (de cada um de nós, das instituições onde trabalhamos e também do regime político que aqui nos trouxe).

Não sei se essa discussão vos interessa e por isso não a iniciarei aqui. Limitar-me-ei a pedir a vossa paciência por mais uns segundos apenas para me assegurar de que o meu sentimento e pensamento podem passar.

Um professor universitário com vínculo firme ao Estado, como é o meu caso, deve ser capaz de utilizar a sua liberdade legalmente assegurada para proteger a liberdade dos outros (e a sua). Não quando há greve, mas quotidianamente. Se for esse o caso, fazer greve significa suspender uma actividade livre – junto dos estudantes ou em processos de investigação – útil à sociedade. (O mesmo não diria se tivesse responsabilidades de gestão na universidade: teria de ponderar).

Na prática, corrijam-me se estou enganado, o regime jurídico em vigor obriga – no caso das actividades programadas pela universidade – a que elas sejam transferidas para outros dias (o que significa na prática um boicote ao princípio da greve e à possibilidade de os alunos fazerem greve). O que significa que a primeira condição para fazer greve neste sector deveria ser fazer reconhecer a greve como uma perda de função da universidade, o que não será o caso actualmente, se estou a ver bem a coisa.

O importante, para mim, é isto: se o meu trabalho está sob o meu controlo e para cumprir objectivos cívicos (sobretudo no aspecto cognitivo, já se vê) e se os meus adversários me impedem de trabalhar o mais que podem – precisamente por entenderem que aquilo que ensino e divulgo lhes é inconveniente de alguma maneira – porque razão haveria eu de fazer greve?

Por solidariedade, poderiam responder. Mas solidariedade em abstracto não me parece boa ideia. Parece-me mesmo uma péssima ideia. A solidariedade não é nem caridade (para com os que sofrem mais do que nós) nem uma justificação para estarmos quentinhos encostados uns aos outros, como judeus a caminho dos campos sem acreditar no que lhes está a acontecer. Numa escola que votou “democraticamente” o fim da democracia interna, com a experiência que tenho de trabalho sindical universitário sem vislumbre de respeito nem pelas pessoas nem pelos associados nem pelos estatutos, num ambiente universitário persecutório e num país que aceitou recorrentemente a democracia da mentira e da vigarice política, explicitamente tornada ritual desde o discurso da tanga, a solidariedade abstracta não chega. Ou melhor, parece ser apreciada por comentadores do regime e até banqueiros que chamam a atenção para o comportamento exemplar de quem organiza estas grandes manifestações populares – umas vezes nas ruas, outras vezes em casa.

Para encurtar razões: estou interessado em intervir de forma útil também na universidade, nos problemas internos da universidade – sim, porque as coisas hão-de mudar: dificilmente permanecerão na mesma. Para chamar os bois pelos nomes e não para cumprir programas corporativos. Dois exemplos simples e complicados, para começar: a) não é aceitável aulas de 3 horas nas licenciaturas, como se começou a fazer o ano passado por sistema, porque isso tem custos pedagógicos enormes apenas para facilitar o trabalho de planeamento das aulas e para benefício da agenda dos docentes. Alinhar nisso sem o denunciar é ser cúmplice de uma degradação das aprendizagens que não é benéfica para ninguém. Serve apenas a comodidade dos dirigentes e gestores do momento; b) não é admissível o controlo administrativo sobre a avaliação académica e profissional dos docentes, como está a acontecer, e vai ser mais claro em breve, utilizando a administração para mexer cordelinhos nos concursos e nas distribuições de serviço e na mobilização ou desmobilização de competências em função dos interesses dos apparatchiks.

Ambos estes assuntos podem ser tratados com muita evidência e constituir uma forma de mobilização conjunta de docentes e discentes. Escola pública é bem mas não é suficiente. Ela terá que ser de alta qualidade. Se quisermos nós próprios, cada um de nós, poder aspirar a tal.

O descarrilar da situação geral (e tb na nossa escola) parece-me evidente (ou será a degradação do meu olhar a ver-se ao espelho?). Vai durar anos até a normalidade voltar. Recordo que da última vez que a normalidade voltou eu preferiria que ela não tivesse voltado. Mas isso são águas passadas. Não sei se já é altura de tomarmos em mãos a democracia que nos falta. Mas se for o tempo, eu estarei disponível. Para receber apelos de adesão a rituais de manutenção do status quo, ainda que seja contra um perigoso governo de direita a soldo do estrangeiro, não me apetece.

14-11-2011


Não pode ensinar quem não sabe aprender

No dia dos defuntos, D. José Policarpo insistiu numa versão do “deixem-nos trabalhar” usado por Cavaco quando foi primeiro-ministro. Pensávamos que a questão religiosa estaria enterrada – e os vários comentadores, de dentro e de fora da Igreja, lá se foram esforçando por interpretar da melhor maneira as palavras do Patriarca, como se ele não se soubesse exprimir por si próprio – mas D. Policarpo decidiu retomar caminhos seguidos por quem está defunto. Quem foi incapaz de defender o Bispo do Porto do exílio imposto por Salazar – precisamente por se ter manifestado, inutilmente segundo dirá o actual Patriarca, se usar o mesmo critério para avaliar as manifestações. Foi incapaz de defender os activistas católicos da Capela do Rato, que também não foram eles quem formou o MFA.

Aliás, se D Policarpo fosse efectivamente contra as manifestações, o melhor que faria para ser coerente seria estar calado – como de resto está em alturas que alguns católicos prefeririam ouvi-lo, por exemplo para defender os direitos humanos onde possam estar a ser violados, sem que a justiça dos homens atente nisso. D. Policarpo, como deixou bem claro, sabe da utilidade das manifestações mais simples, como o uso da palavra por Sua Iminência. Usa-a para definir os seus inimigos, como se esses não fossem filhos de Deus (só porque presume que não vão a Fátima?).

 Portugal precisa de ajuda espiritual, sobretudo num momento tão grave da vida nacional como este que se vive. Mas são dispensáveis as apologias do sectarismo. É mau sinal – sobretudo para a Igreja – ser da boca do Patriarca de onde sai a primeira pedra.

 A César o que é de César, senhor Patriarca. Se quiser falar de democracia, seria melhor primeiro que a praticasse, como alto dirigente que é. Segundo que estudasse o que se diz que é, hoje, a democracia. Porque essa ideia de que a democracia é votar e não pensar mais nisso é de um cábula. Como se a perspectiva de estarmos a ser conduzidos para um empobrecimento definitivo por instituições banhadas por um lodaçal de corrupção não merecesse aos brandos costumes nenhum protesto.

Já reparou que a força do Estado é esmagadora com os fracos (veja os índices pré-modernos de participação cívica e política em Portugal) e mais leve que uma pena consigo e com todas as pessoas e entidades importantes? A Igreja e o senhor devem saber ao lado de quem vão estar num tempo de profundos litígios. A posição que está a tomar é para dentro do seu rebanho? Estará ele a tresmalhar-se? Ou é a maneira que encontrou para agradecer as benesses recebidas na Igreja deste governo de má memória – ainda em vida?

Não, senhor Patriarca! Como bem sabe, as manifestações populares e sectoriais ou de minorias são práticas eminentemente democráticas. Mesmo em ditadura, onde são proibidas, elas não deixam de se realizar, por serem uma necessidade existencial para qualquer sociedade. Nos países onde as manifestações católicas são proibidas, os católicos não deixam de se manifestar, como de resto é natural que aconteça com os partidários de qualquer fé, seja ela religiosa ou política. Define a democracia o reconhecimento do direito à auto-determinação das pessoas. Quer demarcar-se dessa definição? Define o anti-dogmatismo a capacidade de suspender a persecução dos interesses próprios, a vidinha como se usa dizer, e deixar-se surpreender com a persistente unidade, verdadeiramente enigmática, de quem se vem organizando para se manifestar, por exemplo no 12 de Março de 2011 e no 15 de Setembro último.

A democracia reduzida ao voto, de que o senhor fala, é extremamente perigosa, como o mostrou a eleição de Hitler. E insuficiente para a distinguir de uma ditadura, como o mostrou Salazar, que também organizou eleições.

 2011-11-02


Separar águas e fazer a barrela

Não sei se é possível discutir pelo email. Diria que não. Mas é possível reconhecer a existência de diferentes sensibilidades na abordagem ao crescente activismo na sociedade portuguesa. Mais do que "descobrir coisas" (que é um trabalho que nunca acaba) é sobretudo importante saber como trabalhar (ou não) em conjunto, apesar das diferentes sensibilidades.
Tradicionalmente, em Portugal, reclama-se imenso por haver quem tome posições de forma "brutal". Há até aquela frase "assim perdes toda a razão". Quase 40 anos após a derrota da ditadura, a reacção censória do Estado Novo contra os excessos de linguagem da Primeira República (ao tempo acompanhados de bengaladas) mantém-se viva no subconsciente de muitos dos portugueses. A ideia liberal de liberdade de expressão quem a defende? A bem dizer nem os media nem os tribunais.
Como foi possível resistir tal tique em várias décadas de democracia?
Hoje é evidente que a democracia que aprendemos tem menos democracia do que aquela que precisamos exactamente neste momento crítico. E se queremos acompanhar o desejo de "Democracia Verdadeira!" teremos de lutar por ela. Isto é enfrentar a bófia que nos quer impor limites em nome dos "gatunos", mas enfrentar também os nossos próprios tiques autoritários inconscientes, de que nos temos de desfazer se quisermos ter esperança de construir uma democracia a seguir à queda anunciada do actual regime.
Compreendo o ressentimento de quem se voluntariou quanto à crítica de deriva da mensagem da intervenção das pessoas da cultura na Praça de Espanha. Pessoalmente achei a ideia boa e a jornada importante, pelo potencial de mobilização dos criativos para o lado da revolta. Mas também compreendo as críticas daqueles, como eu, que entendem que este regime não tem remédio (estão todos envolvidos nos mesmos caldinhos de classe - a chamada classe política - e com ela em cima não vamos longe, como se está a ver). O António Costa tem um largo currículo de malvadezes, tb contra a cultura - como o envio da polícia para despejar ilegalmente os Okupas de S. Lázaro, não há muitas semanas. O homem foi ministro da justiça e da administração interna e nunca reparou que não vivemos num estado de direito. Não é bom aliado para mudar o regime. É um excelente e poderoso aliado para manter o regime e adiar a possibilidade de democracia em Portugal.
Em resumo: há quem queira deitar abaixo o governo, substituindo-o por outro (presidencial para uns, de esquerda para outros). E há quem lute por uma democracia que deixou sequer de existir na imaginação do povo. Nesta fase da vida portuguesa a confusão que se estabelece entre estas duas orientações é grande. A ultrapassagem desta confusão é o fundamental das coisas que há a descobrir actualmente.
Uma qualquer organização que se forme nesta convulsão social irá, por certo, confrontar-se com esta alternativa. Não notar que ela existe não ajuda a caminhar na direcção da democracia. Trabalharmos todos juntos - os que querem juntar-se ao sistema e os que o querem substituir por outro - serve o sistema, cuja inércia é grande. É, pois, natural que os gritos do parto da sociedade nova que pode estar a surgir sejam desagradáveis. São mesmo acusadores da nossa colaboração colectiva na farsa que agora nos caiu em cima (todos sabíamos os descaminhos dos dinheiros europeus e não organizámos nenhuma contestação moral a favor da racionalização e do controlo dos dinheiros públicos. Como no tempo do fascismo, fora os lutadores anti-fascistas, mal vistos pela sociedade de então, a generalidade dos portugueses não levantou ondas). Tais gritos desagradáveis de esperança são muito melhores do que os gritos de desespero que alimentam os fascismos por essa Europa fora (Hungria, Grécia pelo menos). E também são melhores que os queixumes contra os debates de ideias (nem sempre bem organizados ou clarificadores).
Por mim, por razões de sanidade mental, auto-declarei-me, para consumo próprio, dissidente deste regime faz uns meses. Sou do contra. A esquerda e à direita. De cada vez que ouço gritos a favor de uma democratização radical fico contente. Sei da dor que isso provoca naqueles que ainda esperam, apesar das evidências, que tudo não tenha passado de um pesadelo e um dia poderemos voltar àquilo que foi antes. É a dor do divórcio. Precisamente a mesma. A dor das pessoas abusadas e violadas que amam os seus abusadores e violadores. É verdade. Vamos ter que fazer o luto. Vamos ter que aprender a sermos outras pessoas e a viver de outro modo, seja como membros de um povo colonizado seja como membros de um povo revoltoso, em nome da sua nova identidade (fascista ou, de preferência, democrática. Esta última, das duas, é a única incompatível com a colonização).
Fingir que esta democracia ainda funciona, como faz o Cavaco, como fazem todos partidos, dentro fora do parlamento, como faz a IAC e o CDA (às vezes a CGTP parece colocar-se fora desta sensibilidade, quando ameaça que "ou vai a bem ou vai a mal", mas sabendo o que sei imagino que isso seja apenas uma forma de satisfazer a sensibilidade dos trabalhadores sindicalizados que já perceberam que isto não pode durar muito mais) parece-me ser meter a cabeça debaixo da areia e uma recusa por parte dessas organizações de assumirem a defesa da democracia contra o sistema cleptocrático que nos domina. Mas o polvo não se irá embora de livre vontade, nem com palmadinhas nas costas, nem com eleições. Terá que ser identificado, apontado a dedo e substituído por máquinas de luta contra isso que for identificado.

2012-10-21


 

Nova versão do MDP, mas para defesa de um regime caduco

Senti o anúncio do Congresso Democrático das Alternativas como uma oportunidade de firmar aquilo que faz alguns meses me parece necessário: uma afirmação de disponibilidade de pessoas capazes de conduzirem o povo português para fora desta democracia decadente em nome de uma democracia em devir, que assim poderia vir a emergir mais segura e rapidamente, logo que fosse oportuno.

Não sou distraído e conheço algumas pessoas e práticas de organização bem pouco democráticas à esquerda. O que não conheci foi outra oportunidade, agora, numa ocasião de verdadeiro sufoco, de ver surgir uma esperança.

Lembro-me muito bem das recomendações das manifestações da revolução dos cravos (“Nem fascismo, nem social fascismo”), mas entretanto muita água passou por de baixo das pontes. Lembro-me também do ódio popular às sociedades secretas, associadas à corrupção e à construção de uma classe política lacaia do capital, conhecidas pelos nomes genéricos de Opus Dei e Maçonaria, versões democráticas dos velhos fascismo e social-fascismo.

Não confio na cultura democrática muito vigarista, aldrabona e descarada criada pelo regime decadente em que vivemos, e que a todos afecta. Mas confio nas pessoas e na sua extraordinária capacidade de se recriarem, de se transformarem, de se produzirem de novo em função de novas circunstâncias (sem o que não haverá esperança). É o que se costuma dizer: somos uma espécie inteligente. Por isso alguma coisa de extraordinário há-de ter de acontecer para que a vida continue a ser possível de ser vivida e isso pode acontecer a qualquer altura e com os actores mais insuspeitos.

Tomei a decisão de colaborar no congresso. Para onde enviei duas contribuições, uma a título individual e outra subscrita em conjunto com outros dois companheiros. Nenhuma foi publicada no lugar onde “todas” as contribuições foram expostas.

Não gostei. Mas não me tenho em tanta consideração que tenha feito a minha decisão de não participar no congresso ao vivo por causa disso. O que me impediu de ir ao congresso para que me inscrevera foi a mentira descarada sobre a qual tudo estava montado. Isso tornou-se claro pelas incoerências entre os documentos, entre os discursos e as práticas.

Congresso Democrático ou é de esquerdas (versão esquerdista da velha Aliança Democrática que registou no tempo de Sá Carneiro a exclusão do PCP do arco do poder) ou é mais abrangente (como eu preferiria que fosse). Sobre o assunto não há nenhuma clareza. A obscuridade é a regra. Mas tudo está muito bem implícito: ser de esquerda tem um significado muito restritivo e ser democrático é estar a par de um tal segredo.

O Congresso diz-se das Alternativas mas a única alternativa disponível é a da unidade eleitoral das esquerdas no quadro de eleições antecipadas: um projecto de tomada do poder, sem contestar o regime caduco que servirá, julgam os organizadores, para impor um programa de nacionalizações e da submissão da economia (global?) aos ditames dos novos candidatos a apparatchik.

O Congresso melhor seria chamado de para a unidade da esquerda (no singular), que não é perspectiva viável ou aceitável.

A eventual censura ao meu nome ou aos meus textos tornam apenas mais claro a meus olhos, por um lado, a perversidade dos métodos de certos democratas e, por outro lado, a natureza dúbia dos discursos em que as amplas alianças se fazem em cima de princípios estreitos pré fabricados, com as participações selecionadas ad homina e numa democracia aprofundada excludente afinal de quem esteja à direita (ou demasiado à esquerda). Continuam a defesa da linha justa por gente que nunca tem dúvidas e raramente se engana. Ou pelo menos não discute sem ter a certeza de ganhar, como no caso da banca do casino.

Não são especuladores de bolsa: são candidatos a substituir a classe política serventuária da oligarquia actualmente dominante por uma nomenklatura toda-poderosa, em detrimento de qualquer reacção que possa haver para emancipar as populações dos seus exploradores.

Claro que não tenho nenhuma solução na manga. Tenho apenas convicções (como o da urgente necessidade de organizar uma transição democracia-democracia e evitar derivas fascizantes que estão a emergir por vários lados). Organizar a democracia implica compromissos democráticos à esquerda, claro, e com as direitas. Desde que sejam contra os fascizantes e contra o regime actual decadente e corrupto, a meu ver sem remédio. A defesa da constituição actual é apenas um pretexto para esconder o conservadorismo do congresso – digo esconder porque uma declaração de defesa da constituição, numa altura em que declaradamente ninguém a respeita, nem o Tribunal Constitucional, deveria ser enfatizada, dada a sua importância para quem queira participar, em vez de aparecer em tom definitivo na proposta de declaração do congresso, no meio de muita outra declaração.

Eis uma explicação breve para este momento de hesitação da minha parte. Acho que devo contribuir para um futuro melhor para todos. Mas não o poderei fazer através deste congresso. Não dou para os donos da política.

5/10/2012


Organizar a dissidência

As manifestações de 15 de Setembro de 2012 tornaram claro o divórcio do povo relativamente às instituições democráticas. Desorganizado, ainda assim manifestou pujante a sua dignidade, independentemente das opções políticas de cada um.

Seremos dignos de propor ao povo português novas instituições? Sem as quais o divórcio escorregará necessariamente para a violência política?

A globalização tornou a liberdade de circulação dos trabalhadores um acto criminoso, e o branqueamento de capitais impune. Como na Idade Média, os caminhos para além das portagens de fronteira estão reservados aos aristocratas. À plebe está reservada a servidão na sua própria terra.

As instituições democráticas foram tomadas pelo caruncho: apesar da sua forma perfeita destilam poder oligárquico, capaz de se mobilizar para dirimir defensivamente assuntos caseiros – como o caso Casa Pia, as suspeitas de corrupção ou as fraudes universitárias – enquanto importam dos centros de poder europeus ou norte-americanos as ordens de guerra contra os povos, muçulmanos ou cristãos, como os gregos ou os portugueses.

Não há insecticida capaz de acabar com a praga, pois os tecnocratas ao serviço da globalização caem de pára-quedas dourados onde os mandam ir. É preciso levantar o soalho e montar um novo.

Não há programa político que possa ser útil quando as instituições estão tomadas pelo bicho. Primeiro será indispensável refundar a democracia em termos úteis para o povo. Precisamos de um programa mobilizador de energias, como a unidade da dissidência contra o regime decadente que se recusa a demitir. É isso que quer dizer precisamos de um outro 25 de Abril. Derrotado o regime é preciso montar novas instituições democráticas saudáveis.

19-9-2012


Resgatar os Direitos Humanos nas prisões,

para uma Democracia decente 

É preciso resgatar Portugal da opressão. Em tempos de ditadura da dívida, não só as condições económicas e sociais se agravam profundamente como todas as opressões e desigualdades se acentuam. Não há resgate por um futuro decente sem colocar os Direitos Humanos no centro do debate político das alternativas. Não há meios Direitos Humanos como não há meias democracia.

Falar de Direitos Humanos é, na melhor das hipóteses, falar de boas intenções. Falar de prisões é falar de más intenções. De tratamentos degradantes ou mesmo torturas infligidas para satisfação dos sentimentos de vingança e frustrações descarregadas em quem é indefeso.

Recentemente o tema das prisões voltou a ter visibilidade. Como é óbvio, pelos piores motivos: prisões sobrelotadas, condições de alimentação e higiene degradantes, corrupção, violência e tortura. Estima-se (à falta de números oficiais) que 50% dos presos são filhos de pais que estiveram presos, 60% estão na cadeia pela segunda vez ou mais, 75% foram internados pela primeira vez em instituições juvenis – sem cometerem crimes – antes da idade de entrarem para a prisão.

A política, no sentido nobre da palavra, tem de assumir que os direitos humanos são indivisíveis. O que se passa nas prisões portuguesas é vergonhoso e as piores práticas tendem, em alturas de autoritarismo político e de crescente desigualdade social, a reproduzirem-se muito mais frequentemente, e a agravarem-se. No plano económico como no plano judicial e penal. O que se passa nas prisões é parte da política de desprezo pela cidadania e pela dignidade das pessoas. É parte da política de empobrecimento levada  a cabo em Portugal.

Pensar alternativas democráticas passa também por pensar formas de respeito e promoção dos Direitos Humanos. Nos campos económico, judicial e penal.

Dadas as actuais circunstâncias – nomeadamente o alienação da política relativamente à justiça – o campo da execução penal e das políticas criminais deve deixar de ser posto debaixo do tapete e merecer, como é democrático, uma atenção elevada, politicamente empenhada. Não é admissível ser necessário uma década (como o foi) para erradicar os baldes higiénicos ou para instalar salas de chuto por mera oposição corporativa a tais políticas. Não é admissível a opacidade agravada com o obscurantismo organizado por falsas explicações e incapacidade inspectiva das entidades competentes, sem reacção das tutelas políticas, no governo e na Assembleia da República. Não é admissível que a legislação produzida com vista a oferecer aos reclusos garantias de produção de queixas contra eventuais abusos seja contrariada pelas autoridades locais e, na prática, se tenha tornado um impedimento aos processos de flexibilização de penas, que somam mais tempo ao já 3 vezes maior tempo médio de reclusão que a média europeia.

A introdução de tutelas democráticas nos meios prisionais passa por políticas integradas de transparência das práticas prisionais, com incidência, por exemplo, em:

  1. a produção de estatísticas adequadas ao conhecimento dos percursos institucionais, sociais e de saúde dos detidos – e não só estatísticas para gestão do sistema;
  2. a substituição das políticas de crescente endurecimento dos regimes penais – de que é exemplo a cadeia de Monsanto, cujas práticas foram importadas dos EUA em má hora – por políticas de crescente flexibilização de penas e de abertura ao exterior, interpretando a lei de forma menos criativa, isto é, levando à letra a prioridade à reintegração social dos reclusos e abandonando o objectivo da degradação punitiva (não previsto na lei), em particular desenvolvendo tanto quanto possível os regimes abertos e, desse modo, através da abertura à concorrência dos mercados internos aos estabelecimentos prisionais, aliviando a situação de sequestro em que vivem as autoridades prisionais dentro das suas próprias prisões;
  3. o desenvolvimento de políticas de acesso de voluntários às cadeias, sem obrigar a compromissos de informação prévia ou posterior seja de que natureza for, admitindo inclusivamente visitas com o objectivo de prevenção da tortura por parte de entidades independentes vocacionadas para o efeito, conforme está previsto ser organizado, assim Portugal ratifique o Protocolo Adicional à Convenção da ONU contra a tortura;
  4. o proporcionar e organizar as políticas prisionais em função de debates aprofundados entre os interessados, cujo diálogo deve ser promovido activamente (por exemplo, através de fins-de-semana de imersão) em que presos e guardas, directores e técnicos de reinserção, jornalistas e universitários, activistas e políticos, polícias e vítimas de crimes, enfim, todos os interessados se possam confrontar e juntar para defenderem os direitos humanos

 João Mineiro

António Pedro Dores

António Serzedelo

Setembro 2012, apresentado ao Congresso Democrático das Alternativas


Dada a relevância do tema e o modo como é tratado, não resisto a divulgar junto das minhas reflexões as de um mestre que tanto me tem ensinado: obrigado

 

Governança e Justiça

Acho que eles não querem perceber nada. O problema é que toda a vida institucional foi posta entre parênteses há uma semana. É inútil supor que as coisas passam porque as manifestações dispersam. Há alguma verdade nisso. Mas também é verdade que, em política – e não apenas em política - os estados de espírito enraízam-se e é neles que assentam muitas coisas. As revoluções também.

O que se pode formular como manifesto daquelas manifestações de dia 15 de Setembro é arrasador. E não há resposta possível dentro dos aparelhos politico-partidários. Aquilo não foi uma catarse ocasional. “Que faremos agora?” traduz a atitude da generalidade dos que saíram à rua. E essa tensão expectante permanece em todas as ruas de todos os bairros.  Há alternativas suficientes à imprensa (que ninguém lê) para que a imprensa possa apenas fazer um quase nada quanto a isto.

Não foi uma manifestação contra a austeridade, porque, não pode chamar-se austeridade à solução em cujos termos toda a gente seria chamada a pagar – além dos limites de inviabilidade do seu sustento – um deficit que propriamente falando não houve nunca. Trichet disse-o com clareza em 2005: “Portugal não tem deficit, tem corrupção”. A isto responde a procuradora Cândida Almeida (em 2012) que o MP nada vê quanto à corrupção no país. É portanto necessário um inquérito urgente e conclusivo quanto à actuação do MP. Nada mais claro. O MP é um corpo de magistrados responsáveis. É preciso pô-los a responder, parece, mas  o inquérito há-de esclarecer melhor as coisas.

De modo que o único bom serviço a prestar ao país seria uma boa transição. Com todos os sinais de uma transição: inquéritos concluídos, livros negros publicados, processos criminais públicos e urgentes em tribunais de jurados, inibições de direitos políticos em todos os casos de desempenho de funções públicas em situação de conflito de interesses e a garantia concretizada de que nenhum esforço se pedirá a ninguém sem resolver a questão prévia da recuperação possível dos fundos sumidos na corrupção (com a premência que o caso exige). Já não é a história d “os ricos que paguem a crise”. É a exigência de reposições de verbas. E a de anulações de vantagens ilícitas como a do abuso de informação privilegiada, por exemplo. “O senhor presidente da república não pode ver a sua honra em causa em razão das acções da sociedade lusa de negócios”, dizia o Pinto de Albuquerque. Ai não? Pois a mim parece-me que toda a gente lhe deixará a honra que lhe reste, seja isso o que for, desde que a casa do Algarve vá à praça depressa. Devemos consentir-lhe uma defesa escrita, por princípio. Um processo devido. E uma audiência pública. Mas as coisas não podem ser longas, pela sua própria natureza. É neste ponto que estamos. Quanto a tudo. E quanto a todos.

Já passámos a fase das referências de conteúdo indeterminado. “Justiça”, “equilíbrio”, “sensibilidade”, “modulações”… Isso era antes de 15 de Setembro.  A figura da ICAR quando vem dizer essas coisas é a de sempre. Está atrasada. Agora as coisas são muito mais cruas. Muito mais simples. E vão magoar na mesma proporção em que se semearam as dores. Em todos os quadrantes, desejavelmente. Basta não resolver alguma coisa num dos sectores, para que tudo regresse rapidamente demais ao ponto de partida.

E já ninguém suporta aquelas caras, aqueles léxicos, aquelas conveniências, com o “quero ajudá-lo/a” de todos os burlões e proxenetas, o “sr. devia ter ido”, ou “ficado”, “dito” ou “calado”, “visto” ou “acreditado”, “previsto” ou “ignorado”  de todos os funcionários, o “isso não se pode dizer”, o “não se pode generalizar”, os “limites da liberdade de expressão”, as revoadas de condenações contra direito expresso por pretensas injúrias em face dos protestos legítimos (e as indemnizações a pagar neste domínio deixariam, em acção de regresso do Estado, muitos decisores em situações onde ninguém quereria encontrar-se). Sublinho quanto a este último aspecto que ninguém se lembrou de processar nenhum manifestante por “ injúria qualificada” contra o “senhor primeiro ministro”.

-“ Coelho ladrão teu lugar é na prisão”, diziam os manifestantes. -“A manifestação é um direito e correu ordeiramente”, respondem os da “ordem pública”. As duas coisas estão certas quanto à substancia, ao modo e ao tempo.

Aqui estão as devidas proporções a regressar. Há coisas que ficam imediatamente postas nos seus sítios. E se num exercício escolar se puser tudo à escala destas proporções, nada se aguenta de pé.  É tão simples como isto. E diante disto há três posições da “governança”:

·         a estupidamente suicidária, ao estilo “muitas coisas cairão comigo”;

·         a suicidariamente estúpida, ao estilo “a experiência ensina que nunca acontece nada”;

·         e a prudente que se traduziria em preparar a mudança com lealdade, para que a Justiça possa silenciar a violência (não serão as unidades anti-motim a fazê-lo).

Gente deseducada no faduncho, na Fátima e no futebol, crescida no revanchismo e na avidez, ou envilecida - ainda antes de crescer - no funcionalismo partidário, escolherá as duas primeiras posições. Esta gente reagirá na mais  pura lógica do “hades ver”, porque, justamente, os estados de espírito enraízam-se. Esse é o (grande)problema.  Mas não é suficientemente grande para impedir que se faça a – sempre concreta – Justiça. Só os graus de destruição quedam por esclarecer, porque a Justiça destrói na proporção em que tiver sido destruída e o Direito abandona na medida em que tiver sido abandonado. Estas conclusões são velhas como a História conhecida.

Tudo o mais me parecem detalhes. (Embora haja alguns detalhes importantes).

José Preto, Lisboa 21 Setembro 2012


Mortes, gatunos e vigaristas

Não faz muito tempo, o avisado Prof. Marcelo espantou ao chamar a atenção do seu público que mais valia entregar à CGTP e ao PCP o enquadramento das manifestações, do que deixar à organização inorgânica e espontânea a iniciativa. Tinha receio de o poder cair na rua.

Ora, em 15 de Setembro de 2012 o Prof. Marcelo lá teve que meter a viola no saco. Mas como qualquer bom comunicador ou comentador encartado, não se calou. Continuou a mandar postas de pescada, como se ele próprio jamais tivesse existido e falhado ou o povo português não existisse.

Sem piquete de ordem, nem da polícia nem da CGTP, sem limitações de entrada ou direito de admissão, as manifestações de 15 de Setembro mostraram que o perigo da violência não vem do povo. Mesmo (ou sobretudo) à solta. A violência vem das seguranças: do sector público-privado, bem como das parcerias media-policiais que fazem os tablóides e até, para quem estava acima de toda a suspeita, das parcerias universidade-media-consultores jurídicos do sistema.

Quando os médicos registam um aumento exponencial dos suicídios, de faltas às consultas por falta de dinheiro para os transportes e encargos de acesso aos médicos, anúncio de fome alargada e crescente, 1/3 das famílias a entregar as casas aos bancos, estes safardanas estão muito preocupados com a violência das ruas (que manifestamente (ainda) não existe) e fazem tabu dos problemas das pessoas, em nome do optimismo e da confiança (em Deus? no mercado?).

O povo na rua, dia 15 de Setembro, reconheceu distintamente os gatunos como uma das causas principais da crise. Sabiamente não os reclamou na cadeia. Eles terão de ser derrotados politicamente. Na verdade já o estão, como todos o sabemos. Mas em vez de se apearem, democraticamente, uma vez que foram apanhados, a probabilidade de se agarrarem ao poder com vista a cumprir o seu papel anti-democrático de vassalos dos poderes de Bruxelas-Paris-Berlin é grande. E os riscos de terem de sair à força aumenta.

Umas semanas antes, à frente da Assembleia da República tinha-se chamado aldrabão ao ministro Relvas, na verdade por minudências. A crítica deve-se mais ao descaramento e ao mau exemplo do que à substância do problema (tão baixo chegou o prestígio das universidades). A expressão do protesto deve-se sobretudo à suspeita, cada vez mais alicerçada, de este ser um regime de vigaristas. Muito para além do Relvas. Em particular aqueles que atemorizam as pessoas com riscos de violência para o que apenas eles próprios e aqueles a quem querem defender, em particular o regime de que dependem, ameaçam.

O perigo, neste momento, de ataque à democracia e ao povo não vem das populações. Como é evidente a partir de dia 15 de Setembro. O perigo é o chefe da polícia dizer que a investigação criminal e a provocação de desacatos em manifestações por parte de agentes à paisana é a mesma coisa (como ocorreu em Novembro último) e ter sido coberto (em vez de demitido) pelo governo – pretensamente democrático – em funções.

O perigo, Prof. Marcelo, vem dos seus amigos de partido. Fora da democracia e dentro da corrupção faz anos. E não das pessoas com fome e deprimidas. Pelo menos por enquanto.

2012-09-18


O Povo visto pela sociologia da instabilidade

As manifestações de 15 de Setembro de 2012 foram uma aparição do povo português, comparável ao 1º de Maio de 1974 ou ao movimento que, lançado pela rádio TSF, originou o apoio nacional à independência de Timor Leste.

Os sociólogos chamados a explicar o fenómeno terão de reconhecer não haver teoria social para o tentar. Há uma teoria dos movimentos sociais, que não se aplica a fenómenos tão fugazes e inorgânicos. A ciência política demarca-se radicalmente da compreensão de tais fenómenos. No próprio momento da manifestação, os comentadores políticos – os jornalistas principais e os dirigentes partidários – inventaram que o problema fora a TSU, quando na verdade, na manifestação, se gritou “gatunos”. Trata-se do mesmo embuste do costume: em vez de se tratar politicamente os crimes feitos por políticos em exercício, enquanto grupo organizado que domina as instituições, reclamam-se processos judiciais para cada um dos crimes que cada político tenha eventualmente cometido, para que tudo possa continuar a ser roubado enquanto duram os julgamentos, entretanto pagos com uma parte do resultado do saque. “Onde estão as provas?” perguntam eles por sistema. Contando com a conivência do sistema, não apenas a eventual promiscuidade entre o sistema político e o sistema judicial (que não impede arrufos) mas também do abuso da divisão de trabalho inter institucional que tem vindo a criminalizar e judicializar os costumes, desde as drogas (com mão pesada) até à corrupção (com mão leve e muitas prescrições), impedindo na prática o funcionamento legítimo do sistema judicial e, na prática, colocando-o em crise, na medida em que fica assoberbado de trabalho e incapaz de fazer justiça.

A justiça torna-se cada vez mais, como tudo em que o neo-liberalismo toca, num centro de negócios competitivo, isto é corrupto.

Os sociólogos, remetidos pelas classificações dos media, para explicar o social, aquilo que – do ponto de vista deles – não é político, têm-se deixado acantonar nessa posição politicamente subalterna em termos epistemológicos e públicos. Pouco interessa o que diga o sociólogo, em concorrência com as fontes policiais, para explicar o que tenha passado pela cabeça desgrenhada dos manifestantes, (cf. este exemplo eloquente http://www.rtp.pt/play/p79/e92702/especial-informacao). As questões sérias, como insistentemente disseram os comentadores e jornalistas de serviço, são os temperamentos dos lideres partidários e respectivas telenovelas casamenteiras ou de divórcio.

Não se deduza destas linhas a inocência da teoria social neste posicionamento redutor do social a capacho do político (e do económico). Pelo contrário, a teoria social não se preocupa em definir o seu próprio objecto de estudo: o povo. Chama-lhe sociedade mas na condição de estar inerte, de ser uma colecção de indivíduos. Tem de poder ficar bem na fotografia, no geralmente inquérito por questionário. Se o povo se levanta a teoria social, como qualquer fotógrafo de cerimoniais, zanga-se e pede às pessoas para estarem quietas. Caso não seja possível, remetem o assunto para as enfermidades, as irracionalidades, estudadas pela psicologia de massas.

Na perspectiva da sociologia da instabilidade http://iscte.pt/~apad/novosite2007/livros.html#INSTAB, o povo português é tanto aquele que se expressou na rua, contra e à margem das instituições, como aquele que vota maioritariamente nos partidos do arco do poder, para que organizem os pagamentos alegadamente devidos ao estrangeiro e aos nossos parceiros europeus. Como qualquer pessoa, o povo zanga-se. O facto de se zangar todo praticamente inteiro ao mesmo tempo, é um a reacção a males institucionais profundos. Claro. Mas do ponto de vista do conceito, não há que fazer da contradição entre o povo em estado de submissão e o povo em estado de proibir (a acção do governo) um problema de incoerência popular. Pelo contrário: o facto da teoria social estar incapaz de descrever um tal fenómeno apenas significa que a teoria social é especialista em fotografia e se recusa a reconhecer a sétima arte.

De acordo com a teoria dos estados de espírito, no que toca a questões de poder, cada entidade social, seja ela uma pessoa, um grupo, uma instituição ou um povo, portanto qualquer sociedade admite praticamente ao mesmo tempo vários estados de espírito (aprendidos em geral separadamente), sendo que alguns deles ou uma mistura específica deles acabam por ser preponderantes à vez, em cada tempo. Se é assim, o povo português resistiu na postura de submissão até ao 15 de Setembro de 2012, cobrindo e reforçando – independentemente do mérito da governação – seja o que for que o Estado entendesse prosseguir. A vontade de proibir o caminho seguido já tinha sido manifestada de várias formas. As práticas marginais também começaram a expressar-se num quadro popular. O governo utiliza isso para organizar a repressão, como se fosse possível expurgar ou exorcizar tal estado de espírito. Naquele dia 15 de Setembro, porém, o povo disse “Basta!”, todo inteiro, incluindo os marginais e os submissos. Adoptou, portanto, uma postura de proibir o Estado de continuar a roubar o povo (“gatunos!”) e de destruição da identidade nacional (cantou-se o hino e gritou-se Portugal, Portugal, como no futebol).

Ainda de acordo com essa teoria, http://iscte.pt/~apad/estesp/trilogia.htm, ao povo resta ainda a possibilidade de, caso não se sinta satisfeito com esta mistura em transição de um espírito de submissão para um espírito de proibir, adoptar um espírito marginal. Que é, verdadeiramente, o espírito épico da modernidade. Por isso a modernidade valoriza tanto a juventude, a irreverência, a falta de memória, a violência como valor positivo (sobretudo quando é atirada contra terceiros).

Os conservadores, claro, com toda a razão, quais velhos do Restelo, chamam a atenção dos riscos de o povo vir a adoptar uma postura marginal. O poder cai na rua, a propriedade, a estabilidade, a tranquilidade, são substituídas pela instabilidade visceral, original, como quando pequenos grupos de humanos lutavam pela sobrevivência. Que há de épico nisso é a entrega aos elementos. O povo, claro, sabedor disso mesmo, só entrará por aí quando a sua vida (por fome ou risco de perda de identidade) esteja em grave risco.

O povo já percebeu que está a ser conduzido por gente que lhe é estranha. Mas espera para ver se o caminho do abismo, que tantos já viram e anunciam faz tanto tempo (há sempre profetas da desgraça), terá ou não um arrepio. Caso venha a entender não haver arrepio, caso a sua soberania não venha a ser respeitada, a atitude do povo certamente mudará. O que não significa que não possa ser controlada (por exemplo, através de intervenções repressivas ou bélicas). Preferivelmente pela demissão colectiva da classe política, se é que ainda se regem por princípios democráticos.

2012-09-18

 


Carta aberta

Exmo. Senhor Presidente da República portuguesa,

Organizar a democracia – é responsabilidade de um povo

Há que agradecer aos companheiros que tomaram a iniciativa de convocar as manifestações de 15 de Setembro de 2012. Sem eles, sem a sua insistência persistente, sem a sua confiança no povo, o povo não poderia apresentar-se de forma tão cabal como aconteceu neste dia histórico.

Há que reconhecer os frutos da estratégia política a que esses companheiros têm vindo a dar corpo. Liberdade para o povo se exprimir quando entender; igualdade das diferentes tendências políticas, organizadas ou não, para participarem sem censuras (o que não quer dizer sem discussão); fraternidade (anti-sexismo, anti-racismo, anti-vanguardismo, solidariedade, anti-securitarismo) no modo de organizar a política.

Está, evidentemente, outra vez e sempre, tudo por fazer. A revolução (no sentido da experiência do povo referida a 25 de Abril de 1974) recomeçou. Desta vez em democracia. Mas os dirigentes políticos e as instituições ainda não se pronunciaram sobre se optam pelo povo, em respeito pela democracia, ou se optam pelo saque, como fizeram muitas vezes no passado e como imagino que estes também vão fazer agora e para o futuro, enquanto puderem. Até serem corridos, como Miguel de Vasconcelos ou como os fascistas.

Não vale a pena aos responsáveis políticos e sindicais procurarem os responsáveis pela agitação. Manifestamente são eles próprios, assim saibam olhar-se ao espelho. Mas imagino que só tenham espelhos comprados à Branca de Neve. O que obrigará um esforço arriscado – mas urgente – ao povo português.

Houve as manifestações dos professores em 2008, a de 15 de Março de 2011 e as suas réplicas. Foram tímidas demonstrações da existência de um povo, comparada com esta. Entregámo-nos primeiro aos sindicalistas (os professores desempregados sabem o resultado) e depois à Assembleia da República (por isso tocou a todos a resposta dada: sem piedade).

A diferença é que esta manifestação foi do povo inteiro e consciente. Cantou o Hino para se anunciar, gritou o seu nome: “Portugal”, “Portugal”, ao modo do futebol. E fez a sua análise socio-político-económica: “GATUNOS!”

Quem duvida que há um soberano, uma entidade social efectivamente real que comanda – com as suas forças próprias – a vida deste país? Não foi uma aparição de Fátima. Como vão tentar fazer querer os comentadores encartados – que é essa a sua função servil.

A partir deste momento a voz dos hipócritas –e ele há tantos – perde a pouca razão que tinha. E o povo, nas suas diversas expressões, está a partir de agora autorizado a interpretar a rebelião como um direito, de resto previsto na Constituição.

Há quem pense que a democracia, principalmente no estado de degradação em que se encontra – já cheira mal – não será capaz de desenvolver alternativas. Aqui há que ponderar o que estamos a querer referir por democracia.

Se democracia são as instituições democráticas, os partidos, os sindicatos, as organizações patronais, a administração, o sistema judiciário, os órgãos de soberania do Estado, se democracia é isso, não serve o povo português. O Presidente da República e o Conselho de Estado que mandou reunir têm obrigação política de o reconhecer – porque é evidente – e declarar as instituições estarem a funcionar ao arrepio das suas competências e funções políticas, em prejuízo evidente do soberano; portanto contra a constituição e contra o Direito. As instituições estão fora da lei. Como muitos já têm chamado a atenção.

Para a democracia se realizar, no quadro do actual regime, o Presidente da República tem estrita obrigação de respeitar o seu compromisso de honra e fazer a declaração respectiva, tirando daí as consequências como pensar ser melhor para o povo. Caso contrário, o próprio Presidente arrisca-se a passar a ser considerado fora da lei e coveiro desta democracia.

 Transição pacífica e organizada entre esta democracia e a próxima que se espera poder ser possível organizar em breve, depende do Senhor Presidente da República e da sua capacidade de fazer valer o seu bom juízo junto das restantes instituições, sobretudo as mais poderosas. Para isso pode contar com o povo, evidentemente. Para outra atitude, dava jeito pedir a demissão. Que outra personalidade capaz de conduzir o processo constituinte avance. Pois essa é evidentemente indispensável seguir-se, assim que possível.

A atitude do Presidente é, evidentemente, muito difícil. Sobretudo para ele. Só ele saberá como quer vir a ser apresentado nas aulas de história no próximo futuro.

Aos portugueses cabe-lhes mudar o (seu) mundo sem tomar o poder, cf John Holloway Change the World Without Taking Power. Organizar a democracia, essa é a grande lição destes últimos 40 anos, é um trabalho que não pode ser delegado, sob pena de grandiosos prejuízos. Formaram-se escolas de bandidos, mais ou menos secretas, mais ou menos partidárias, para organizar o saque e a respectiva divisão. Os portugueses satisfizeram-se com as migalhas, porque são humildes. Perderam de vista a corrupção social. Como se sabe desde Wilkinson e Pickett Espírito da Igualdade, a diferença de rendimentos tem efeitos perversos transversais a todos os aspectos da vida social. Isto é, não basta cada um ficar com o quinhão que lhe seja suficiente para viver. É preciso que todos e cada um nos asseguremos de existir uma distribuição de rendimentos tão equitativa quanto possível, para todos e cada um vivermos melhor. Para termos uma sociedade mais justa, independentemente do regime político e económico.

Precisamos de um regime democrático capaz de reconhecer o direito do povo a ser soberano (um sistema de justiça justo) e de instituições ao seu serviço (pela igualdade social na base da possibilidade de práticas fraternais, sem as quais, na prática será difícil ter-se liberdade e igualdade).

Esse regime democrático não é este que temos hoje. Há que separar as águas: quem está pelo povo e quem está contra o povo? Senhor Presidente da República?

Não votei em si. Desconfio com toda a minha razão de si e dos seus. Preciso de si, nesta ocasião, porque se é verdade que todos somos capazes de nos ressocializar, se o senhor quiser fazer isso hoje, agora, estará a evitar muitos esforços desgastantes e em vão bem como muito sangue.

PS: A propósito, vale a pena rever a SIC, 31.05.2012. Isso explica a proposta do PS as PPP pagarem mais impostos em troca da TSU?


A esquerda não existe

Texto de contribuições abstractas e concretas para o debate sobre o que fazer face à evidência de estarmos a deixar-nos governar por predadores e abusadores.

Propostas:

Gabinetes políticos para atender política e juridicamente, em sigilo, os injustiçados deste país,

Rigor dos ensino do português e da matemática ao centro do debate político.

Ensino e o dinheiro deveriam circular de baixo para cima.

Os partidos deixariam de ser centros de negócios para serem centros de coordenação estratégica

Reclamar a liberdade de os desempregados organizarem livremente sem interferência do Estado (que não é capaz de os integrar)

Para os interessados, podem ler o texto completo AQUI, apresentado ao Congresso Democrático das Alternativas, Setembro 2012,


Sequelas da escravatura em Lisboa


 

A verdade espelhada no lodaçal  (em "Às claras")

Um preso queixa-se de ter apanhado 51 anos de pena por burlas, tomadas como crimes separados, e teme que o facto de não estar ainda feito o cúmulo jurídico, quase uma década após a sua entrada na cadeia, queira dizer que se preparam para o fazer cumprir as penas sucessivamente. Dir-se-ia que estamos num país moralista. Mas estamos em Portugal, onde vigaristas são escolhidos para cumprirem funções das mais importantes para o Estado, sofrendo sem vergonha a pena única de serem motivo de anedotário, protegidos sabemos todos muito bem porquê e por quem.

Muitos comentadores e políticos entendem dever separar a avaliação política da avaliação do carácter das pessoas. Não queremos em Portugal o populismo dos tablóides anglosaxónicos a comandar a opinião pública. Outros levam o rigor ao pormenor de manifestar indignação pela confusão entre o caso da licenciatura de Sócrates (que terá frequentado algumas cadeiras do curso de que obteve certificado) e da licenciatura de Relvas (que não terá frequentado praticamente nenhuma). Mas o resultado final é que a utilização do Estado para fins privados, de que os certificados de ensino são apenas os exemplos mais fáceis de documentar, é assunto tabu na política portuguesa.

Na verdade muitos destes comentadores continuam a discutir alta economia política – que é o topo da carreira – sem se aterem ou terem sequer suspeitado de algumas verdades como aquelas recentemente apresentadas por Paulo Morais sobre os mecanismos, cumplicidades, anuências, omissões, impunidades, de que resulta a crise nacional: estamos todos a pagar não apenas o BPN dos manda-chuva como as fraudes legalizadas na classificação de terrenos, da produção de leis em favor dos bancos e das empresas de advogados, o pulular de fundações e de outras benesses para os amigos, a obstrução politicamente organizada à justiça por partidos e empresas de advogados disso beneficiários. Não somos os portugueses que vivemos acima das nossas possibilidades, mas antes os vigaristas que exploram o Estado português é que vivem conforme as suas possibilidades. O que nos causa problemas, sobretudo se continuarmos a pensar ou fazer como se o Estado fosse propriedade privada desses mesmos escroques.

Um amigo dizia, ao ver a Judite de Sousa espantada a perguntar ao Paulo Morais se estava seguro da gravidade das acusações que fazia, que esperaria algum tipo de consequências. Ou a frontalidade da denúncia causaria algum desgosto ao denunciante ou aos denunciados. Espantado ficou o telespectador quando nos dias seguintes apenas pode dar-se conta da presença de Paulo Morais em vários meios de comunicação, sem outras consequências.

Num país que admite a vigarice como prática social legítima para quem vive da política, qualquer verdade fica baça espelhada no lodaçal. Como poderia o grosso dos comentadores fazer, sem riscos, as suas inócuas e repetitivas análises se introduzissem a verdade como variável explicativa? Como se manteria o governo sem a ilusória esperança de que a troika venha cá para – em segredo – combater a corrupção endémica? É mais doce viver-se de ilusões do que assumir responsabilidades. É mais fácil colaborar com os escroques do que expropriar os resultados das chicoespertices políticas.

12-7-2012


Democracia, Europa e corrupção (em "Às claras")

Nas últimas semanas e sobretudo nos últimos dias chegaram notícias que merecem alguma reflexão. A propósito das eleições para o parlamento grego marcadas para dia 17 de Junho de 2012, correram notícias obviamente falsas, mas noticiadas pela esmagadora maioria dos órgãos de comunicação social europeus, sobre a escolha principal dos eleitores gregos: ficar ou não ficar no euro e na União Europeia.

A comunicação social, perdoe-se-nos a generalização, fez campanha nas eleições gregas pela interpretação dominante dos burocratas e diplomatas europeus em as citar e à revelia das formulações expressas pelos partidos gregos dominantes, ambos a favor do euro e da União Europeia. A Srª Merkel e os seus apaniguados decidiram intervir nas eleições gregas ameaçando o Estado grego com a expulsão – ilegítima, caso se viesse a concretizar – do euro e da EU, como se houvesse quem seja o “dono da bola”. A edição alemã do Finantial Times levou este tipo de propaganda ao interior da Grécia de forma muito directa, apelando ao voto na Nova Democracia, na véspera das eleições, depois de finda a campanha eleitoral.

Alguns meses atrás os órgãos de soberania gregos foram ultrapassados por uma iniciativa política europeia que foi capaz de colocar como primeiro-ministro um senhor da confiança dos mercados, o Sr. Papademos, na sequência de um anúncio frustrado de um referendo sob a mesmíssima questão que agora foi introduzida na campanha pelos poderes políticos dominantes e de legitimidade discutível. O então primeiro-ministro, Sr. Papandreo, legítimo representante do partido mais votado, desapareceu da vida política.

Que moral pregarão os poderes difusos, em geral simbolizados na figura da Srª Merkel e dos mercados, quando se mobilizam para castigar as más práticas de governação gregas – ou de outros países – e se comportam deste modo? O que os levará a apoiar os partidos que instalaram a má governação e a corrupção na Grécia, contra alternativas de poder que são estigmatizadas como anti-europeias (sem que isso corresponda a nenhuma vontade expressa dos estigmatizados, mas ante a uma ameaça mediática de expulsão cuja oportunidade e legalidade não estão previstas)?

Em Portugal, o debate dos cruzamentos da corrupção com a política têm passado sobretudo pela autarquias, embora os volumes de dinheiro que circulam nessa área do Estado sejam muito inferiores aos que são mobilizados pelos ministérios e pelas empresas públicas. Alguns presidentes de Câmara, sobretudo, tornaram-se figuras corruptas reconhecidas publicamente, mas raramente penalizadas politicamente por isso, por parte dos eleitores. O que tem sido referido pelos activistas anti-corrupção como um problema cultural e político relevante no âmbito das suas campanhas anti-corrupção.

O que dizer, então, do apoio político dos poderes fácticos e mediáticos europeus a partidos responsáveis pela instalação de sistemas de corrupção a nível nacional, na Grécia? Qual é a lógica da intromissão da CE, do BCE e do FMI – e dos media internacionais – na vida financeira dos países mais desregulados da EU se não é também para combater a corrupção através de reformas estruturais?

Que maior integração política na UE se estará a querer organizar se em vez de serem os povos europeus a terem direito a voto nas instituições que de facto mandam na União, como o parlamento alemão ou o parlamento francês, são os burocratas sem rosto e sem legitimidade política transparentemente adquirida a intervirem nas votações políticas de países assim menorizados?

Lx, 2012-06-18


A luta contra o abuso sexual de crianças

É bom que o Ministério da Justiça se preocupe com o abuso sexual de crianças. Mas isso não é suficiente.
a) Segundo a ONU 1/4 das meninas em todo o mundo são abusadas até à adolescência e 1/7 dos meninos também. Trata-se de uma vitimação das mais extensas que se podem imaginar. Virtualmente qualquer um está vulnerável a um abuso sexual. Situação de consequências desconhecidas e devastadoras. Não há medidas simples para tratar o problema tão ignorado e de tal dimensão;
b) A abertura do espaço europeu faz com que as medidas locais, nacionais, sejam insuficientes para abordar o assunto, já que os abusadores mais poderosos organizam as suas actividades de modo colectivo - explorando as potencialidades da internet, do turismo e as cumplicidades locais a troco de favores ou pagamentos, envolvendo instituições poderosas nomeadamente as que mais confiança geram nos cuidados sociais de crianças e jovens em risco;
c) O trabalho policial, escolar e institucional de perseguição dos abusadores e de protecção das vítimas não tem merecido o investimento indispensável, apesar dos avanços neste campo serem reais. Pelo que é preciso saber de que modo as medidas anunciadas são uma necessidade ou uma mais valia sentida no terreno e se essas medidas serão acompanhadas de reforço e aceleração das medidas preventivas e de protecção no terreno. A crítica construtiva das intenções do ministério da Justiça será feita por aqueles que no terreno se confrontam com as dificuldades práticas da luta contra o abuso sexual, em geral, e das crianças em particular;
d) O problema não é a pedofilia - uma perturbação do comportamento que faz adultos sentirem-se sexualmente excitados com crianças - mas sim o abuso sexual - a vitimação em série e viciosa de crianças por abusadores que podem não ser pedófilos. Há, pois, um trabalho de informação, debate e consciencialização a levar a cabo junto das sociedades que se está a fazer mas que está quase todo por fazer;
e) Só, nenhum ministério será capaz de tratar este problema. Sinalizá-lo a nível ministerial, como o fez agora o Ministério da Justiça, é um acto de coragem, que merece apoio e aplauso, independentemente da qualidade específica das medidas tomadas - cuja crítica pode e deve ser feita. Mas assinala também a forma parcial como o governo e o Estado (não) lidam com o assunto. Tratam-no como um tema sectorial, que não é;
f) As críticas a medidas neste campo têm sido tecidas em razão do apelo à irracionalidade securitária com que nalguns países do mundo (sobretudo anglosaxónios) têm sido usadas. Com resultados escassos e por vezes contraproducentes. Nomeadamente por serem integradas em processos de criação de medo nas populações, cujos resultados directos podem ser maus tratos, torturas e linchamentos de alegados pedófilos que alegadamente nunca o foram (foram sim vítimas de erros judiciais).
g) Preocupa-me estas medidas do min. da Justiça serem anunciadas ao mesmo tempo da política demagógica da "tolerância zero" (pelo min da Administração Interna). Não sei se há coordenação do governo nestes campos, mas caso haja coordenação isso é um sinal de risco de má utilização das informações que se vão passar a recolher, nomeadamente se forem usadas para fins de propaganda política à custa do ulular das pessoas aterrorizadas com a perversidade sexual da humanidade;
h) A informação a recolher sobre a identidade e a acção dos potenciais abusadores sexuais cujo comportamento se sabe ser compulsivo não deve perder de vista a necessidade da mobilização da cooperação das instâncias de investigação do Estado, MP, polícias especializados, polícias em geral, educadores e cuidadores de crianças, tendo em conta que os abusadores são especialistas em infiltrarem-se precisamente lá onde se cuidam das crianças abusadas - para mais impunemente delas poderem abusar. Portanto, é fundamental que as famílias, as mulheres e as crianças, as populações em geral, se organizem e participem por razões próprias nesta batalha de civilização para compreenderem esta expressão da natureza perversa da nossa natureza humana. Confiar no Estado não será suficiente (e provavelmente será ineficiente). Organizar a ostracização estigmatizante dos abusadores capturados pelas polícias e condenados pelos tribunais é perigosamente auto-destrutivo e, na prática, incapaz de atacar um problema desta dimensão e profundidade.

Reacção à notícia: "A Ministra da Justiça anunciou que vai avançar até ao final do ano com a criação de um registo nacional com nome, morada, foto e outros dados pessoais de pedófilos que já tenham cumprido pena por abuso sexual de menores, para que as autoridades policiais e as escolas, creches ou instituições que trabalham com crianças saibam se existe algum pedófilo na zona. Nos casos mais graves, os dados serão divulgados pelos vizinhos."

2012-07-09


A praia antes do tsunami

As secretas estão à mostra e revelam as pernas até ao primeiro-ministro. O Pacheco Pereira lança a sua sabedoria sobre a classe dirigente em pânico, sem saber se já é alemã ou se a senhora Merkel ainda lhe vai pedir mais um esforço para exaurir até ao fim este jardim à beira mar plantado. Há polícia na rua que sente ser a última réstia de autoridade e atira-se a quem passa, porque todos somos suspeitos antes de prova em contrário. Para satisfação do ministro das polícias, convencido que o seu revanchismo é maquiavelismo.

Os partidos da situação conspiram. Os da oposição escutam atrás das portas a ver quem revela melhor o sentido da conspiração. Os analistas analisam o sentido da falta de sentido e a população finge que tudo continua a ser a mesma conversa da treta com que nos endividaram.

Mas não é: desta vez é a guerra que vamos importar da Europa. A guerra contra a democracia. Não a democracia grega, que essa faz séculos que acabou. Mas contra a democracia que ainda resta na Grécia após os subsídios que serviram para armar o Estado até aos dentes e alimentar uma classe dominante global na Grécia, cuja animação económica permitiu conquistar a miríade de lojistas que faziam o grosso da legitimidade do Estado integrado na União Europeia.

A guerra como na Argélia ou na Palestina, quando os respectivos povos votaram contra os desejos dos dominantes e da comunidade internacional. Sim. A Grécia, como o Sul da Europa, foi escolhida para ser a colónia exemplo da nova fase do capitalismo, na Europa. Também dita, zona económica especial, onde a Democracia, o Estado de Direito e os Direitos Humanos deixam de ser valores a respeitar, nem mesmo retoricamente. Por isso o governo aconselhou os jovens a emigrarem. E fê-lo com sincera e estúpida vontade de ser útil. Pois sabe que quem ficar cá dentro, caso os deixem continuar a governar, vai ficar mal tratado. Como aquele homem encontrado uma semana após ter morrido de fome em casa, em Atenas, com o seu Mercedes estacionado à porta.

Leonidas é o mito grego antigo mais recordado nos dias de hoje. E como naquele tempo já se sabia, a luta pela vida digna é mais importante que a derrota que possa ser imposta pelos poderosos. Hoje, porém, os gregos não têm de estar sozinhos. Nós somos todos gregos.

2012-06-02

PS: em homenagem a Yorgos Mitralis, de visita a Portugal nestes dias


A esquerda e os rituais punitivos

Hoje em dia a sociedade suporta os crimes mais graves sem haver julgamentos dos poderosos responsáveis. Enquanto a polícia e a opinião pública estão viradas para a descoberta e invenção de pequenos delitos, punidos duramente nos corpos de quem não se sabe nem pode defender.

Jamais a sociedade desejável foi imaginada sem prisões, sem punições, sem moralismos perversos. O que todavia é fundamental.

O socialismo real afundou-se em gulag e o capitalismo continua a fazê-lo. O número de prisioneiros não pára de crescer.

Pensar em acabar com as prisões, mais do que deixar os magistrados atarantados, provoca um vazio doloroso nas pessoas comuns, um sentimento de insegurança irracional mas profundo. É um tabu no debate político, que apenas torna mais perversa a situação nas prisões e irracional a vida pública e a vida política.

50% dos presos são filhos de presos; 60% estão na prisão por mais de uma vez; 80% passaram por instituições de acolhimento de crianças e jovens. São basicamente os mesmos de sempre. A droga é o maior pretexto para prender e é também o maior negócio nas prisões. Querem maior perversidade?

Para quê? Para que os poderes possam condenar os seus inimigos, em particular os povos que os contestam? Para os senhores do poder se possam vingar dos seus inimigos e proteger os seus amigos, sem deixar rasto?

A futura sociedade europeia democrática, respeitadora do Direito, é uma utopia. Nessa utopia ou caberá a ideia de perseguição do crime sem uso do sequestro expiatório, para todos, ou não caberá o respeito pelo Direito.

2012-05-27


Humanil


A mim também me apetece matar

A luta pela liberdade é uma luta contra natura. Ao contrário do mito do bom selvagem, os primeiros humanos tiveram que aprender a lutar contra as adversidades para poderem sobreviver, quando as árvores deixaram de ter alimento suficiente e foi preciso descer à savana aberta. Perante o perigo, como sabe qualquer guerreio, é morrer ou matar.

As sociedades modernas herdaram e valorizaram todas as lutas pela liberdade que entretanto foram desenvolvidas pela espécie humana, frequentemente por caminhos errados, como aquilo da Pax Romana, isto é a imposição imperial do domínio de alguns sobre os recursos comuns. Ainda hoje lidamos com isso. A pacificação que acompanha a liberdade e faz o estado de guerra parecer-nos repugnante, tornou-se uma referência central da política. Mas, infelizmente, ainda não se conseguiu encontrar um antídoto para a guerra. Nem para a perversidade.

Compreendo muito bem o tom irado dos defensores da pena de morte que recomendam a expulsão da condição humana daqueles que, como eles próprios, se disponham a despachar para de baixo da terra outro ser humano. Imagino que não se dão conta do que dizem, o que não é invulgar em seres racionais. Mas será que persistem em querer mandar matar alguém por (alegadamente) sentirem uma especial repugnância por quem mate? Ou exprimem-se assim mas querem dizer outra coisa?

Na verdade a espécie humana não assim tão diferente dos macacos como gostamos de nos pintar. Os machos dominantes são-no porque guardam o geniceu (as mulheres e as crianças) e o celeiro (actualmente mais parecido com um banco). Aos jovens machos, saídos do geniceu, uma tal ordem parece feita contra si (o que não deixa de ser verdade). E nalguns casos revoltam-se e tornam-se marginais.

Sermos todos iguais é apenas um desejo contra natura e contra factual. Há que lutar pela liberdade para evitar que a natureza selvagem se torne tão poderosa que nos impeça de viver outras alegrias que não seja a de ver os outros sofrer. Não admira que perante a perspectiva de uma boa luta, uns prefiram o lado da liberdade em campo aberto, com os riscos implicados, nomeadamente de ser vítima daqueles que, por medo, preferem acolher-se atrás do macho dominante, para os mais medrosos e indefesos representado pelo polícia, instigando-o a fazer aos outros o que imagina que outros lhe querem fazer a si.

Sim, é um problema imediato mais complicado manter a prioridade à liberdade quando a macacada, como o Império em que vivemos, grita “à morte!” – nomeadamente dos emigrantes, onde se inclui a diáspora cabo-verdiana. Mas quem disse que a luta pela liberdade se faz no sofá? Não se faz certamente atrás da protecção policial.

http://liberal.sapo.cv/noticia.asp?idEdicao=64&id=36007&idSeccao=527&Action=noticia

23 Maio 2012


A luta pela liberdade

A democracia serve para regular a maneira como devemos organizar-nos para resolver os problemas comuns. A democracia é uma forma de assegurar a maior igualdade possível em liberdade. Muitas vezes esquecemos isso, de tal forma a política é mal tratada nestes tempos de transformação social (e pessoal).

 

Um sinal da perversidade dos tempos, e da ausência de espírito democrático, é a facilidade com que se quer enviar para de baixo do tapete as misérias, como se nos fossem alheias. Basta surgir um problema, sobretudo daqueles que todos conhecemos e a ninguém apetece incomodar-se com ele, para a democracia seja atirada para o lado. Mas não é precisamente para as ocasiões de crise que a democracia serve? Ou deveria servir? A democracia só serve para impedir o acesso dos representados ao controlo do que fazem os representantes, alegadamente representativos?

Caro leitor,

Tome atenção até onde o conduzi. Porque agora vai ter um choque: o encarceramento não é solução para as crises conflituais ou para a violência. Sim, os crimes devem ser punidos. Não, as prisões não são bons instrumentos para fazer justiça. O Estado de direito (mesmo na teoria) ainda não encontrou forma de ultrapassar esta tendência humana para arranjar bodes expiatórios e sacrificá-los à incúria colectiva, à desigualdade de oportunidades. Mas isso urge fazer, tanto na teoria como na prática. Por razões práticas e morais.

Razões práticas: sabe-se não existir, não ser reconhecível, em nenhum país do mundo, qualquer correlação entre as práticas de encarceramento e as práticas criminosos, ver por exemplo em Jock Young (1999) The Exclusive Society, Sage. Há épocas em que crescem crime e número de prisioneiros, como há épocas de desencontros entre as trajectórias e volumes dos dois fenómenos sociais. Não se estabeleceu nenhum nexo de causalidade entre eles. Há quem tenha esperança de um dia vir a ser possível encontrar um modelo matemático sofisticado capaz de desdizer a opinião científica dominante: não há relação observável.

O Direito terá que encontrar formas de intervenção eficazes para assegurar a justiça, e prevenir futuros crimes. Punindo as práticas criminosas sem recorrer a outras práticas do mesmo tipo, mas praticadas por agentes do Estado – o que acontece demasiadas vezes nas prisões. Estamos parados no tempo, muito por causa do país da Liberdade, os EUA, ainda praticar a pena de morte, o que atrai naturalmente todas as principais atenções das preocupações públicas lá e em todo o mundo. O modelo de vida norte-americano, porém, é cada vez mais evidente, está a vender liberdade por segurança. Deixando-nos, na prática, a todos mais inseguros. Do mesmo modo que as punições por vingança e para satisfação emocional nas nossas incapacidades colectivas de evitar as explosões de violência, onde não há pena de morte mas há as prisões da morte lenta, também devem ser repensadas. Actualizadas.

Essa é uma frente de luta pela liberdade e pela dignidade humanas. Dura mas indispensável luta teórica e prática. Para que convoco os meus leitores.

http://liberal.sapo.cv/noticia.asp?idEdicao=64&id=36001&idSeccao=527&Action=noticia

22 Maio 2012


Economia, povo e estratégias de acção política

http://liberal.sapo.cv/noticia.asp?idEdicao=64&id=35943&idSeccao=527&Action=noticia

A economia tornou-se uma ciência monoparadigmática numa época dita de capitalismo avançado. A sua irracionalidade e a irracionalidade da sua legitimidade pública ficou evidente durante a crise financeira de 2007/8, quando todos notaram como os controlos económicos estabelecidos de forma ultracomplexa e bem paga – pagamento justificado pelas altas responsabilidades e exigentes critérios de moralidade dos reguladores e dos decisores públicos e privados – afinal não tinham nem eficácia nem justificação. Mas a noção de capitalismo avançado continuou a parecer válida, para nossa auto-satisfação, aqueles que vivemos nos países desenvolvidos. O que sugere um capitalismo definitivamente definitivo, após as dúvidas historicamente lançadas pelos movimentos operários, pelos regimes comunistas, todos derrotados. A generosidade desse capitalismo exprimir-se-á na globalização pela competitividade, isto é para criação de uma extensa e nova classe média nos países emergentes.

Os economistas, os oficiais e os alternativos, porém, continuam a monopolizar as explicações da crise. Utilizam sobretudo gráficos e várias cores que pretendem demonstrativos de qualquer coisa que os entusiasma e torna, a seus olhos, evidentes factos contraditórios entre si. Apesar da derrota prática da economia, enquanto prática cientificamente informada, ei-la transformada em ideologia política cuja mensagem principal é: quem não sabe economia deve manter-se alheado da discussão política.

Com a educação que esta nova geração tem, a mais das gerações anteriores, mais facilmente é produzir aquela sensação: “Não percebo nada do que diz, mas fala muito bem!”

Quando a explicação económica fundamental sobre o que se passa é muito simples: o capitalismo tem duas formas de lucrar: a) destruindo, no que se chama acumulação primitiva ou expropriação; b) produzindo mercadorias com base na acumulação de valor para as pessoas detentoras da propriedade anteriormente expropriada. Após a segunda grande guerra a Europa Ocidental, financiada pelos EUA em expansão interna, através da política do New Deal, teve os 30 anos magníficos (para o crescimento económico) que desembocou nas revoluções juvenis dos anos 60 e na crise do petróleo. Desde então os contestatários – transformados em yuppies – e as velhas classes dominantes aliaram-se contra a burocracia e o trabalho rotineiro, tratando de transferir as classes trabalhadoras para os países do terceiro mundo, guardando para si o controlo dos recursos e a estratégia de reservar para o Ocidente apenas os sectores limpos e inteligentes. Foi a miragem da sociedade da informação, do conhecimento e da ciência através da globalização. A realidade vivemo-la nós.

Afinal o que ocorre é que entrámos, faz muitos anos, na época da estratégia a) de acumulação primitiva ou de roubo, em primeiro lugar nos países emergentes, concorrendo uns com os outros pelo capital, criando uma classe dominante globalizante através do esmagamento de outras propostas de desenvolvimento: “não há alternativa à globalização!” A exportação de capitais e de patentes industriais para qualquer parte do mundo está explicada. A contenção da liberdade de circulação dos trabalhadores – ao contrário da doutrina original – passou a dever-se à reacção positiva de muitos trabalhadores aos apelos ao empreendorismo. À medida que os tempos passaram, ficou evidente como o empreendorismo é uma ideologia de superioridade dos vencedores fundada, na prática, no violento condicionamento das liberdades de quem não esteja socialmente acreditado. A pouco e pouco, o Sul começou a desenvolver-se no Norte – hoje a Europa conta com 25% de pessoas a viver abaixo do limiar de pobreza, apesar do Estado Social – assim como o Norte no Sul, na Rússia, na China, na Índia, no Brasil. Diz-se a sociedade da exclusão, a sociedade penitenciária, a sociedade do trabalho precário, a sociedade do luxo, etc. Os privilégios sociais voltaram à Europa como apenas no século XVI se tinham conhecido. Apenas a classe dominante beneficia da globalização, cujos lucros são imensos – porque imensas são as massas que estão a ser exploradas  pelo capitalismo de produção – sem controlo social, já que os Estados se tornaram de executores desta política de desenvolvimento em objecto de ataques especulativos dos mercados seus “amigos”.  A velha classe média europeia torna-se dispensável e insustentável, comparada com as novas classes médias e com o seu papel no enquadramento dos trabalhadores (desempregados ou precarizados). Não só os pobres (trabalhadores ou não) se juntam ao Sul do Norte. Actualmente toca à classe média ser avaliada na sua inutilidade e engrossar os excluídos da globalização, a começar pelas classes médias dos PIIGS – alvo dos ensaios políticos que mais ou mais cedo se generalizarão a outras partes da Europa.

E onde está o povo, pá? Como pergunta os humoristas cantores, os Homens da Luta. Se houvesse povo ele deixar-se-ia gozar e menos prezar desta forma? De que falam os juristas e as constituições quando se referem ao Povo como soberano, em vez dos reis e de Deus?

Na verdade bem se pode dizer que o povo dos movimentos operários faz tempo que desapareceu. Nos anos setenta alguns sociólogos pensaram ver surgir novos movimentos sociais, como o dos estudantes, das mulheres, os ecologistas, capazes de, na diversidade, cumprirem o papel dos movimentos operários. O mais bem-sucedido desses movimentos foi o das mulheres; melhor dito, os das mulheres e similares, como todos os movimentos que tenham a ver com cuidar dos seres humanos e das respectivas identidades vernáculas. Os movimentos ecologistas criaram uma linha de indústrias verdes mas incapaz de alterar o rumo do desastre ecológico que se anuncia. Os movimentos estudantis mantém alguma importância mas sem nenhuma consistência estratégica. O Fórum Social Mundial procurou contrapor à ideologia economiscista ditatorial um espaço de convergência de todos os movimentos sociais dispersos, como agora fazem os Indignados, os Occupy e outros que procuram organizar a contestação à situação. Mas o povo, ele mesmo, ainda não deu sinal de si.

Com maior probabilidade ele fará sentir a sua presença lá onde a produção industrial explora directamente – nos países emergentes, incluindo o Norte de África – e não tanto lá onde o saque e a expropriação são a prática dominante, como na Europa do Sul, neste momento. Mas a história não está escrita para o futuro e os nossos conhecimentos muito lacunares e falíveis.

Condenados a sermos vítimas do saque, organizado pelas nossas classes dominantes, a quem o voto organizado pelo sistema político tem vindo a legitimar, podemos reagir? A Grécia mostra que é possível reagir eleitoralmente. A Islândia mostrou que provavelmente as eleições não são suficientes para fazer vincular os dirigentes, independentemente da sua vontade pessoal declarada, às promessas eleitorais. Lição essa confirmada pelo facto evidente da mentira ter passado a ser admitida em campanhas políticas como tendo direito de cidadania em grande parte dos países da Europa. Sem pressão na rua, não haverá mudanças políticas. E os sindicatos e as polícias têm sido chamados a prestar esse serviço à classe dominante, no quadro da competitividade geral reclamada pela última àqueles que tenham pretensões a não serem dispensados dos serviços, no imediato.

Mas na Europa mais a Norte continua a viver-se como se a crise fosse culpa dos povos do Sul e dos imigrantes. Perante as evidências, as classes médias denunciam-se mutuamente como dispensáveis, na esperança de ainda terem direito à reforma quando chegar a idade. Não percebendo que a questão da segurança social não é um problema de contabilidade mas de solidariedade.

Os economistas peritos a quem os media pagam principescamente para explicarem aos espectadores o que se passa – sem que estes percebam na realidade nada de fundamental (senão lá se acabava a razão de ser da função) – são os ideólogos alegadamente científicos no nosso tempo. Eles surgiram e mantiveram-se historicamente quando passou a ser necessário explicar a legitimidade do roubo que passou a ser a estratégia fundamental do capitalismo, no Ocidente, a partir dos anos 80, com Reagan e Tatcher. Instalado o sistema de transladação da produção para fora do território Ocidental e esgotadas as virtualidades do consumo a crédito dos países ricos (a que entretanto foram promovidos os países do Sul da Europa), há que reorganizar os direitos a privilégios a nível global. É o que se chama a competitividade global entre as classes médias, abandonando os respectivos povos como empecilhos a ascensão individual de cada um. Como diz o nosso primeiro-ministro: “Emigrem e tornem o desemprego numa oportunidade!” Como acontece com os imigrantes, alguns morrerão pelo caminho, mas são os custos da selecção, vistos do alto dos privilégios dos que servem directamente os lucros dos senhores do mundo.

À medida que se torna não apenas evidente a estratégia de saque mas também quem são os alvos desse saque, a democracia e o Estado de Direito, na verdade já muito abalados e manipulados por interesses estranhos ao Povo soberano e às regras milenares do Direito, tornam-se impossíveis de exercer. Isto é: lutar pela democracia e pelo direito são objectivos políticos relevantes e prioritários, a que a luta por uma outra economia deve estar articulada, senão mesmo subordinada.

2012-05-13


Homenagem

Carta manuscrita pelo companheiro farmaceutico grego, reformado de 77 anos, que se suicidou no dia 4 de Abril de 2012, em frente ao Parlamento Grego.

Fê-lo no mesmo local onde passou 3 meses da sua vida com os Indignados.
 
" O governo de ocupação de Tsolakoglou * aniquilou literalmente os meus meios de subsistência, que consistiam numa reforma digna para a qual me quotizei durante 35 anos (sem qualquer contributo do Estado). Como a minha idade já não me permite uma acção individual mais radical ( ainda que não exclua que se um grego tivesse empunhado uma Kalachinikov eu teria sido o segundo), eu não encontro outra solução que não seja uma morte digna, porque recuso procurar alimentos no lixo. Espero que um dia os jovens sem futuro empunharão as armas e pedurarão (enforcarão) os traidores, como fizeram os italianos em 1944 com Mussolini, na Praça Loreto de Milão."
 
 * O general Tsolakoglou, que assinou a amnistia com as forças invasoras alemãs, foi o chefe do primeiro governo grego sob a ocupação nazi (de 30/4/1941 a 02/12/1942). Na Grécia o seu nome é sinónimo de "colaboracionista".

 

Crise, Corrupção e Sociedade

 


As evidências da nossa miséria:

 

Censura na Rádio:
http://ww1.rtp.pt/multimediahtml/audio/este-tempo/2012-01-24/105930
Censura na TV:
http://www.publico.pt/Media/rdp-acaba-com-espaco-de-opiniao-que-serviu-de-palco-a-criticas-duras-a-angola-1530455
Mortes silenciosas:
http://www.rtp.pt/noticias/index.php?t=Doentes-faltam-a-tratamento-por-falta-de-dinheiro.rtp&headline=20&visual=9&article=520630&tm=2

 


A qualidade da informação e a qualidade das ideias

Hoje foi dia de manifestação dos indignados e os jornalistas oficiosos foram destacados para cobrir “a violência”. Em directo, no telejornal dizem qualquer coisa como “Foi tudo pacífico, com excepção da escaramuça provocada por um bando de nacionalistas que entrou na manifestação para provocar”. A maneira como o pivot enquadrou as imagens, porém, já tinha feito todo o efeito desejado: “Houve outra vez violência na manifestação dos indignados” disse por outras palavras, ao mesmo tempo que uma nuvem de fumo encobria gente com paus e polícias a correr. No terreno o jornalista tenta evitar a mentira, mas sem hipótese de lhe escapar, na prática.

Na verdade apenas assisti à notícia passada num dos telejornais. Mas aposto que esta descrição é boa para os outros. Embora todas as manifestações em Portugal sejam ultra pacíficas, comparadas com as manifestações pacíficas que se fazem em qualquer parte da Europa, por razões de activismo político dos editorialistas dos media de referência os telejornais insistem em fazer coberturas das manifestações com critérios inversos aos usados para cobrir as guerras. Neste último caso é preciso o wikileaks para apresentar testemunhos de crimes de guerra – e por isso os seus alegados autores são sujeitos a tortura nos EUA, sem que isso mereça mais do que envergonhadas e efémeras referências mediáticas ao vergonhoso caso de condenação pré-judicial de um crime de consciência, como o do soldado Bradley Manning, http://pt.wikipedia.org/wiki/Bradley_Manning. O que seria se a coisa se tivesse passado na Rússia ou na Venezuela? No primeiro caso, no caso de cobertura de manifestações hostis ao governo cuja importância não possa ser ignorada, qualquer provocação, seja da polícia, seja dos neo-nazis, seja de quem for, (e não é que elas sempre acontecem?) dá notícia de primeira página, capaz de encobrir tudo o resto e de assustar seja quem for que se possa interessar pelo fenómeno e de quem, desinteressado, passa a ficar temeroso das consequências das manifestações para a sua vida quotidiana.

Se isto não é censura, censura das ideias que são apresentadas por essas manifestações, não sei o que é censura. Mas é censura feita pelos próprios responsáveis pela comunicação, sempre a perguntar: “Digam lá o que é que querem? Digam lá qual é a alternativa?” sem nunca darem nenhuma oportunidade de enunciação que não seja em termos de linguagem corporal. Não se trata de censura prévia: é censura ideológica, como num país totalitário mas, ao contrário do que acontecia na antiga URSS, nas sociedades ocidentais actuais é através do ruído que se impede a difusão de ideias competentes.

Ao ponto de mesmo as pessoas mais bem-intencionadas e informadas serem capazes de dizer barbaridades com o ar de quem fez um estudo científico e concluiu com uma ideia inovadora. O Juiz Rui Rangel, muito dado à mediatização por convicção, apareceu num programa de entretenimento anteontem e disse: “a maioria dos presos em Portugal são estrangeiros”. Donde deduz que a abertura de fronteiras é um mal que permite a entrada dos criminosos e, por isso, devia ser fechada.

Porque será que antes de fazer estas afirmações o senhor Juiz não visitou os sites com a informação de que em Portugal 1/5 dos reclusos são estrangeiros (e não metade) e que em Espanha, na Grécia ou em Itália – onde o número de estrangeiros presos é muito maior do que é Portugal, uma maioria passa para esses países através da fronteira vigiada (e não pela fronteira aberta, que não existe com o Norte de África ou com a Albânia). Porque não leu os livros do ministério da justiça em que se mostra como os estrangeiros são discriminados negativamente pelo sistema de justiça, incluindo, certamente, por juízes preconceituosos (acrescento eu lembrando-me de casos que me vieram à memória). Como é possível que não ter em consideração o facto científico de ainda ninguém ter conseguido mostrar haver uma relação entre o número de crimes e o número de presos, como de resto referiu de passagem, reconhecendo que o número de prisioneiros é Portugal é desproporcionado relativamente à experiência quotidiana, e inferir – sem mais explicações – que a presença de menos estrangeiros em Portugal resultaria em menos crimes?

O mediatismo tem destas coisas: por um lado, os comentadores esticam-se em áreas que desconhecem e, por outro lado, fabricam a mensagem em função dos seus objectivos políticos, de forma compaginada com os objectivos dos editorialistas que os convidaram. Juntam a isso o gosto de verem as suas frases aceites pelo público, de modo a maximizar a possibilidade de voltarem a ser convidados. O resultado não é saudável nem para a verdade nem para o discernimento popular.

2012-01-21


A Drª. Ferreira Leite, a corrupção e as gafes premonitórias

Às Claras, blog


Bom Ano Novo

Recordo-me de uma disputa, no final de 2009, sobre como isso da corrupção ia acabar: bem – dizia um amigo - menos bem: quer dizer, tudo na mesma - dizia eu. Nenhum de nós imaginava que ia acabar tão mal. Afinal, ao contrário do que as nossas boas vontades imaginavam, as troikas deste mundo estão a milhas de se preocuparem com a corrupção: na melhor das hipóteses julgam que é o preço para lubrificar as máquinas económicas e administrativas. Na pior das hipóteses, aquilo que eu imagino que é corrupção é o são funcionamento do sistema.

31-12-2011


Política ou economia?

A chegada do novo ano traz aos nossos encontros com as pessoas de quem gostamos duas prospectivas distintas: a) o que se vai sofrer em 2012; b) o que nos vamos transformar. O primeiro modo faz-nos sentir hipócritas quando automaticamente desejamos Bom Ano Novo e logo nos corrigimos com qualquer graçola à situação política. No segundo caso procuramos em quem confiar para entrarmos na luta por uma vida e um mundo melhores.

Para mim a ideia de convergência e alternativa far-se-á fora do quadro político tal como ele está actualmente fechado. Sempre me pareceu a ideia de unidade de esquerda - muito citada e jamais fundamentada entre nós - um tique ideológico nefasto, tolerável apenas por escassez de projectos emancipatórios.

Também nunca me pareceu essencial ter uma posição tecnicamente fundamentada sobre o que fazer com o problema da dívida. Porque, que eu saiba, as dívidas não nascem no ar. A dívida de que se fala - e que os governantes recém eleitos desde 2001 descobrem sempre cada vez mais gorda e disforme como justificação para desdizerem o que tinham acabado de prometer - é uma invenção política: é uma vigarice. E as vigarices apenas são desmontadas por um golpe emocional, quando o otário percebe que vai ter que se assumir contra o vigaro e contra qualquer argumento, por mais técnico que pareça.

Sigo com a atenção possível os debates sobre como entender a dívida, nos seus meandros económico jurídicos. Mas há uma coisa que me faz espécie: então a constituição e a concertação social pode ir às malvas quando se trata de reduzir salários; já os contratos de interesse dos mais poderosos têm tanta força que se debate a introdução na constituição do limite da dívida? A minha conclusão é que há dois mundos: aquele onde os contratos são para cumprir e um outro em que os contratos são para rasgar e a lei do mais forte é prevalecente.

Para mim a dívida é consequência disso mesmo: do espartilhar do mundo social em dois, protagonizado por castas diferentes e cada vez mais apartadas entre si. Os globalizados, beneficários da exploração planetária dos recursos e dos jogos de bolsa. Os localizados, que não têm dinheiro para os transportes. Como se dizia aquando da queda do muro de Berlin, o Ocidente que não se ria porque pode viver um retrocesso semelhante à ex-URSS.

Temo efectivamente a calamidade num país que depende de divisas para 80% do que se alimenta. Imagino que um temor semelhante explique o comportamento "normal" dos portugueses. Outra parte da explicação será a radical desorganização popular levada a cabo pela democracia nestas últimas décadas, temerosa do povo que saiu à rua em 1974/75. Se a causa da primeira limitação estratégica pode ser assacada à direita do regime (incluindo o PS) - que conduziu as manobras de atracagem e rendição à UE - a segunda limitação deve ser assacada à esquerda que temos.

A falta de iniciativa e autonomia da parte cívica da sociedade portuguesa não pode resultar do salazarismo. Já passou muito tempo e ou o salazarismo se continuou na democracia ou então a própria democracia adoptou para si estratégias de censura e de obscurantismo intelectual como forma de dominação. Em qualquer caso - tenha a democracia jamais existido ou estando ela em decadência - é ela que é prioritário repensar: como legitimar o poder político e a participação cívica de modo transformar a decadência num rejuvenescimento.

Nunca ninguém viu uma cleptocracia (nem um vigarista) fazer auto-crítica, a não ser que seja forçado a isso, depois de desmascarado. Por isso não é muito importante chegar a acordo sobre como se irá fazer para ultrapassar o problema da dívida. O fundamental, parece-me, é organizar uma campanha de desmascaramento da dívida, do vigarista e do regime que impediu os sinais de alarme de funcionarem, nomeadamente a existência de uma oposição eficaz e livre, dentro e fora do sistema político. Não será tarefa nem apenas para um partido ou para uma organização. Muitos programas de acção de interesse moral e político deverão mobilizar pessoas de muitas maneiras até uma massa crítica se sentir suficientemente segura para poder dizer o que pensa. E agir racionalmente em favor do que esteja a pensar.

Para mim o caminho caminhado nestes últimos meses mostrou que a convergência entre os velhos movimentos políticos da nossa geração deve e pode juntar-se aos novos movimentos inorgânicos das novas gerações. Que a política de emancipação - de resto como sempre - só será viável se se alimentar das energias dinâmicas (em grande parte emocionais) dos movimentos de rua.

Infelizmente falta muito para termos alternativa. E os movimentos sociais continuam a ser cavalgados pelos "conselheiros" dos partidos protagonistas de vitórias e vitórias até às derrocadas que temos visto. A largueza de vistas e construção de oportunidades de acção não se constroem de um dia para o outro. São, por outro lado, uma necessidade quotidiana de sanidade social e mental.

 28/12/2011


 

Uma desorganização muito bem organizada

Às Claras, blog


A guerra já começou, sim

 

A polícia exigiu a identificação dum manifestante (em Corroios, creio) com a justificação que "aparecia em demasiadas manifestações", li num post. A polícia inglesa incluiu os movimentos de acampadas na lista de terrorismo. O Estado federal norte-americano prepara-se para fazer do seu próprio território um cenário de guerra, ao autorizar as forças armadas a perseguir sem controlo judicial cidadãos norte-americanos que entendam ser perigosos ou simplesmente indesejáveis, ainda que os tribunais tenham julgado e concluído serem inocentes. A internet reflecte também este estado de guerra através da instalação de um forte sistema de censura.

Estas são apenas expressões da violência política directa organizada também na Europa contra os cidadãos, cujas expressões económicas são também evidentes.

Há quem justamente pense que a história da dívida é uma outra forma de fazer vingar a táctica disciplinar própria dos cárceres denunciada por Foucault como sendo uma das essências da modernidade. Nos EUA um terço dos cidadãos sofreram uma experiência de encarceramento antes dos 23 anos. Como há quem diga em Portugal, ser arguido ou preso é algo que acontece a qualquer um.

Alguém mais atento é capaz de se perceber isto como um estímulo à população para entrar em regimes violentos. O pretexto começa pela defesa dos direitos das crianças a uma boa educação, passa rapidamente para castigos públicos das crianças e para trabalho escravo das pessoas assim isoladas.

Há, efectivamente, todo um sistema em prática que tende a alargar o seu raio de acção, como forma de expulsar as populações excedentárias. Isso inclui a censura de livros nas escolas.

 

22 Dez 2011


“Estou-me marimbando para os credores”

É a frase do dia. Um dirigente socialista expressou-se assim e gerou muita controvérsia. Coitados dos credores, não deveriam ser menosprezados – disseram uns. Quem manda são os credores – disseram outros.

Estou em condições de esclarecer o assunto e dizer tudo residir num equívoco: o dirigente pouco conhecido não estava a referir-se a Merkozy, quando pensou em credores. Estava a pensar nos advogados oficiosos que o ministério da Justiça, antes de lhes pagar (com o atraso habitual e mais juros), quis ter a certeza de estar a dar contrapartidas de serviços efectivamente fornecidos.

O ministério descobriu que não era só nos exames para a magistratura que se copia como norma ou no Supremo Tribunal de Justiça que se faz política (neste caso não tem nada a ver com fax, nem Macau nem Universidade Independente: foi desvio correspondência dos vizinhos). Também os serviços oficiosos dos advogados são alvo de más práticas (como tudo em Portugal, parece). Ainda não é certo a quem caberá ou não punições. Um grupo de trabalho está a medir o grau de indigência dos prevaricadores para saber a quais é susceptível e aceitável o compreensível uso do direito criminal e os que estão acima de tais suspeitas pelo prestígio social que representam.

O critério já bem conhecido e estabelecido no sector da justiça, em especial no sector do crime, em que há umas pessoas para respeitar e outras mesmo com cara para condenar também funciona na economia e nos contratos de agiotagem: há credores que esperam e não bufam, se não arranja-se um pretexto qualquer para nunca mais lhes pagar, por exemplo metendo-os na cadeia. E há os credores que por esse facto passam a ter direito a mandar na nossa vida, obrigando-nos mesmo a fechar a constituição à chave, a trazer a polícia para a rua provocar desacatos, a diminuir os salários, a aumentar os impostos, a impor o trabalho não pago a favor dos lucros, a restringir o acesso dos doentes aos cuidados de saúde, a acabar com a possibilidade de usar os transportes públicos e as estradas e tudo o mais o que lhes venha à cabeça.

15-12-2011

adenda, 22-01-2012

O mayor de Chicago aplica de jacto a receita neo-liberal aproveitando a proximidade de cimeiras internacionais na cidade. A actualidade das teorias da conspiração tornam realidade pior que os nossos piores pesadelos. 


 

Corrupção social

Às Claras, blog


Este Natal, presos às malhas financeiras globais, atentemos nas prisões

Complexificar a teoria prisional é, hoje, fundamental tanto para a democracia como para o enriquecimento das nossas vidas pessoais.

À velha ideia conformista de pensar as penitenciárias como uma forma moderna, limpa, institucional, de lidar com quem quebra a lei, há que contrapor a verdade.

Seja ela qual for, essa verdade terá de incluir a sujidade e a perversidade próprias das prisões. Onde o crime se combate com o crime, a maldade com a maldade, a violência com a tortura, a morte com a morte. É claro que as prisões não são as únicas instituições sujas e perversas. São apenas aquelas que simbolizam a maldade legitimada pela sociedade, aliada aos interesses dominantes, nas costas do povo, adormecido. Quando acorda costuma acabar com isso. Infelizmente por pouco tempo.

As penitenciárias são um dos principais modelos institucionais vigentes, como dizia Michel Foucault. Idealmente o Estado e as polícias, às ordens dos governos e das seitas que habitam no seio das instituições inspectivas e judiciais, substituiriam Deus na observação radical de todos os actos humanos. Lá, onde trabalham os serviços de informação, poderão saber tudo. Como pretendem desesperadamente fingir os EUA que são capazes de fazer no mundo globalizado, para disfarçar o facto de estarem a perder autoridade aos olhos de si próprios.

Que se esforçam por contratar cada vez mais bufos,  provocadores e tropa de choque, isso é certo. Que isso lhes sirva para conhecerem melhor os anseios e os desejos do povo é mais que incerto: é seguro que quanto mais procuram a informação menos alcançam a sabedoria, cf. http://www.youtube.com/watch?v=_cu00tQp4Ng. É claro que também no Portugal moderno se seguem as tendências da “civilização”, em particular no campo da inibição do direito de manifestação e de expressão que tanto continua a preocupar os nossos políticos, quase 40 anos depois da revolução que aboliu a censura e desmantelou a polícia política: agora temos “agentes de investigação criminal” a provocar desacatos nas manifestações, como de resto acontece noutras partes da União Europeia, nomeadamente na Grécia, cf. http://5dias.net/2011/12/02/o-dilema-do-macedo-demitir-ou-demitir-se-direccao-nacional-da-psp-reage-em-entrevista-as-provas-apresentadas-na-rede-relativas-a-violencia-policial-e-a-existencia-de-agentes-provocadores-na-manif/.

Procuram o Povo por entre os manifestantes. Os que tomaram para si e para os seus as instituições públicas sentem-se acossados. Só não compreendem que é a sua própria (má) consciência (terão outra?) que os persegue. Mas vingam-se na mesma no primeiro que estiver à mão.

Ora o Povo não reconhece cabecilhas. Nem os cabecilhas são capazes de levantar o Povo. Tal como numa prisão, a experiência mostra que o motim e o tumulto são imprevisíveis. Por isso o que resta à polícia é provocar o mais que possa, seguindo a táctica do contra fogo usada também pelos bombeiros. Querem queimar o que haja para arder e assim reduzir as hipóteses de o Povo ter meios de exprimir aquilo que vai querer exprimir, mais tarde ou mais cedo.

As prisões não são democráticas. As provocações da polícia também não: são um serviço aos corruptos cleptocratas que se escondem nos gabinetes, com medo de descobrirem que afinal são simples mortais, como todos os outros. Que grandes bestas!

2011-12-04


A democracia ainda existe?

Há que distinguir o que são movimentos democráticos dos contributos de outros movimentos sociais para as concepções da democracia.

Os movimentos democráticos são cíclicos, o que levou os filósofos modernistas a afirmarem, com grande sucesso universal, a tendência da natureza humana para a liberdade, a igualdade e a fraternidade. Outros filósofos, cépticos relativamente à democracia, verificam como tais movimentos de democratização das sociedades jamais conseguiram atingir um estado próximo do idealizado (Rousseau, Thomas More) e como, por outro lado, a democracia não assegura o bem-estar dos povos, acabando estes por ser transformados por movimentos carismáticos, frequentemente anti-democráticos, por vezes de uma perversidade impossível de observar noutras espécies, de que a guerra é a forma última (Hobbes, Nietzche).

A democracia é um ideal disforme que se enraizou na doutrina política ocidental seja como reivindicação popular, seja como apelo à unidade dos povos dominantes contra os dominados, estigmatizados como anti-democráticos, ao mesmo tempo explorados por tiranos e incapazes de impor a sua vontade.

Portugal sofreu desse estigma, quando os aliados no pós-guerra e os países parceiros da NATO e da EFTA aceitaram negociar com os ditadores de serviço, em nome das democracias. Sofre agora, outra vez, quando os países dominantes na UE decidiram tratar o nosso país como parte de uma vara de “porcos”, constituída pelos países do sul da Europa (PIGS – Portugal, Itália/Irlanda, Grécia e Espanha), a quem reclamam bom comportamento como a qualquer presidiário – os crimes, nomeadamente do excesso de deficit, só são admitidos quando as quantias são “demasiado altas”, tal e qual como o provérbio que diz que quem roube mais de milhão já não é ladrão.

Quem é responsável? Os representantes ou o povo? Os “responsáveis” ou os assalariados?

Internamente a Portugal, ao contrário do que aconteceu na viragem do século XIX para o século XX, a nossa incapacidade cívica de fazer funcionar a democracia leva-nos a aceitar culpabilizar-nos colectivamente pela política de pedinchice e irresponsabilidade em que nos especializámos desde 1986. “Todos somos responsáveis”, não é? Enquanto povo, preferimos não reclamar (“porque dá trabalho”; “porque não se vai a lado nenhum”) e recusar quem entre nós utiliza as liberdades cívicas (“metem-se com os poderosos? Não pode ser!”) sem ter estatuto protegido (por serem estrangeiros ou jovens ou de etnias estigmatizadas ou simplesmente diferentes nalgum aspecto).

Mas atenção. Há uma diferença aqui a fazer: temos sido todos irresponsáveis. Certo. Não quer dizer que sejamos todos responsáveis. É que alguns de nós (os que têm salários e rendimentos acima dos seus congéneres europeus e norte-americanos; os que acumulam reformas, tachos e comendas e fogem aos tribunais, fazendo uso de redes de políticos e magistrados amigos; os que ganham demais e não pagam impostos) têm partilhado com os senhores do mundo dos aumentos de rendimentos produzidos nas últimas décadas, à custa da estagnação dos rendimentos do trabalho e da exclusão de grandes quantidades de pessoas da dignidade própria da cidadania – por serem desempregados crónicos, trabalhadores precários, por viverem dos projectos de aprofundamento da pobreza e da exclusão como a criminalização da mobilidade social dos pobres através de raras formas de aliança entre os países do norte e do sul do mediterrâneo. Na Idade Média ou durante as guerras mundiais os nacionalismos e as guerras religiosas dividiam povos fanatizados, em benefício de alguns aristocratas (que se protegiam mutuamente contra os povos, apesar das lutas intestinas e traições regulares de que eram feitas as suas vidas) à custa dos povos. Povos esses que foram apanhados pela ascensão do capitalismo (e a mobilidade forçada dos campos para as cidades) para se organizarem para sobreviverem. Uma tal liberdade está hoje em dia na ordem do dia, sobretudo para os migrantes, tanto os que vivem connosco ou nos procuram como aqueles muitos que nunca deixaram de sair do país à procura de uma vida digna.

Confundir e misturar a verdade dos algozes (neste caso, os que beneficiam e continuam a beneficiar das políticas da União Europeia) com a verdade das vítimas (aos excluídos juntam-se agora, não sem vergonha, aqueles a quem os rendimentos são cortados e aumentadas as despesas com o pretexto de que para o Estado o saudável em fazer exactamente o inverso do que nos obrigam a fazer) é a grande arma dos vigaristas. Por isso desde 2001 não há campanha eleitoral em que no dia seguinte das eleições o vencedor não venha dar o dito por não dito. Da última vez, ainda este ano de 2010, a vigarice atingiu mesmo um nível superior de sofisticação. Os partidos do arco do poder anunciaram previamente que partilhariam o mesmo programa de governo, que seria aquele acordado (democraticamente?) com os poderes que os tutelam (a troika). Ganhou o aldrabão com presença de espírito de dizer que ia passar a dizer a verdade aos portugueses. Agora que é evidente que mentiu, tal como os seus antecessores, insiste tranquilamente, como qualquer vigarista mais barato, que sempre disse a verdade. Ele vai castigar-nos: vai empobrecer-nos, vai tirar-nos as gorduras, vai tirar-nos os subsídios, vai construir para nós uma boa imagem de bons pobres ou de prisioneiros bem comportados, para apaziguar à má vontade dos nossos carcereiros. Ele, qual director de cadeia, vai mudar Portugal, do mesmo modo que as penitenciárias mudam os criminosos: à porrada! 

Há esperança para a democracia?

Aqueles que pretendem tudo mudar querem que se mantenha o essencial: que os resultados da pedinchice e da irresponsabilidade políticas continuem a encher os bolsos das classes dominantes (as mais desiguais da Europa relativamente ao resto da população), com o prejuízo que for necessário fazer do lado dos mais desvalidos, por um lado, e da função pública e pequenos comerciantes, por outro lado.

Há a esperança de que um movimento democrático, por exemplo importado da primavera árabe, inspire a Europa. Mas não está predestinado. Na Europa a população está muito envelhecida e beneficia do lugar dominante no mundo – nomeadamente para importar alimentação barata – ao contrário do que acontece no Norte de África. Por outro lado temos problemas financeiros e políticos de ruptura com o sistema instalado, que terá de abrir portas a outra situação. Que se teme possa ser mais parecida com a conjuntura entre guerras dos anos 30 do século XX do que com um movimento democrático. Tal perspectiva torna mais urgente e relevante os esforços voluntaristas que se possam fazer em nome e a favor da democracia.

Para isso é útil um sobressalto democrático, nomeadamente aquele protagonizado pelos movimentos dos indignados, felizmente espalhados por muito mundo, incluindo os principais países do mundo ocidental. Para um tal sobressalto é importante discutir e aprender na prática o que seja isso de democracia, ou melhor, como dizem os nossos amigos espanhóis, a democracia real, aquela que funciona fraternalmente.

Na antiga União Soviética contava-se uma anedota sobre a divisão de um frango em casa de amigos. Um deles disse para os outros: “Vamos repartir democraticamente o frango”. Aos que os outros contestaram, para rectificar: “Não, não. Vamos repartir irmãmente!” A democracia popular, como a democracia liberal ou burguesa, ou outra qualquer forma democrática, pode ser e é interpretada e usada de forma oligárquica. Para o evitar, a democracia reclama formas eficazes de regulação, como é o caso, na constituição portuguesa, do Presidente da República, do Tribunal Constitucional ou da Assembleia da República. O problema, como também aconteceu com o Banco de Portugal relativamente ao sistema financeiro, é saber se tal papel está a ser suficientemente bem desempenhado e as instituições não estão a trabalhar fora do âmbito a que deveriam estar comprometidas, em nome da democracia. O destino do senhor Vítor Constâncio, socorrido pelo Banco Central Europeu depois de graves acusações de negligências nas suas funções no Banco de Portugal é comparável ao destino do novo presidente do Banco Central Europeu, Mario Draghi, que na sua actividade privada foi o conselheiro do governo grego para escapar aos controlos financeiros da União Europeia[1] e que, alegadamente, seria a causa próxima e moral da desconfiança dos mercados financeiros no Estado grego.

A irracionalidade da irresponsabilidade - o pior mal é a mentira

A experiência observada de longe é suficiente para ser claro para todos que não apenas a mentira generalizada tomou conta da política portuguesa como também a da União Europeia, onde uma convocação de um referendo clarificador na Grécia fez cair o primeiro-ministro por ordem do secretariado informal (ou será ilegal) que dirige a União Europeia. Cá como lá, a democracia é temida e não funciona. Não pode funcionar por decisão dos poderes fácticos que têm vindo a conduzir a ideia de Europa a uma desorientação moral radical.

É preciso reconhecer a existência de duas verdades em presença – a dos algozes carcereiros das populações imigrantes, gregas, portuguesas, e outras, e a dos povos há muito excluídos, a que a classe média assustada não se quer juntar (“nós não somos gregos”; “nós queremos pagar”), na esperança de não ser confundida com os pobres. Na verdade há que escolher entre uma e outra. E só uma delas terá potencialidades democráticas, ainda que tais potencialidades não sejam automaticamente concretizadas. Pelo contrário: o risco de guerra entre países europeus e dentro de alguns desses países é cada vez mais vezes referido. Como também já aparecem os promotores das ditaduras, a argumentar – tal como os neo-nazis, entretanto desacreditados em Portugal – que as limitações culturais do povo impedem a democracia.

O respeito ao povo como soberano nem os “democrata” o manifestam. Eis o grande problema.

Por isso chegámos ao ponto em que estamos: a irracionalidade mais radical e assumida no poder, alegando a seu favor que ao menos o actual vigarista de serviço tinha avisado que não iria faltar à verdade: “não vou aumentar os impostos” (dos ricos) eleitoral = “os portugueses (pobres e remediados) vão empobrecer com esta política” pós-eleitoral.

Resta-nos arrepiar caminho e, de preferência, voltar à democracia. Como fazê-lo? Seguindo a pista apontada por João Pina Cabral,[2] desenvolvendo os movimentos que dão contributos para a democracia. E quais são esses movimentos?

A luta pela democracia reclama convergências na acção e consciência da sua necessidade

Um dos movimentos democráticos mais antigos identificado é a Revolução Axial,[3] com mais de 3 mil anos. Ao mesmo tempo que começaram a surgir instituições estruturadas, a política organizou-se como campo auto-referencial de tomadas de decisão, implicando terceiros em larga escala. A política foi tratada de duas formas radicalmente distintas: a) como propriedade das oligarquias dominantes que se sucediam, em nome de um deus ou de um herói; b) como espaço racionalizado de participação colectiva, de que a democracia é um exemplo, sempre limitado pelos limites da cidadania (excluente dos escravos, dos estrangeiros e também dos inertes – por incapacidade ou por ignorância).

As lutas por valores como dignidade ou liberdade são partilháveis por ambas as concepções (e interesses) envolvidos nos processos de institucionalização. As lutas pela transparência e pela igualdade, nomeadamente de acesso à dignidade e à liberdade, são típicas da revolução axial participada (por contradição com a revolução axial oligárquica). Onde esta revolução tenha vingado alguma vez, a cultura partilhada entre os poderosos e os seus súbditos incluiu algum tipo de reconhecimento do direito dos últimos a julgarem a legitimidade das acções institucionais e a obrigação dos primeiros em facilitarem tais processos. A célebre frase “A César o que é de César e a Deus o que é de Deus” pode ser interpretada como a referência à disjunção entre os critérios da revolução axial (simbolizada por César, que por muito poderoso que fosse não poderia ser comparado com Deus) e os anteriores (em que Deus não é contactável a não ser através dos sobrenaturais mistérios existências ou dos êxtases dos Profetas).

Neste horizonte, todos temos de ser democratas, uma vez a democracia experimentada. O que não significa que alguns não trabalhem para limitar a democracia. Isto é: se a democracia for entendida enquanto um estádio natural da existência humana, que não depende do esforço das sociedades para a desenvolver ou recriar, a opacidade, a confusão ideológica e mediática, o negócio da venda de ideias e ideais, a traição dos amigos e parceiros, tudo passa à conta da liberdade e da diferença, tornando os responsáveis em irresponsáveis (na altura de receberem os cheques e as benesses). Deixam as responsabilidades dos cheques por pagar e das humilhações aos povos atarantados. Como aconteceu com a banca, com os políticos, com os media oficiosos, com os tribunais, nos últimos anos, incapazes de um mínimo de autocrítica e, portanto, de mudar os comportamentos.

Exemplos de movimentos incluídos na revolução axial são os movimentos de autonomização dos concelhos, a filantropia, os movimentos feministas, o movimento operário, os movimentos sindicais, os movimentos para a educação popular, os movimentos para a saúde pública, a contenção das guerras ou pacifismo, o movimento ecológico, os movimentos de urbanidade, os movimentos pela mobilidade, movimentos dos direitos humanos. Dentro destes movimentos, uma parte é democratizadora. Mas outra parte é oligárquica: mesmo sabendo que usurpa o poder, aproveita toda a opacidade e confusão ideológica para desincentivar, nomeadamente burocratizando-os, os processos de auto-regulação social e pessoal – por exemplo através da generalização dos currículos vitae e das avaliações de desempenho amesquinhantes e desqualificantes.

Escamotear o repugnante: sinal de descrédito da democracia

Actualmente a liberdade na boca dos políticos norte-americanos quer dizer direito ao petróleo e a negociar com dólares em qualquer parte do planeta. Movimento operário, para alguns dos seus adeptos, não é uma ambição democrática mas hegemónica, contra todos os outros movimentos sociais que, segundo esses, deveriam estar (ou então ser) subordinados à oposição oficial ao status quo, na verdade parte integrada do mesmo. Direitos humanos, estado de direito e democracia são frases soltas utilizadas pela NATO e pela União Europeia para dar lições ao mundo, cada vez mais céptico perante a degradação da situação interna nitidamente suicida em que as classes dirigentes se recusam a ceder privilégios, nem que para tal se vejam confrontadas com o desfalecer da nossa civilização perante o mundo, nomeadamente países e povos a quem oprimimos durante séculos.

Todos estes movimentos, tal como a revolução axial, são contraditórios em si mesmos: são reacções a situações identificadas como repugnantes e, em determinadas condições, passam a ser alvo de esforços sistemáticos e transformação das condições institucionais e de existência que reproduzem o problema. Na verdade, a sua tematização é que torna repugnante aquilo que, de outro modo, a maioria das pessoas sentiria como normal e não problemático, à custa do sofrimento estruturalmente determinado de uma minoria. Pelo que a solução de um problema levantado terá, logicamente, três soluções: a) abolir a possibilidade de referência ao problema, tornando-o ou mantendo-o tabu; b) abolir o problema e, desse modo, deixa de haver razão e sentido para falar dele; c) fingir que se trabalha para abolir o problema, tornando-o de facto tabu, num passe de mágica próprio da psicologia com que os vigaristas seduzem as respectivas vítimas.

Não é difícil identificar qual seja a solução modelo actualmente em curso e a necessidade, para quem se identifique com as vítimas, de romper com esse mau-olhado, com esse sistema perverso de sedução, exactamente igual – na sua natureza – àquele que liga as mulheres batidas ao seu agressor (amoroso ao mesmo tempo que espanca e amesquinha) ou as crianças ao seu abusador (que lhe traz guloseimas em troca da violação e do silêncio). Os portugueses devem suspender a democracia durante este mandato, diz-nos o governo. Justifica-se por isso ser de modo a não dar mau aspecto aos senhores do mundo e a apaziguar-lhes os nervos em que andam. Como o polícia bom, o “nosso” governo informa de que depende do nosso comportamento no empobrecimento podermos um dia voltar a ver a luz dos seus queridos mercados. O que ocorrerá quando o polícia mau o permitir, como se tal situação significasse alguma forma de liberdade ou de retorno ao passado (o que não é de facto o caso).

É preciso reinventar a democracia adaptada aos novos tempos

A democracia é o resultado, em cada momento, de processos de civilização que de forma nenhuma são irreversíveis. A democracia foi mais recentemente desenvolvida pelos iluministas, presos nas cortes aristocráticas que concentraram o poder dos Estados modernos. Queriam e foram obtendo, através do uso das liberdades que o conhecimento reclamava, direitos de intervenção indirecta na governação, por exemplo através dos salões aristocráticos, eventualmente contra os senhores que os recebiam. Esse jogo perigoso instigou muitas guerras contra a guerra (não são todas assim?) e trouxe aos campos de batalha os povos que foram tomando consciência de si. Ao ponto de pensarem que dispensando o rei, o símbolo da institucionalização, poderiam tornar o próprio povo soberano.

Desde esses tempos até hoje muito a democracia evoluiu. Deixou de ser uma ideia elitista para ser um direito/dever universal, partilhado por pobres, mulheres, jovens até por condenados e alguns estrangeiros. Mas o direito à participação ainda excluiu muita gente – sobretudo estrangeiros ou (nalguns países) os presos – e, sobretudo, excluiu a maioria das pessoas, por se resumir a política à governança, como hoje se diz, isto é à relação entre os peritos e especialistas (herdeiros das antigas classes liberais de cariz aristocrático, beneficiando de liberdades especiais, como os intelectuais ou os sindicalistas ou os representantes da sociedade civil) e os decisores políticos e empresariais. Aos assalariados resta a posição de receptáculos de propaganda – entregue pelos media, juntamente com as requentadas novidades de consumo – e de figurantes nas manifestações ou nas eleições. 

A democracia popular que acabou com muito do que no século XIX era conhecido como despotismo asiático. Acabou ela mesma contestada por não ser afinal democracia nenhuma. Teve, todavia, a virtude de trazer o ocidente (como o leste da Europa, também) numa luta pela democracia em função do privilégio dos interesses do capital, de um lado, e da burocracia, por outro. A implosão da União Soviética podia ter sido uma forma de trazer à democracia as qualidades democráticas de servir o povo a juntar às qualidades de servir o desenvolvimento económico, intenções posta em prática pela social-democracia europeia – a que nominalmente aderiram muitos partidos dos países de Leste europeu e também partidos conservadores e comunistas da Europa ocidental. Porém, como muitas vezes ocorre, enquanto as intenções se afirmavam a realidade da vida afastava-se para outros paradigmas existenciais, a que actualmente se associa geralmente as ideologias neo-liberais.

Basicamente, a partir do momento em que a democracia burguesa (mais exactamente a democracia das multinacionais) passou a ser a democracia vencedora da Guerra Fria, a disputa ideológica que animou a democracia deixou de ser relevante – foi o fim das ideologias ou o fim da história, como alguns intelectuais registaram esse novo sentimento de relaxamento relativamente à política. Em poucos anos a política voltou a ser a porca de que nos falavam os autores populares do século XIX, entregue à discricionariedade dos privilegiados, pessoas que não se fizeram rogadas em se corromperem nessa mistura de gente importante, à medida que a subordinação se desenvolvia tão depressa quanto a repugnância/admiração das pessoas ”comuns” face ao enriquecimento ilícito e acelerado, assim como face às cumplicidades secretas que tal gente tem de conter dentro de si. Os privilégios, portanto, embora expostos como troféus, são escondidos da escrutínio público pelas próprias instituições políticas, mais preocupadas em defender os mal feitores que eventualmente albergam do que em prestigiar a sua legitimidade democrática e do regime de que fazem parte.

Capazes do melhor e do pior, os seres humanos precisam de dedicar a si próprios muita atenção, se querem evitar o pior e potenciar o melhor. Darmos por segura a democracia, eis o momento a partir do qual ela se nos começa a escapar. Já lá vão trinta anos a procurar dar “segurança” à “democracia”, especialmente contra os estrangeiros. O Estado de direito e os direitos humanos são indicadores seguros da degradação da democracia no ocidente, de que Guantanamo, Abu Grahib, a destruição do Iraque e da Líbia, os negócios do ópio no Afeganistão e, em geral, as guerras do petróleo enquadradas por mentiras oficiais e oficiosas, transmitidas caninamente pela generalidade dos órgãos de comunicação social, são provas evidentes e suficientes. A ponto de se poder (dever?) dizer que a democracia já não existe. Que é o que melhor se adequa dizer quando se assiste à proibição da França e da Alemanha da continuidade do governo grego em funções, por alegada traição do primeiro-ministro grego aos parceiros credores, à margem de qualquer formalidade institucional na União Europeia ou na Grécia.

 

 

01 Nov. 2011


 

Processo de desmocratização em curso

Se um grupo de gente se decide suicidar, aqueles de entre eles que prefeririam não o fazer podem escolher? Em qualquer caso, uma democracia poderá lidar com uma tal situação?

Há casos conhecidos de seitas cujos chefes decidiram suicidar-se. E porque gostavam de ir acompanhados, tomaram a decisão por todos os membros da comunidade. E a maioria seguiu-os. É isso compatível com uma democracia?

A democracia não é só o voto. Há casos em que perante uma assembleia de eleitores as alternativas são a do profeta da desgraça e a do profeta da treta, qual polícia bom – polícia mau que mudam e posição de modo a dominarem a sua vítima. Tomando o exemplo português, é precisamente isso que tem acontecido desde o discurso da tanga. É essa uma situação compatível com uma democracia?

Em Portugal as vozes anti-democráticas nunca se deixaram de ouvir e de se encontrarem para construírem as suas sociedades secretas, nos corredores do sistema que os encobre e que pagam para os encobrir (são, entre outros, os chamados empresários do regime). Mas nunca se ouviram tanto como actualmente, à medida que o processo de desmocratização na Europa reclama por actividade política em Portugal. E essas vozes estão no poder. Como disse Cravinho por várias ocasiões, a corrupção é um assunto de Estado ao mais alto nível, porque é lá que estão os actores dominantes.

Hoje é perfeitamente claro o que ele quer dizer: os fundos de capitais roubados não têm fundo e os contribuintes que vivem em Portugal estão a ser chamados a pagar as dívidas dos vigaristas que tomaram conta da política e do Estado. A coisa chegou a tal ponto que, como acontece com qualquer pessoa vigarizada por pessoas a quem estima, são as próprias vítimas que acham que não há alternativa ao suicídio nacional para, em verdade, manter os benefícios possíveis aos beneficiários do sistema nas últimas décadas (muitos deles já beneficiários de décadas anteriores também).

Diz Teixeira dos Santos que não se pode criminalizar os políticos pois assim nunca mais ninguém quereria assumir responsabilidades. Dizem outros que é pouco democrático falar de classe política, porque afinal são cidadãos como outros quaisquer. Mesmo os políticos da oposição crónica, os que estão fora do arco do poder – por alegadamente serem pouco fiáveis do ponto de vista das suas crenças democráticas, a ponto de os segredos de Estado lhes serem vedados, apesar dos estatutos políticos e administrativos que possam ter – reclamam contra a denúncia implícita na expressão classe política. Não seria preferível reclamarem pela democracia e demarcarem-se politicamente , denunciando-as, as farsas que temos vivido?

A questão é esta: quem quer a democracia? Será compatível a democracia com o suicídio colectivo? Ainda por cima um suicídio cobarde, em que primeiro se deixam morrer à fome e por falta de assistência na saúde os mais frágeis, mantendo os profetas da desgraça (ou do sucesso – eles são os mesmos!) os respectivos níveis de vida e boas perspectivas no futuro, seja por já serem membros da classe política, seja porque aspiram a integrá-la.

Há sim uma classe política: é constituída pelos circuitos de corrupção apoiados e encobertos por seitas secretas que dominam complexos institucionais centrados em partidos, comunicação social, empresas de advogados, bancos, construção civil e monopólios sectoriais. Quem não quiser misturar-se com ela que se afaste (denunciar entra no ruído mediático como qualquer outro sabonete). Essa classe política é representante do país na EU, ela própria pouco interessada na democracia e muito atenta à defesa de privilégios, a começar pelos seus próprios funcionários e gestores. Reformas mais cedo e salários mais altos. E para que não restem dúvidas, a EU prepara-se para decretar (como se isso fosse legítimo) a inimputabilidade criminal dos seus colaboradores. É como se o regime nazi viesse decretar a inimputabilidade dos seus partidários na esperança de que quando a coisa estoirasse tivessem uma base legal de argumentação.

É a mesma lógica com que os EUA aprovam os tratados internacionais sob a condição de eles não implicarem nenhumas consequências punitivas para os cidadãos ou instituições norte-americanas. É a mesma lógica pós-democrática (é mais moderno do que anti-democrática) que está a tornar o mundo ocidental irrespirável e alvo de uma saudável e persistente contestação dos indignados.

Não: não vivemos em democracia, pela singela razão de que isso não existe. O que há, isso sim, são processos de democratização, como aquele que Portugal viveu a partir de 1974. Apesar de todas as complicações e apreciações que se fazem do período da revolução, ninguém jamais se atreveu a dizer que não era e não foi um período de democratização. O que não quer dizer que fosse um período de vigência da democracia, precisamente porque houve vítimas das injustiças que ocorreram nesse tempo. A diferença é que hoje ninguém quer saber das injustiças e todos se querem convencer que se vive a democracia, como se nunca mais isso pudesse ser alterado. Como se a democracia pudesse ser compatível com o suicídio selectivo e consciente dos mais fracos e nos bastasse tapar o nariz para nos convencermos de que tudo vai no melhor dos mundos possível.

Aos democratas resta insistir em afirmar que a ordem de suicídio não é democrática, ainda que sufragada por votos: nenhuma maioria pode condenar nenhuma minoria, em democracia. Se 25% dos portugueses ou 60% (é indiferente) aceitam deixar morrer 1% ou 5% da população sob a nossa responsabilidade colectiva, com o pretexto de agradar aos credores dos vigaristas que traficaram e continuam a traficar dinheiro para os seus próprios bolsos, por muito que a comissão eleitoral, os dirigentes partidários, o tribunal constitucional e o presidente se ponham de acordo para dizer que as instituições estão a funcionar, cabe aos democratas mostrar que isto está nos antípodas do que seja uma democracia (o Salazar, nesse caso, também foi um democrata: como o nosso Estado actual, era sério com as finanças e impunha a sua vontade nas urnas).

Hoje os nossos manda chuva não são nacionalistas, como o foi Salazar. Mas estão, como ele estava, preparados para matar tantos portugueses quanto necessário para manterem as fontes de rendimento do Estado ou de quem dele se apossou. A democracia denunciou isso, para o caso do Salazar. Precisa de ser capaz de denunciar o mesmo no caso desta república que já nem banana tem.

O problema, então como agora, é encontrar democratas.

2011-10-30


Quem sabe o que se está a passar?

Há alturas históricas em que a sabedoria é um valor especialmente importante. Trata-se, no fundo, de evitar gestos falhados e economizar o máximo de energias para obter os fins que, por um lado, são inevitáveis – dadas as circunstâncias – e, por outro lado, reclamam acção voluntarista de pessoas que irão ser sacrificadas para o bem-estar de todos. Vivemos uma dessas alturas históricas.

Em tais épocas os oportunistas saem à rua com os seus ismos prontos a vender, a tentar a sua sorte (e também a nossa). Aquilo que nunca serviu para explicar realidade nenhuma pretende agora, quando a época da mudança chegou, configurar aquilo que há-de vir a cartilhas conservadas em formol para serem usadas em ocasiões de agitação. As pessoas resistem como podem a tanta inteligência. Mais do que descobrir a roda ou a economia científica querem, isso sim, saber o que fazer e como proceder. Nesse aspecto – é bom insistir neste ponto e não o perder de vista – as ideologias prefabricadas são um obstáculo. São o obstáculo da democracia. São uma cacofonia que nos atazana a cabeça à qual, porém, é possível desenvolver repugnância e criar anti-corpos: experimentemos pensar pelas nossas próprias cabeças, sobretudo desenvolvamos aqueles pensamentos que mais irritam os líderes de opinião.

O saber económico, pelo menos desde o século XIX, é uma treta de uma ideologia, misturando noções de economia doméstica com estratégia empresarial e jogos de poder. Hoje em dia, a expansão das qualificações escolares fez expandir também o efeito alucinogéneo da teoria económica oficial. De que vale dizer que há economia científica – daquela que não tem certezas mas antes tenta ajudar a compreender a realidade – quando tudo pode ser explicado pronto a pensar por dúzias de professores de economia pagos para irem à televisão vender a mesma ideologia que vendem quotidianamente nas universidades, depois de terem expulsado os que pensam de forma diferente?

Quantas pessoas aguardam para que 2013 sejam o fim da austeridade, só porque o ministro das finanças disse ter fé de no fim desse ano o Estado poder voltar aos mercados financeiros? Quantas pessoas vivem os dramas dos governantes como se fossem problemas seus, sem desconfiarem que é precisamente o inverso: os nossos problemas são o resultado do bem-estar dos nossos governantes.

Não é preciso eles serem más pessoas para que tudo resulte mal. Basta que sejam adversos à sabedoria que nos convém: a sabedoria da solidariedade entre aqueles que têm mais e os que têm dificuldade em sobreviver. Como o Salazar, podem ser excelentes amigos dos seus filhos e das pessoas que os rodeiam. Como governantes, por serem filhos de quem são ou simplesmente por serem formados nas nossas universidades, servem-se do Estado para os seus fins privados como se fosse impossível ser de outro modo.

Acreditar numa ideologia, participar num partido, experimentar governar são actos condenáveis, em si? Não. Muitos portugueses ajudaram a construir partidos mesmo antes de eles serem legalizados, as ideologias circulam livremente mesmo em regimes ditatoriais. A dedicação ao bem público é uma motivação compreensível e eventualmente louvável, quando não é associada a vícios capazes de perverterem o que de positivo isso tem. Muitos outros manifestam-se criando partidos novos, aderindo a novas ideologias, participando no desenho de políticas públicas sectoriais quando há alguma abertura para tal.

Nada disso, que deve continuar a existir, naturalmente, está em causa. Acontece nesta fase histórica de desconstrução e reconstrução social e económica querer resistir (como dizem muitos à esquerda) ou repor as condições anteriores à crise financeira de 2008 (como diz o governo) não só é, na prática, a mesma coisa (uma impossibilidade!) como inibe o desenvolvimento do trabalho colectivo necessário á adopção de uma perspectiva sábia para a resolução do embrulho histórico em que estamos metidos. Mais do mesmo, no governo e na oposição, bem como na sociedade civil e nos movimentos sociais, não serve. Todos sabemos que temos que mudar. Mas como?

Durante dezenas de anos explicaram-nos que o melhor investimento era na habitação. Preços sempre a subir, juros baixos, longos anos de hipoteca, permitiram a cada família assegurar à sua própria custa o direito de viver numa habitação condigna. Os críticos explicavam que desse modo as famílias hipotecavam também a sua vida aos bancos. E que ficariam segregadas nos bairros de classe única. E que teriam graves problemas de transportes entre a casa e o trabalho e para mudar de local de emprego. O que os críticos não previram foi a crise financeira, nem podiam prever a resolução que lhe está a ser dada.

O Banco Central Europeu assegura a estabilidade dos preços e a constituição portuguesa assegura a estabilidade dos salários da função pública. A concertação social assegura a contratualização das políticas de rendimentos e preços. Quem poderia imaginar a ruptura suave que estamos a viver com o Estado de direito e com a contratualização das relações sociais do trabalho? Apesar das queixas reiteradas de que o Estado de Direito não existe e de que os direitos trabalhistas estabelecidos na constituição não são respeitados, ninguém levou (nem leva) a sério tais denúncias, que envergonhadas se calaram. Como na história do Pedro e do Lobo, agora que o Lobo está em cima da nossa carcaça, bem podem gritar que nos estão a roubar – é tarde. Falta-nos a democracia verdadeira, para além das ideologias. Falta-nos uma compreensão das razões pelas quais ficámos órfãos de dirigentes credíveis e ao serviço do bem-estar das populações.

Uma das razões é que as nossas casas e os nossos carros, melhores que os do vizinho, são o nosso estatuto social. Ou melhor: precisamente porque não o são de facto, na dúvida, adoptámos o péssimo hábito de não falar ao vizinho e fazer dos bancos e dos políticos, através das televisões e dos jornais, os nossos amigalhaços. Eles organizaram-nos o nosso crédito e esmagaram as nossas poupanças, tal era a confiança que depositámos em tais vigaristas. A pirâmide que foram construindo com base nos nossos rendimentos futuros, com base nos quais estimaram a nossa capacidade de pagar a dívida ao longo da vida, chegou – como sempre chega – a um ponto de ruptura: os jovens já não podem entrar no jogo e, por isso, os velhos deixam de poder ser pagos pelas novas entradas de dinheiro – lá se vão os créditos das hipotecas, que deixam de poder ser pagas.

Em desespero de causa, os norte-americanos ainda tentaram manter as novas entradas com os rendimentos dos mais pobres. Mas não durou muito. Claro que quem fez isso não sabia o que fazia. Ao fim de 30 anos os donos da pirâmide não têm ideia nenhuma do que estão a fazer ao mundo. Limitam-se a continuar a obra dos bandidos que antes deles organizaram tais modos imorais de se tornarem ricos.

Assustados com a profundidade inesperada da crise e da desconfiança uns nos outros – que lhes impedia de emprestarem dinheiro para não o perderem – declararam risco sistémico. Entregaram aos políticos as respectivas cartas de aliança – através das quais tinham alimentado os respectivos poderes, em detrimento dos povos – e os Estados organizaram colectivamente (a bem da globalização) um modo de fazer dinheiro na crise: quando não há dinheiro (porque o papel arrisca-se a deixar de valer como meio de troca) o que há a fazer é tomar a propriedade de coisas tangíveis: o ouro mas também territórios, os prédios urbanos ou a nossa saúde. Trata-se de pressionar as pessoas mais vulneráveis a entregarem os seus pertences, através da redução dos respectivos rendimentos e sob a ameaça à respectiva sobrevivência, de modo a obter esses resultados. É o que alguém chamou a destruição criativa. Como base nessa nova concentração de capital, um dia alguém há-de inventar outro tipo de sociedade, em que nova pirâmide será constituída por mais uns anos com base nas alianças sociais disponíveis na ocasião.

Um dia o ciclo de expansão e retracção do capitalismo há-de ser quebrado. O problema é que temos a experiência do bem-estar associado a certas formas de capitalismo e um esquecimento selectivo sobre as perversidades morais do capitalismo e dos impérios que ele permitiu desenvolver, nomeadamente através de um complexo militar-industrial que está aí a distribuir bombas com fartura nunca vista. Daria jeito uma outra fé para nos unirmos no combate ao capitalismo. Infelizmente a história mostrou que tal unidade não resulta nem para acabar com o capitalismo nem com os desejos imperiais.

Que raio se espera que façamos? A desobediência civil? A resistência activa? A economia social? Sob que formas? Com que aliados?

Para já o cenário é igual a tantos outros já conhecidos na história de épocas anteriores: gente a matar outra gente para ficar com a sua riqueza. Neste caso a coisa, grosso modo, processa-se assim: para entrares em jogo apostas o teu rendimento por X anos. Se ficas doente ou desempregado talvez haja algum seguro que cubra as dificuldades. Mas quando é o Estado a quebrar a Constituição e a reduzir os rendimentos das populações através dos impostos e directamente através da redução de salários? Nesse caso as garantias de pagamento aos bancos das hipotecas e outras dívidas não funcionam. Isto é, quem paga a falência dos bancos são os seus clientes, através da imposição dos Estados de um regime ilegal e ilegítimo de redução drástica e generalizada dos rendimentos. Os bancos ficam com as propriedades de quem já não pode pagar e preparam-se para novo ciclo de golpes baixos quando o Estado “voltar aos mercados”. Isto é que é uma aliança invencível.

Ou haverá outra forma de nos defendermos da imoralidade sórdida com que esta canalha explora a humanidade?

 2011-10-16


Sobre a democracia em 2011


Que reivindicam os contestatários?

Esta pergunta lançada sobre todos os mais recentes movimentos sociais é um desafio que deve ser compreendido não como um apelo à participação – que de facto não tem sido, a não ser como logro cínico sobre a democracia participativa a que se fecham todas as portas – mas como um teste ao sucesso do programa de anestesia política neo-liberal.

A flexibilização do trabalho que dá prioridade aos interesses do capital e, por isso, desorganiza a vida social (das famílias, das comunidades mas sobretudo das pessoas individualmente tomadas, que se tornam difíceis de prever e de satisfazer e, portanto, de se auto-apreciarem e valorizarem – daí os enormes problemas de auto-estima) produz efectivamente os seus efeitos. Quando as pessoas são produzidas para valorizarem o seu próprio potencial e desprezarem a sua vida pessoal em favor da sua vida profissional, seria de esperar, em coerência, que a sociedade que isto reclama premiasse o mérito. Manifestamente não é isso que se passa, não só nos países do Sul da Europa como também nos países do Norte. O que é valorizado é o Mercado, isto é a competitividade, isto é o resultado prático em cada momento das circunstâncias que favorecem certo sector de actividade durante um período curto de tempo, logo a seguir obrigado a readaptar-se ao fim da bolha tão desejada e lucrativa para o capital e apenas mais uma experiência tornada obsoleta a inscrever nos currículos dos trabalhadores.

Ao sabor dos ciclos económicos, cada vez mais dependentes dos acidentes especulativos, as competências, como diz uma corrente da psicologia, são sobretudo emocionais: ser resiliente suficiente para aguentar algum equilíbrio e conseguir fazer um percurso ao sabor dos acasos sem segurança – pois essa está reservada para o capital financeiro.

Quando os adversários dos movimentos sociais perguntam: que projecto alternativo têm a propor? Estão sinceramente a contrastar as respectivas posições de estabilidade relativa, que dizem ter encontrado (anos atrás, houve uma personagem da vida pública que chegou ao ridículo de afirmar que nunca tinha estado deprimido e não sabia o que fosse isso, como se a depressão mórbida estimada de 40% dos portugueses fosse sinal de fraqueza), com a vida daqueles que não aceitam a sua própria situação de instabilidade e querem fazer alguma coisa contra isso. Sentem-se ganhadores a desafiar perdedores.

Está a chegar o tempo em que os perdedores se começam a sentir potenciais vencedores. Seja por imitação (o que reproduz a brutalidade estupidificante do actual pensamento único) seja por solidariedade com os marginalizados (que obriga a uma reestruturação da moral dominante). A moral da sociedade deve ser chamada a oferecer condições potenciais para a estabilização da vida emocional dos cidadãos, à bruta – através da expansão da xenofobia, nomeadamente – ou racionalmente – no dia em que houver liberdade para pensar diferentemente.

Isso é sobretudo verdade para os jovens – impedidos de ir a jogo – e para os países europeus abandonados à armadilha da dívida – igualmente impedidos de ir a jogo. Quando olham para o poder político dizem com naturalidade: isto não é democracia! Claro que não é: a democracia é a liberdade de produzir alternativas políticas e de vida para poderem ser sufragadas pela maioria, com respeito pelas minorias. Ora todas as alternativas políticas actuais são, no fundo, falsas: são meras encenações que fazem com que os opositores ocupem primeiro o lugar do polícia bom para depois ser eleito à sua vez e se tornarem os mesmíssimos polícias maus que o poder acabado de ser apeado. As alternativas que poderiam surgir do povo são inibidas pelas seitas secretas que tomaram conta do sistema partidário e pelo fechamento dos media às ideias, em nome dos círculos de comentadores profissionais e dos acordos político-mediáticos através dos mercados publicitários.

Quem não gosta e reclama, leva!

2011-09-18


 

Espectro da guerra generalizada

Com os juros de mais de 100% para o Estado grego e as ameaças de expulsão da Grécia do Euro, nem os avisos da senhora Merkel aos parlamentares alemães de que o euro e a União são os garantes de não haver um estado de guerra na Europa conseguem ser ouvidos. A França e a Inglaterra fazem a guerra na Líbia, com o apoio norte-americano, como forma de afastar (entre outros) a Itália do petróleo daquele país. Em época de extrema austeridade, os estados mais agressivos de União Europeia manifestam-se disponíveis e interessados em fazer a guerra. E, na frente interna, ameaçam qualquer oposição – em Portugal, o PM verbera contra motins que não existiram, e na Inglaterra o PM pressiona os tribunais para terem mão pesada com as centenas de pessoas presas, como resposta “firme” a amotinamentos cujo sentido nem sequer foi problematizado (ao contrário do bom exemplo norueguês: em resposta ao terrorismo individual bem mais mortífero que os levantamentos urbanos em terras de Sua Majestade, o PM norueguês pediu mais participação democrática aos cidadãos).

A atenção nas questões económicas não deve fazer perder de vista a centralidade das questões bélicas na vida política. Para alguns o desastre económico será resolvido pela violência contra quem estiver mais à mão, como forma de mobilizar coercivamente “os nossos” e esconder alianças perversas com a corrupção e com os dirigentes fundamentalistas (por exemplo, da Arábia Saudita e de Israel). Observando o desenrolar dos acontecimentos – e o esgotamento dos recursos democráticos na União Europeia a favor do esbulho financeiro mais imprudente e descarado – que se pode esperar da decisão dos países mais ricos de mundo quando se preparam para prestar “ajuda” financeira aos países árabes a viverem movimentos de transformação política em todo o Norte de África e Médio Oriente? Sobretudo quando falharam miseravelmente pela mais completa inacção a sua campanha anunciada contra a pobreza no mundo.

A União Europeia vive actualmente a escolha entre fazer valer a democracia e as liberdades cívicas e políticas ou organizar a guerra contra a possibilidade da instauração de democracias no outro lado do Mediterrâneo (que, naturalmente, irão denunciar e impor o fim dos fundamentalismos wahhabi e judeu, aliados perversos dos EUA e da UE). A luta dos portugueses por uma democracia verdadeira é a forma de lutar, em conjunto com os povos deste e do outro lado do Mediterrâneo, por oportunidades de vida e desenvolvimento para todos e, portanto, pela substituição das relações belicistas actualmente prevalecentes por relações de respeito e cooperação mútuos.

2001-09-13


Dissidência política

Desde pelo menos 2004 que é sentida uma depressão nacional. Mais recentemente vive-se um sentimento generalizado de que algo tem de mudar para ser possível continuar a viver com alguma dignidade. Tal como foi sentido nos meses anteriores ao 25 de Abril de 1974. A este aprofundamento e radicalização do sentimento popular corresponderam propostas de novos partidos cujas oportunidades dentro do actual sistema são mínimas – como mostram os resultados eleitorais. Deve notar-se também a legislação feita para dificultar e controlar a formalização de novas iniciativas políticas e para legitimar – a nível europeu – perseguições políticas que se venham a entender fazer contra “pessoas em processo de radicalização” (sic).

Com o evoluir dos acontecimentos ficam mais claras as funções políticas do actual sistema: a) submeter-se aos consensos neo-liberais globais; b) manter organizações capazes de transplantar cabeças nos movimentos de contestação da situação, isto é, combater todas as possibilidades de amadurecimento e colaboração dos movimentos políticos espontâneos. Porque essas funções têm sido bem cumpridas, a direita global mantém uma posição dominante firme na política portuguesa (vincada pela submissão pré-eleitoral à troika) e a esquerda nacional mantém a legitimidade desse poderio enquanto o sistema político alimentar os respectivos aparelhos (reclama que a revolução se fará assim haja votos suficientes de esquerda).

As iniciativas partidárias fora do sistema – geralmente sob a forma de empresas unipessoais – sem acesso aos meios de comunicação social e sem acesso aos meios clandestinos de financiamento político dos partidos do sistema não têm hipóteses de sobrevivência, a não ser através de métodos que deram nas vistas sobretudo no partido do General Eanes: foi capaz de romper o cerco da comunicação usando a presidência da república e foi capaz de procurar financiamentos políticos. Mas ficou fragilizado pela ganância económica dos seus próprios dirigentes e pela exposição pública da igual imoralidade dos eanistas relativamente aos outros partidos.

Resulta desta situação a prática impossibilidade de existir alguma democracia em Portugal: ao deficit democrático da União Europeia associa-se a imposição institucional do discurso único neo-liberal com uma oposição fantoche. Não se pode dizer que a política seja indiferente à vida das pessoas. Pelo contrário: a vida é um fortíssimo encargo na vida das pessoas, que têm que pagar a existência da política como um fardo que cada vez as serve menos como, para mais, se serve delas para, por exemplo, assegurar reformas múltiplas e milionários para os mais traquejados dos políticos, assessorias para os mais novos, em troca de perda de empregos e redução dos direitos laborais e sociais (para não falar dos direitos culturais).

Dentro do sistema o mínimo que se pode dizer é que não há oportunidades iguais para todos os partidos, como é evidente pela sorte que tiveram todos os novos partidos que se constituíram para participar. Do respeito pela vontade popular não vale a pena falar: perguntem ao movimento 12 de Março e à associação 25 de Abril o que fizeram das suas propostas de renovação do sistema político e o modo como lhes controlam as iniciativas políticas como se fosse um caso de polícia.

Em Portugal, de facto, não há democracia porque não há hipóteses práticas de controlo da vontade política do Estado por parte dos cidadãos.

Muitos são os factores que sustentam esta situação. Mas, parecendo imbatível, este modo de viver é também insustentável, como todos sabemos (porque o sentimentos persistentemente faz muitos meses, independentemente daquilo que julgamos saber). A tarefa para os democratas é, sempre, assegurar a existência de alternativas políticas reais (não basta um escrutínio formalmente legítimo dos votos populares). Quando elas inexistem – o BE pagou eleitoralmente caro o descrédito de ter acreditado que havia condições para fazer a mudança de regime com votos – há que construir um sistema político alternativo, de raiz. Só assim o povo português terá alguma possibilidade realista de exercer os seus direitos políticos democráticos, a sua tutela sobre o Estado, a política nacional e internacional.

Esse novo sistema político incluirá, como o actual, um espectro de partidos da esquerda à direita solidários entre si (como são os partidos do sistema actual) na sua implementação (primeiro) e na sua manutenção (depois). Não será um sistema político moralmente puro, mas será, com certeza, um sistema novo, para durar enquanto o povo português o permitir. Para isso deve encontrar fontes de financiamento livres de corrupção e transparentes, repudiar os privilégios dos políticos e dos seus associados nas empresas do Estado e no mundo empresarial, em especial as empresas rentistas do regime. Deve evidentemente abrir fora de debate político com uma agenda independente do sistema político actual e ser capaz de tomar decisões tão democráticas quanto possível para estabelecer programas de mobilização dos portugueses e das portuguesas para as tarefas que pareçam bons para sacudir a situação actual.

Se o actual sistema político for democrático (e há razões para pensar que o seja) facilmente compreenderá que a democracia não é um dado mas sim a sistematização de processos, cujo bloqueio torna a democracia formal substantivamente anti-democrática. O novo sistema, se for democrático – e devemos lutar para que o seja, em vez de outra coisa que também pode vir a ser – não pode impedir que os partidos do actual sistema participem na vida política. O que não pode é permitir que o hegemonizem e impeçam, como fazem hoje, a espontaneidade, a genuinidade, as alternativas e a alternância políticas em Portugal.

2011-08-17


O que é o economicismo?

Henry Denis (não estou seguro e não consigo encontrar a referência certa) escreveu um livro para explicar como uma genial concepção da economia produzida por Karl Marx se viu desvirtuada pela interferência ideológica da sua fé no comunismo.

Na verdade, sem essa fé nenhuma economia teria interessado a Marx. E, portanto, nenhuma genialidade teria alguma vez sido produzida. Além disso, porque razão uma genialidade seria cientificamente discriminada de outras só por ser ideologicamente induzida?

Marx decidiu estudar economia e produzir uma perspectiva revolucionária da economia precisamente porque entendeu ser a economia política a ideologia burguesa, isto é um dos meios mais poderosos para sustentar a hegemonia política dos capitalistas e dos seus aliados – aristocratas por um lado, do lado do Estado, aristocracia operária por outro lado, do lado da produção, militares por outro lado ainda, do lado estratégico e global. O problema é saber se conseguiu dar à mesma economia que serviu a burguesia uma torcidela suficiente para que passasse a servir os interesses dos proletários – literalmente os filhos dos escravos.

A experiência da União Soviética, da China e de outros estados socialista mostra como não foi possível ultrapassar o capitalismo de Estado em países industrialmente atrasados, forma de capitalismo cuja rigidez não foi capaz de competir com o maior pragmatismo dos países liberais. Isto é, a genial teoria económica marxista, aspirante a subverter a ideologia burguesa, não conseguiu passar de seu substituto, a favor dos burocratas capazes de submeterem a burguesia e os trabalhadores a regimes ditatoriais em nome do (mesmo) crescimento económico capitalista de base industrial.

Os proletários são proletários (e os excluídos são excluídos) tanto sob o imperialismo ocidental como sob os impérios comunistas conhecidos. A exploração e sobretudo as misérias e violências não tenderam a diminuir na vida das pessoas mais desprotegidas e com menos acesso a recursos. O contrário parece ser a verdade, em balanço, embora o crescimento económico do valor das mercadorias acima dos 3% ao ano seja capaz de promover situações políticas de maior bem-estar para uma parte significativa da população das regiões beneficiadas.

Poderemos, então, sacrificar a maioria da humanidade, com fomes, sedes, mortes prematuras por falta de assistência básica, violências próprias das situações de degenerescência social, guerras, em nome da esperança irrealista de o crescimento económico vir um dia a beneficiar a maioria das pessoas? Que assim viesse a acontecer um dia, dando de barato os problemas energéticos e ambientais, porque nos interessaria desenvolver um sistema que excluí – na melhor das hipóteses – uma larga minoria das populações humanas? Porque nos contentaremos com menos de um sistema que virtualmente englobe todos e cada um em quadros de vida sustentáveis (sustentáveis para cada um e para o planeta e não para os capitalistas, bem entendido).

O debate económico que explora a teoria dos bens escassos, tornados escassos para poderem ser mercadorias – como a água e o ar, mas também os cereais transformados em carne e em energia –, pode ser substituído pelo debate económico do planeamento central ou regulação capaz de distinguir o que seja bem público (não sujeito a escassez, isto é necessariamente acessível a todos os seres humanos) do que seja mercadoria. Mas, numa perspectiva de futuro, o que fará ser este último regime económico preferível ao primeiro? Na prática, não o foi nem o será mais por várias gerações (para evitar dizer para sempre).

Engels teve ainda oportunidade de escrever contra as interpretações essencialistas e economicistas dos marxistas, desvirtuando o pensamento original de Marx e Engels. Um pouco no mesmo sentido em que Marx escreveu contra os maus usos da dialéctica em Miséria da filosofia. O problema é que tanto o economicismo como o mau uso da dialéctica – a bem dizer do materialismo dialéctico e do materialismo histórico – estão sujeitos, como qualquer outra teoria e método intelectual, a maus usos, sendo difícil distinguir o que sejam os bons usos de entre as réplicas aos milhares que todo o sucesso acarreta. A pureza da fé e do entusiasmo sinceros são, como sempre, traídos pela experiência e pelo uso. Há sempre que refazer tudo de novo, mais uma vez, de cada vez.

A economia actual faz muito tempo abandonou o marxismo, seja o seu estudo como as referências a tal teoria (aliás como a qualquer teoria que não seja a oficial, a da sebenta). Compreende-se que os economistas minimamente cultos queiram e sintam necessidade de usar o seu prestígio social profissional para mostrar a capacidade política e de cálculo racional desenvolvido pela ciência, tentando resgatar a sua ciência para o campo da razão. Mas isso não pode ser razão para enfeudar a política, os nossos desejos e sonhos colectivos, a nossa confiança no futuro, às perspectivas estreitas de uma ciência rainha de um campo científico (das ciências sociais) espartilhado em milhentas capelas disciplinares concorrentes entre si e sobretudo ignorantes e desinteressadas do que se passa na realidade (mais interessadas em pequenos jogos institucionais de prestígio, poder e acesso a recursos).

Sem dúvida que as universidades são centros de saber importantes. Mas também são centros de difusão maciça de ignorância pedante e exploradora da boa fé dos povos. Pois, como não podia deixar de ser, as instituições seguem os poderes políticos do momento, quanto mais não seja para poderem sobreviver. Quem não o quiser fazer – porque vivemos em democracia – terá oportunidades para passar desapercebido, servindo as instituições com as respectivas competências, como os artistas e tutores faziam nas cortes europeias poucas centenas de anos atrás. Assim se comportam a maioria dos professores e investigadores universitários. Mas só terá poder quem alinhe com os poderes do momento.

Enquanto não houver a possibilidade de se estabelecer um poder político estável e persistente numa política de alteração radical das culturas universitárias actuais, a economia não deixará de ser aquilo em que se tornou – outra vez neo-clássica e impondo um discurso único – como ocorre com todas as outras ciências, cada uma à sua maneira. Acreditar que será possível, sem o apoio genial e dissidente do Marx vivo e contra o poder actualmente muitíssimo maior do pensamento universitário, orientar um pensamento económico para uma transformação social, sem apoio político popular prévio, é por um lado presunção e por outro lado ingenuidade.

A principal tarefa política é … política. Não é económica. A ciência política e a economia (e outros saberes, académicos e não académicos) devem ser solidariamente mobilizadas para ajudar a concretizar as tarefas políticas que se venham a considerar prioritárias. Independentemente das razões económicas ou outras, sempre limitadas e limitativas da nossa imaginação e da empatia que é precisa para fazer política nova.

2011-08-01


Fazer uma nova sociedade

O economicismo é o Alcácer Quibir da esquerda, preocupada em mostrar-se melhor gestora do capital do que a direita. Reconhecendo que os tempos não são favoráveis ao trabalho capitalista (o assalariato) a esquerda cinde-se em duas; uma com mais vocação de poder, centrada na gestão do capital pró-capitalista, sem condições, e outra mais vocacionada para a resistência, enquanto tempos mais favoráveis ao trabalho na chegam, procurando capitalizar as forças da contestação para auto-promoção política de acordo com as regras em vigor. Ambas as esquerdas se odeiam entre si, por serem de facto inconciliáveis, como o capital e o trabalho sob o capitalismo o são.

 Ambas são avessas aos excluídos, sejam eles nacionais, imigrantes ou povos explorados fora de portas, apesar de afirmarem o contrário. Isto é, ao alinharem com o capital – por se tornarem políticos do capital (privado ou de Estado) ou por empatarem a política com esperanças num futuro que nunca mais canta (sem mais imaginação) – alinham com a concentração de capital, em contradição fatal com a expansão agora global do capitalismo (à custa da humanidade e dos direitos de grande parte da humanidade a poder existir dignamente, isto é na perspectiva da sobrevivência e da igualdade de oportunidades).

Abandonar o discurso economicista, e sobretudo o pensamento mágico (seja ele neo-liberal ou essencialista) que isso implica, é indispensável para se poder pensar novas formas de economia à esquerda, isto é em nome de liberdades para todos, e não só para o capital (aqui incluindo capitalistas e assalariados que trabalham no quadro do capitalismo). Mesmo as alternativas entre sectores – cujo interesse não está em causa –, como debater se é o sector público ou o sector social não poderiam fazer melhor se crescessem mais, está viciado pelas práticas capitalistas de corrupção, subsidio dependência e controlo (directo e indirecto) do Estado, seja através da legislação ou da tutela efectiva, dos partidos, das seitas secretas ou da Igreja.

Convencida disso, da necessidade de se libertar dos vícios intelectuais e políticos do economicismo, à esquerda não faltariam projectos de transformação social pacífica e ordeira para integrar os excluídos, a prazo, com respeito por uma ordem internacional mais pacífica e menos desigual, a partir dos sectores sociais do Estado – a quem deveriam ser reconhecidos novas funções e estatutos. Um exemplo:

As crianças a partir dos 10 anos de idade, durante a escolaridade obrigatória e depois dela, se continuassem a estudar, ocupariam pelo menos a metade dos seus tempos de estudo a trabalhar em empresas e organizações dos diversos sectores de actividade que existam nas suas imediações (num raio de cem quilómetros da escola). Aos professores, além de promoverem a aprendizagem dos alunos sobre as funções sociais de cada unidade de trabalho no contexto social em que trabalha, deveriam também saber organizar a crítica da qualidade e quantidade de retorno social, empresarial e laboral, medidos em dinheiro mas também em outras dimensões sociais, como a pegada ecológica e os recursos capturados (ou perdidos) pelas famílias dos trabalhadores e dos vizinhos face à situação anterior, quando não havia aquela unidade a laborar.

Isso significaria que passaria a ser tarefa dos trabalhadores e do capital organizar acções de formação e de demonstração (e de também de utilização dos recursos humanos) para professores e para estudantes. Cada unidade de trabalho teria, portanto, que realizar obrigatoriamente mais trabalho, para além daquele que hoje em dia é entendido como trabalho da responsabilidade da organização (implicando mais custos e mais emprego, mas também um potencial de aumento de qualidade social dos produtos e das unidades de trabalho sem paralelo nos dias de hoje, com indicadores fiáveis e públicos produzidos pelas escolas). Os professores e os seus estudantes deveriam ser usados como consultores e reguladores, eventualmente como mão-de-obra flexível em certos picos de trabalho, promovendo os valores ecológicos, de solidariedade social local e internacional, fazendo a articulação entre o mercado de trabalho e as escolas desde cedo, desenvolvendo os conhecimentos objectivos da realidade social de todos, isto é a transparência, a produtividade, a moral social e o bem-estar ao mesmo tempo.

Estão a ver a guerra política local que irá ser indispensável fazer para conseguir fazer um tal caminho? Não vale a pena?

A mesma lógica poderia ser imaginada para expandir o sector da saúde, nomeadamente abrindo as oportunidades de estudo do pessoal de saúde às condições sanitárias das populações, seja nos bairros seja nos locais de estudo e de trabalho, com o pretexto de acompanhar os estudantes e professores nas suas novas actividades nos mundos do trabalho (por exemplo). É preciso acabar com a medicina submetida aos interesses do capital, deixando entregues à degradação e decadência os trabalhadores vítimas das suas actividades laborais e das doenças a elas associadas ou às doenças de falta de adaptação daquela pessoa em concreto com o seu posto de trabalho ou simplesmente da sua condição social (doenças mentais, nomeadamente).

Como se percebe, há aqui muito campo praticamente virgem de humanização das sociedades. Sociedades essas por enquanto suficientemente ricas (no seu conjunto) para se darem ao luxo de apostarem em imaginação de melhores forma de viver para todos, em vez de formas suicidárias de fazer a guerra para enriquecer os podres de ricos à custa da miséria da maioria da humanidade, sobretudo as mulheres, as crianças e os velhos, que só pode subsistir pela guerra contra os jovens que não podem saber disso por estarem até muito tarde nas suas vidas fechados em escolas que servem sobretudo para esconder as realidades “desagradáveis”. O problema é que há quem não possa evitar saber disso mesmo, por estar a acontecer com as suas famílias e consigo, filhos de gente explorada, filhos de gente excluída e doente, órfãos de guerra, refugiados da fome, mortos pela sede, garimpeiros do lixo global, guerreiros crianças, etc.

Ser de esquerda é querer mudar a sociedade. Não é querer manter o que está com medo do futuro. Mudar mas com vista a uma maior igualdade e para mais liberdades, em contraponto à mudança social em curso que se aprofunda no abismo da imoralidade política e social, causa das inseguranças que, por sua vez, justificam guerras e violências (ditas intervenções de segurança) contra as liberdades, teoricamente vencedoras da disputa entre as duas superpotências do século XX.

2011-07-31


Dívida ou dádiva

Nas sociedades, simples e complexas, são reconhecíveis ciclos distintos em que por ventura os mesmos valores, como por exemplo a democracia, a razão científica, o trabalho, são interpretados de modos tendencialmente diferentes. Num ciclo procura-se dar prioridade à integração social e estabelecer laços de solidariedade para no ciclo seguinte se estabelecerem formas de exclusão social e quebrar as formas de solidariedade quotidiana, através de desqualificações de pessoas e locais, construção de condomínios fechados, discriminações de grupos inteiros de pessoas, tipicamente tomando por bodes expiatórios os imigrantes e os nómadas.

Atenção: não se trata de uma subversão dos valores dominantes. Não se trata de inventar uma sociedade nova. Trata-se antes de enfatizar mais os aspectos de comunhão ou os aspectos de segregação sociais, que sempre existem em todo o tempo mas se tornam mais influentes numa altura ou noutra.

Por exemplo, em tempos de solidariedade intercontinental, como no tempo do plano Marshall, não havia empresas de rating para avaliar a qualidade do risco das diferentes moedas nacionais europeias. Não havia porque a regulamentação internacional das actividades financeiras não estava à disposição dos interesses especulativos, mas antes sob o controlo dos Estados com vista a organizar a produção industrial, a reconstrução da Europa no pós-guerra, a penetração das empresas norte-americanas na Europa Ocidental e o respeito pela divisão de trabalho internacional com a União Soviética, na tutela da Europa de Leste. Foi nesse tempo que se forjou a aliança do Atlântica Norte, que ainda hoje se mantém embora por inércia, isto é sem outro sentido que não seja servir os interesses das castas directamente interessadas nas guerras. Era uma aliança defensiva. Quer-se agora uma aliança ofensiva. O que também é sinal da mudança do espírito dos tempos.

O tempo da Guerra Fria pode parecer o paraíso àqueles que vivem os dramas actuais de forma tão agressiva como os países do Sul da Europa, apelidados de porcos pelos economistas ao serviço dos mais poderosos, acusados de corruptos por terem alinhado na sociedade do crédito em nome da adesão ao modelo desenvolvido de capitalismo de rosto humano. O tempo da Guerra Fria não foi nenhum paraíso, pois os riscos de agressão nuclear foram reais e a vida social era tão insatisfatória que produziu revoluções, nos anos 60 e 70, entre as quais as que libertaram os países do Sul da Europa das respectivas ditaduras. Com a solidariedade (condicionada, como sempre) dos países mais ricos e democráticos. Foram tempos em que, apesar da crise do petróleo em 1973 e das respectivas sequelas, os desejos de progresso acabaram por ser cumpridos, ainda que a sociedade não tenha sido capaz (como desejou) de tornar a solidariedade um valor prioritário, como seria próprio de um socialismo idealizado (o socialismo real falhou também neste aspecto e, por isso, perdeu a credibilidade tanto no Ocidente como no Leste da Europa).

Cansados de tanta agitação e de tantos sucessos, embora menos perfeitos do que se chegou a pensar ser necessário, os portugueses aderiram à normalidade anti-ideológica desejada por aqueles que previram estarem a viver o fim da história. O capitalismo (na sua versão social-democrata na Europa e empresarial nos EUA) parecia estar para ficar, precisamente porque as novas tecnologias de informação permitiram ligar a aldeia global em tempo real e, assim, gerir à distância qualquer negócio, dos quais os negócios financeiros se descobriram ser os mais vantajosos, sobretudo por não pagarem impostos e, com tais margens de manobra, poderem organizar a defesa dos seus interesses directamente junto dos representantes das democracias (em vez de canalizar para o público, através do orçamento, essas verbas). As finanças perderam o contacto com a produção e com as sociedades, e tornaram-se íntimas dos poderes de Estado e dos meios de comunicação de massa, sem os quais a beleza do mundo virtual seria inimaginável. A impunidade da corrupção e dos crimes de colarinho branco são mais do que uma consequência da desigualdade económica produzida em sociedade. É o sinal iniludível da aliança de uma casta de agentes separados dos outros por salários centenas de vezes mais altos que a média, com prémios anuais auto-administrados e praticamente sem limite, independentemente dos resultados das empresas, com reformas milionárias acumuláveis e sucessivas, com despesas pagas para si, para as suas famílias e amigos. Casam-se uns com os outros e asseguram o controlo dos postos chave dos Estados, mantendo através disso um corpo de funcionários fiéis, amordaçados, viciados em disciplinas mentais auto-limitadas (como se costuma dizer a respeito dos especialistas, sabem tudo sobre coisa nenhuma) e em reverências aos poderosos, únicos a quem se admite poderem ter uma visão de conjunto das coisas e da vida, a ponto de a esquerda ter abandonado os ideais de transformação estrutural da sociedade que sempre a caracterizou. O que ficou particularmente evidente quando a história lhe pregou uma partida: em 2008 os próprios financeiros e chefes do capitalismo ficaram parados, sem saber o que fazer ou dizer perante a evidente avareza (o impagável Sarkozy dizia que era preciso refundar o capitalismo). Durante um ano esperaram pelo que pudesse acontecer. E a esquerda também ficou à espera, apesar de em doutrina ser a crise económica que espoleta a crise social que será o motor da revolução. Esse silêncio da esquerda não foi esquecido pelos povos europeus, que votaram à direita (em quem mais?) na esperança (provavelmente frustrada) de ser possível manter o status quo.

Vive-se a situação de já não ser mais possível viver como antes e ainda não há energias sociais para criar novas formas de viver. Vive-se a necessidade de encontrar formas de canalizar as poucas forças sociais inovadoras, como a dos precários que perceberam a oportunidade de reclamarem uma perspectiva de vida que lhes tem sido negada. Vive-se a necessidade de desenvolver um discurso anti-economicista capaz de rejeitar os credos da disciplina (nomeadamente a ideia de que economia é o alfa e o ómega do desenvolvimento) como por exemplo que há que encontrar o caminho para o crescimento da economia que seria a solução de todos os males. O desenvolvimento do bem-estar das pessoas e das sociedades, em solidariedade, passa por parar a economia tal e qual ela existe hoje em dia – poluente, monopolizada por pouquíssimas empresas, na alimentação, no retalho de mercearia, nos transportes, etc., e, sobretudo, exploradora da força de trabalho – assim como o modelo de desenvolvimento, isto é a cumplicidade entre os representantes do povo, os bancos e os especuladores e os grupos de comunicação social privilegiados, ditos de referência, os sectores rentistas que localmente apoiam este estado de coisas.

Trata-se de encontrar formas de uso da força de trabalho de cada um, a começar pelos desempregados e precários, para seu próprio interesse, em vez de estarem proibidos de fazerem alguma coisa de útil – a não ser procurarem empregos que não existem. As casas devolutas ou não habitadas devem ser colocadas à disposição dos casais jovens que querem organizar as suas vidas e ter filhos – já que há que aproveitar aquilo que foi construído no ciclo nacional que agora termina. Quem não tem dinheiro para pagar as suas despesas deve poder organizar-se de modo a poder prometer compensar os respectivos credores de bens essenciais (por exemplo, os centros comerciais) através de serviços vários, desde a animação cultural dos espaços urbanos até à organização de sessões públicas de apresentação e debate sobre produtos de cinema, teatro, literatura, infantil, juvenil, para adultos, através das quais é possível transmitir formas de solidariedade centradas na saúde, no desporto, no conhecimento de outros povos e países, etc.

O fundamental para avançar naquilo que urge fazer, sob pena de ao desastre organizado pelo sistema se juntarem violências sem controlo, passa pela dádiva (sempre maior) que cada um de nós se dispuser a oferecer a quem esteja mais próximo, não como caridade mas como aliança para uma sociedade cansada de egoísmos e de ganâncias, onde novas formas de democracia (real, directa, verdadeira e outras que possam querer vir a participar) possam juntar-se legitimamente às formas democráticas já existentes e que, desse modo, se venham a reconciliar com os povos e os interesses dos seus representados. O controlo policial do espaço público deve ser fortemente censurado, pois é a forma de manter as populações amorfas e comprometidas com um regime caduco e impróprio para consumo.

Insisto: se a economia fosse o alfa e o ómega da política, como se explicaria que nas últimas eleições se tivesse votado no partido que prometeu aprofundar a austeridade, como forma de auto-flagelação? Se a economia fosse o alfa e o ómega, porque será que o forte e sustentado crescimento da produtividade não serve o bem-estar das populações, que continuam a morrer de fome e sede, despojadas dos seus meios precários de subsistência por empresas capitalistas e respectivos exércitos sem escrúpulos?

A auto-flagelação explica-se do mesmo modo que o sucesso do tema musical “Que parva que eu sou!” Mas como acontece a qualquer vítima de abuso de poder, em casa ou no trabalho ou numa instituição de acolhimento de crianças e jovens ou velhos (não são todos violados, mas a quantidade dos que o são não abona nada a favor do ambiente que se vive nessas casas e, a bem dizer, nas outras casas também), vai ser preciso muito trabalho de recuperação emocional e mental para que a dignidade social possa emergir. Emergir e não voltar a fechar-se, como aconteceu na revolução dos Cravos. A história a vir dirá o que vai ocorrer.

2011-07-12


Geração feliz à rasca

Estamos numa fase de transformação social profunda. Quem duvida disso?

O problema é que enquanto o novo não se afirma de forma evidente continuamos a imaginar ainda viver no velho sistema. Este é o estimulante dilema clássico que nos calhou em sorte viver por estes próximos anos.

Convergência e Alternativa quer dizer, a meu ver, reunir as forças sociais favoráveis à mudança em curso de modo a fazer frente, com o máximo de força, aos que pretendem continuar a viver como se tudo estivesse na mesma. É claro que tais forças se virão a tornar dominantes no futuro em função das oportunidades estruturais abertas, mas também em função das dinâmicas políticas (organização de intenções) que efectivamente forem concretizadas.

Portugal, portanto, está no mesmo barco que a Europa, mas tem também o seu próprio problema específico. Será em Lisboa que se poderá decidir o futuro dos portugueses, em função das forças que haja para tal e em reacção ao que se for passando noutras partes do mundo, a que somos particularmente sensíveis (por comparação à menor sensibilidade de outros povos, por razões históricas e políticas).

 

A acampada no Rossio que ocupa jovens a fazer política tem nome, inspiração e participação espanhola. Como o 15 de Maio todos a la calle foi inspirado pelo 12 de Março em Portugal. Caberá às gerações mais velhas, as que foram treinadas no pensamento crítico, tirar as teias de aranha dos velhos textos doutrinários e procurar neles a inspiração para colaborar com as gerações mais novas, como elas pedem, isto é sem paternalismos.

Não precisamos de velhas lições mas antes de velhas inspirações. Desejamos voltar a sentir a paixão democrática de que falava Tocqueville sobre o povo do princípio do século XIX, povo bem mais miserável e precário que os manifestantes actuais. Os descendentes contemporâneos desse povo miserável estão quietos e calados, reprimidos por nós próprios em bairros problemáticos que aceitamos serem visitados sistematicamente de forma provocatória pelas polícias, às ordens de ministros que alegam ter comprado carros de guerra para poder lá entrar, sem que a opinião pública anti-xenófoba tenha sequer esboçado reacção.

Democracia verdadeira, já! É isso, sim. A xenofobia, porém, é que está a vingar. A seguir à perseguição arbitrária de imigrantes, desenvolvida há muitos anos por políticas sem lei e sem vergonha, que fizeram dos Estados ditatoriais do Norte de África aliados da Europa, os Estados europeus organizam e levam à frente a repressão brutal dos seus próprios povos, através de medidas económicas ilegais. E como aconteceu no tempo do holocausto, o povo vota maioritariamente a favor da violência institucional contra os bodes expiatórios que a propaganda aponte em cada ocasião.

Estamos sem democracia e estamos em tempos pré-holocáusticos, em que o medo das transformações sociais em curso faz paralisar uma parte importante dos povos (ainda por cima demograficamente velhos e embrutecidos por trabalho assalariado acrítico) e abre campo à difusão de violências endémicas, entre “etnias”, estimuladas pelos próprios Estados, à boa maneira colonial, para dividir e reinar mais algum tempo. Os trabalhadores e os partidos são facilmente manipulados por estas dinâmicas populistas e autoritárias, em todo o caso bem sucedidas há décadas na Europa e em crescendo de força neste momento, como o mostram os resultados eleitorais (e os tiques autoritários de muitos partidos de esquerda). Nas eleições as pessoas votam em que tenha mais poder, nomeadamente quem esteja de acordo com os poderosos do mundo, imaginando assim evitar a violência que se desabará sobre si, inelutavelmente, logo após as eleições.

A principal responsabilidade dos políticos democratas numa democracia é assegurar a perenidade do regime democrático. O regime democrático significa que em alturas de crise estejam disponíveis ao povo alternativas de governação capazes de resolver problemas como aqueles que hoje manifestamente enfrentamos. Na verdade os problemas que hoje enfrentamos têm vindo a ser escrupulosamente escamoteados de modo a evitar que esta reacção popular se tivesse produzido mais cedo. Aqui chegados, pergunta o repórter, que reclamam os manifestantes? Onde está o projecto alternativo que querem ver implementado?

A pergunta certa seria: quando nos faltou a democracia? Como a recuperar?

A democracia não é chantagem sobre os populares. É serviço ao povo, mesmo quando ele não se manifesta.

Agora ao povo resta a revolta. E muito trabalho dos democratas – se é que eles por aí existem – para reorganizar a vida política, na sua forma e na sua substância.

O problema é económico? Sim. Dependemos de países terceiros para nos alimentarmos. Precisamente países que nos atacam como se fossemos porcos (sic). Países com lideranças que entendem poder vir-nos dar lições de moral (sobre os dias feriados, por exemplo) quando são eles que trabalham menos horas (de facto e em termos estatísticos) e obtêm mais rendimentos por cada hora de trabalho, pela simples razão de as classes dominantes em Portugal serem rentistas, faz cinco séculos. É quem assim acusa os trabalhadores portugueses que produz as armas de guerra que servem para corromper políticos (no caso dos submarinos como no caso das “ajudas”). Quando foram eles que organizaram a estratégia económica da especialização de Portugal como país sem indústrias, sem agricultura e sem pescas para benefício (teoricamente solidário) de terceiros, alegadamente por produzirem melhor. Sem todavia os salários portugueses terem conseguido aproximar-se dos salários médios europeus, excepto no sector dos administradores de empresas (onde os rendimentos dos portugueses superam todos os outros).

Isto é: o problema é sobretudo político. As alianças entre as classes dominantes dos diferentes países reforçaram, em Portugal, o velho rentismo obscurantista e submisso, capataz da civilização ocidental no dizer de Agostinho da Silva. Banqueiros, donos dos meios de comunicação social, classe dos políticos carreiristas, aliados da globalização, tiram dela os rendimentos sem risco através de esquemas corruptos escandalosamente evidentes (como a especulação urbana ou as políticas de obras públicas). É o socialismo de que falam os partidos de direita. É o mercado de que se queixam os partidos de esquerda. É o que não está a aguentar-se face às investidas especulativas do capital financeiro global e à tendência suicida e xenófoba do Euro. Mas é também, e ainda, o único modelo económico concebido para o nosso país.

A concepção de um novo modelo económico, é preciso dizê-lo com muita clareza, não é um projecto de tese em economia: será o resultado de um processo político que beneficiará alguns e não beneficiará ou prejudicará outros, em função da relação de forças políticas que estiverem presentes de forma estratégica no terreno da produção e das instituições políticas que as permitam afirmar-se e desenvolver-se. Ora, precisamente, o processo político democrático, aquele que permite construir alternativas de poder pacificamente e de forma institucionalmente regulada, está posto de parte, está bloqueado, por acção da classe política portuguesa e europeia. O que é preciso é romper com os processos institucionais políticos anti-democráticos para construir outros, esses democráticos, isto é, abertos a alternativas.

Democracia verdadeira, já!

O que os jovens acampados pedem são aliados políticos. A Convergência e Alternativa pode ser um interlocutor político desse movimento. Mas tem que ser muito mais. Do meu ponto de vista terá que afirmar duas ou três ideias de grande alcance:

a)      Declarar a sua ruptura com o actual sistema político, declarando as presentes eleições como uma farsa de democracia (não por serem susceptíveis de chapeladas, mas por serem um logro para legitimar a desresponsabilização política das classes dominantes e escamotear o sequestro da democracia em Portugal e na Europa);

b)      Manifestar publicamente o empenho em reconstruir a democracia em Portugal, com outras forças políticas para tal disponíveis (incluindo forças democráticas de direita);

c)       Organizar, conjuntamente com tais forças políticas a atrair, fontes de financiamento do trabalho político a encetar livres de esquemas de corrupção associados ao actual sistema político – o que significa, na prática, desenvolver politicamente as bases de um novo modelo de desenvolvimento para o país com base nas forças vivas que façam convergência e, assim, sirvam de base para a alternativa concreta a apresentar aos portugueses.

2011-05-28


Movimento de 12 de Março de 2011

É um movimento conhecido por geração à rasca e que se pode caracterizar por ser cosmopolita, nacionalista e democrático. O que explica o entusiástico apoio mediático à sua convocação: a maioria dos jornalistas sofre do mesmo “mal”. Explica também a sua exaustão à partida: o nacionalismo com tradição em Portugal é anti-cosmopolita e quem apareceu a tentar reavivá-lo democraticamente, como o eanismo ou o Fernando Nobre, não foi bem sucedido.

A reverência e o ódio ao poder misturam-se hipocritamente, a ponto de a organização da manifestação ter ido entregar à Assembleia da República o espólio das sugestões de mudança a realizar, ou de circular na internet um apelo à formação de (mais) um partido à rasca contra os partidos, para “não perder esta oportunidade”. A confusão mental resulta da continuidade, em democracia, das políticas obscurantistas do antigo regime, especialmente visíveis nas escolas de Direito e nos tribunais, a ponto de o desejo de Salazar, para além de ser popular nos concursos da televisão contagiar Otelo Saraiva de Carvalho.

Inteligências à parte, os jovens e os seus pais mantêm entre si relações sociais intensas de solidariedade e de amor. Para alguns comentadores opositores ao movimento, terá sido essa a causa da insatisfação dos jovens neste momento de embrulhada nacional – filhos família sem emprego que terão que ir trabalhar para fora de casa. Para os jovens, de facto, a ideia de ter de abandonar o país e os pais para integrar a sociedade ao nível a que aspiram, pelo facto de terem formação superior, é uma angústia. Que não o seja para o país é que é extraordinário!

No fim dos anos 60, a ditadura impediu a publicação dos Censos para evitar que se soubesse do recuo demográfico dos jovens camponeses imigrantes para França e Alemanha. Em 2011 esperamos pelos resultados dos Censos que já se sabe vão registar o perfil de uma sociedade sem potencial demográfico para reconstruir o tecido económico. A diferença é que os poderes instituídos hoje nem podem nem se preocupam em esconder tais dados. Isto é, o trabalho deles – pagos como se fosse para fazerem política – é gritar tão alto e tantas coisas contraditórias de modo a que o efeito de obscurantismo seja o mesmo que no regime anterior.

40 anos antes, quando tínhamos a idade que eles têm hoje, não podíamos sair do país legalmente e a nossa moeda era tão fraquinha que se esgotava depressa nos países ricos. Hoje em dia os nossos filhos e netos podem sair com outro à vontade e sem serem tratados como escravos. É isso que muitos já fizeram e muitos mais irão fazer. O que nos torna a nós, geração de Abril, solidários com a geração à rasca é que sem o seu apoio emocional no dia-a-dia ficamos mais pobres, mais velhos, mais isolados, mais desesperançados e até em maior risco, já que, na prática, as nossas reformas contratadas com o Estado serão reduzidas – na verdade privatizadas – ao ponto de sermos nós, com a nossa existência, quem irá servir de âncora para as remessas dos imigrantes que hão-de servir, no futuro, para pagar os negócios actuais do Estado com o FMI e os bancos.

O regime democrático está esgotado. Mas insiste-se em que não há outro regime democrático possível em Portugal a não ser o protagonizado pelos bandidos que nos trouxeram até aqui. O governador do Banco de Portugal já pediu responsabilidades. Mas que sistema judicial têm credibilidade para julgar? Ou estará o senhor a apelar a julgamentos populares? Presididos pelos banqueiros? Precisamos de um movimento democrático, sim, mas contra a democracia que temos: há-de haver melhores, porque esta já não serve a ninguém a não ser aos corruptos.

Para muitos, mais do que no antigo regime, por enquanto, há a possibilidade de imigrar. Mas há também quem não aceite isso assim, sem primeiro manifestar o desejo de permanecer em Portugal: foi o que fez a geração à rasca, antes de partir. Os jornalistas, como todos os profissionais cuja especialização depende da língua, são particularmente sensíveis a isso. Pudera, noutros países europeus terão de reaprender a falar e dificilmente se libertarão de terem nascido falantes de português. Resta-lhes o consolo de termos uma língua que se adapta bem a qualquer outra e sermos nisso melhor que os demais.

Tal como no tempo da fundação da república em Portugal, está mais uma vez em causa a dignidade nacional mínima. Gostávamos que os olhares xenófobos do Norte não nos confundissem mais com Marrocos (sem desprimor para estes). Sabemos que para que isso aconteça temos que assumir uma posição e até sabemos qual é a posição: negar o actual regime político e estabelecer em liberdade uma democracia mais igualitária e com esperança. Como fazer isso sem pancadaria, é isso que ninguém sabe e, por isso, ninguém se atreve a dar um passo. Ou sequer romper mentalmente com a podridão ambiente. Lembraram-se, e bem, o Movimento de 12 de Março de ameaçar com a debandada, cumprindo o desígnio cosmopolita da estratégia abrilista. A nação, assim como assim, já está entregue. Ou ainda resta alguma coragem (e liberdade) para afirmar indignação pragmaticamente útil?

2011-04-28


Geração à rasca

Depois das manifestações de hoje, dia 12 de Março de 2011, a democracia, a sociedade, o povo voltaram a estar na ordem do dia, após se ter chegado a pensar que tudo isso eram conceitos do passado – e ainda há muita gente que assim o entenda, só que teme fazer provocações a tal tsunami.

O povo da unanimidade contra a situação fez-se mostrar. Hesita entre ser contra o regime – quando relembra o 25 de Abril de 1974 – ou contra o Sócrates, bode expiatório da desgraça nacional. A sociedade reclama por “medidas” – o que fazer? Onde trabalhar? A quem servir: a economia portuguesa ou a economia alemã? Mas é da democracia que todos sabem não existir que os comentadores mais reclamam a misteriosa existência.

Gostam de chamar à colação os povos do Norte de África para explicar – porque é precisa, sim, uma explicação – que as ditaduras eram lá que moravam. Porque aqui mora a democracia. Mas de que democracia falam os comentadores? Para usar uma expressão hipócrita muito utilizada na análise das decisões judiciais, falam de uma democracia formal. Parece uma democracia! Na substância a política tornada profissão exclusiva de seitas secretas e especialistas de pacotilha tem uma forma de enxotar observadores inconvenientes sobre o modo como os portugueses têm vindo a ser roubados faz décadas. É por querem ficar com tudo e não deixarem nada, como diz a canção, que fizeram dos partidos aquilo que são hoje: esquemas de compadrio, promotores da empregabilidade dos seus apaniguados, alimentador do terrorismo ideológico (como o dos temores lançados de haver entre os manifestantes aproveitadores para organizar distúrbios que só interessariam aos poderosos – pelos vistos nem a esses interessaram).

Não. É preciso dizer claramente: não estamos nem vivemos em democracia! A prova disso é que estamos sem alternativas. Os ladrões que tornaram o ambiente em Portugal irrespirável e se dizem peritos em política não são democratas: são políticos, isto é, para o povo efectivamente ladrões.

Esta verdade por ser simples não é demagogia. É só a verdade. E é uma verdade sem a qual não se poderá fazer política em Portugal.

A principal responsabilidade dos políticos democratas numa democracia é assegurar a perenidade do regime democrático. O regime democrático significa que em alturas de crise estejam disponíveis ao povo alternativas de governação capazes de resolver problemas como aqueles que hoje manifestamente enfrentamos. Na verdade os problemas que hoje enfrentamos têm vindo a ser escrupulosamente escamoteados de modo a evitar que esta reacção popular se tivesse produzido mais cedo. Aqui chegados, pergunta o repórter, que reclamam os manifestantes? Onde está o projecto alternativo que querem ver implementado? Isso é como perguntar ao político se tem emprego! É uma pergunta encomendada pelos políticos para os jornalistas imbecis fazerem às pessoas para as continuarem a amesquinhar.

A democracia não é isto! Se tivesse havido democracia em Portugal nos últimos anos, a desmobilização popular não teria sido aproveitada para o saque do tesouro e para impedir qualquer transparência e regulação da vida política. Os não votantes teriam sido considerados gente a conquistar para a participação em vez de inculpados do desgoverno. A democracia não é chantagem sobre os populares. É serviço ao povo, mesmo quando ele não se manifesta.

Agora ao povo resta a revolta. E muito trabalho dos democratas – se é que eles por aí existem – para reorganizar a vida política, na sua forma e na sua substância. Será possível fazê-lo a bem?


Não seria a mesma coisa!

Os dias mediáticos têm sido ocupados com as presidenciais e o homicídio de um colunista social lisboeta em Nova York. À medida que a política cai no vernáculo e a vida privada se torna reality show, tudo se confunde ao nível dos costumes, como muito bem assinalou um politólogo comentador.

O que haverá em comum na homossexualidade pontual de um homofóbico – que, segundo se diz nos jornais, enlouqueceu um jovem manequim que queria subir na vida pendurado no sexo de um velho poderoso – e a alegada vitória eleitoral, em tempos de austeridade brutal e desigual, do candidato presidencial mais à direita incapaz de explicar porque usa a amizade política de pessoas inculpadas de graves crimes económicos para fazer render os seus créditos políticos?

Para além da falta de verticalidade da honra auto-proclamada, há em ambos os casos um indesmentível pendor popular. Pode comparar-se, julgo, a corrente de solidariedade à volta da igreja da terra do homicida ao gosto do candidato presidente pela proximidade dos párocos. Em ambos os casos o povo gosta dos seus, isto é da homo-homofobia dos que querem subir na vida e da exploração das crenças pelos crentes mais poderosos. Esta é a filosofia do desenrasca: aproveita-se o que esteja mais perto e mais à mão. Ai de quem denuncie as contradições ou as perversidades. Já Eça conhecia os críticos da sujidade própria quando ela era exposta a público. Nesta terra os únicos culpados são os mensageiros, além dos suspeitos do costume – porque estão socialmente isolados ou estigmatizados pela autoridade, também ela autoritária.

Como poderia ser de outro modo? A autoridade deve ser autoritária, como a homofobia deve ser homossexual, como o negócio deve ser compadrio entre privilegiados. Desafia-se por uma melhor explicação para a quantidade de eleições em que os indícios de corrupção – municipais, partidárias, legislativas ou presidenciais – não têm efeitos nas votações! Desafia-se por melhor explicação para a impunidade dos amigalhaços em contraste com a dureza dos que não têm estofo para alinhar em imoralidades, esses radicais intoleráveis que perdem a razão pela forma como a expõem.

Podíamos ter outros patrões? Poder podíamos, mas o povo não seria a mesma coisa! Haverá por aí outro povo?

2011, Jan 15


A esquerda morreu! Viva a esquerda!

À tese da crise objectiva do capitalismo, declarada por ele próprio, no fim do ano de 2008, seguiu-se a prova de que nenhuma ideia de esquerda sobejou do colapso da ex-URSS. Repararam na satisfação com que tanto cretino (à esquerda e à direita) se lembrou de dizer o óbvio: que Karl Marx afinal sempre teria tido razão? O que não disseram foi que o Marx foi um revolucionário a surfar uma revolução. Mas o que fazer quando não há revolução na rua e se quer ser de esquerda?

Distraído como sou, imaginei que a queda do muro de Berlim significasse para o debate de ideias uma libertação. Na altura tudo estava condicionado: ou se era a favor do capitalismo ou a favor do socialismo, como se apenas existissem duas ideias correspondentes a duas realidades (o que era manifestamente estúpido, mas era assim que se pensava, seja o vulgo sejam os cientistas sociais). A liberdade, porém, não é o estado natural das sociedades abandonadas a si próprias. Caso não existam movimentos de libertação não há liberdade. E o que temos visto na era pós-colonial são movimentos de libertação – muito associados a processos de individuação, lá onde haja condições para tal – a que também chamamos (erradamente) movimentos sociais (por vezes sociedade civil, solidariedade, etc.) mas fora de qualquer perspectiva socialmente revolucionária. Em Portugal, em particular, a perspectiva de emprego já não é uma perspectiva de trabalho. Como se costuma dizer, os portugueses recusam-se a fazer certos trabalhos e, portanto, recusam-se a sacrificar-se pela sociedade, com o risco de perderem um pouco o sentido das realidades, de tal maneira as realidades são encobertas com camadas de informação.

Alguém dizia que caso Portugal queira ou seja obrigado a sair do Euro o valor das mercadorias em Portugal seria imediatamente reduzido a um terço (ou mesmo um quarto) do valor actual. O que quer dizer que a nossa estadia no Euro fez crescer especulativamente o valor à nossa disposição por 3 ou 4 vezes, de que alguns espertalhaços aproveitar mais que os outros. Mas afinal a economia, numa grande medida, é política e poder em estado puro. O poder de a zona euro aceitar lidar com os portugueses (e com cada um dos outros países) lá para os fins económicos que entendem ser bons para quem lá mande naquilo. Ora, será a esquerda capaz de dizer aos portugueses como se devem comportar em tais circunstâncias? A mim parece-me que não. Porque os portugueses, apesar da falta de educação, não são parvos, como nenhum povo no mundo. E compreende muito bem ser verdade aquilo que a direita lhes diz: “nós somos do primeiro mundo!” As expectativas de vida que a generalidade dos portugueses imaginou em jovem foram em grande medida ultrapassadas pela realidade. Nos países europeus mais habituados a viverem no centro do capitalismo, onde as expectativas de vida são decrescentes faz pelo menos vinte anos, a reacção dos povos à situação actual também não é revolucionária. A crise objectiva – isso é mais que evidente – não produziu numa crise subjectiva. Verificado isso mesmo, passados alguns meses após a declaração oficial da crise, a direita volta ao ataque e impõe a continuação e aprofundamento da política anteriormente seguida. Porque haveriam de mudar ou sequer puxar pela cabeça se não têm oposição.

Ser de esquerda, nos dias de hoje é um pouco vergonhoso. Por isso os jovens preferem ser de direita, da mesma maneira que muitos “gostam” do Benfica. Tal partido vem de mais longe, tem mais tradição e está a ganhar os campeonatos. Por isso, também, encontramos na actividade cívica e política barreira geracionais importantes, que implicam a necessidade de um trabalho em profundidade à esquerda, sobretudo na crítica teórica e também na prática de mobilização, para poder vir a ter possibilidades de mudar de rumo algum dia. O estado a que a esquerda chegou está bem patente nas eleições presidenciais que aí vêm: o antigo candidato dos “movimentos sociais” tornou-se o defensor do desacreditado Sócrates, na esperança de o PS voltar a ser um partido com ambições à esquerda. A esquerda propriamente dita, essa, está fora de jogo. Perdoem-me os comunistas por não os meter nesta equação, mas a minha ambição para a esquerda é a de assumir a governação, caso venha um dia a saber o que fazer em tal posição.

30/06/2010


Portugal para o mundo – mar, transparência, direitos humanos e ecologia

O fim de ciclo semi-milenar colonial das Descobertas traduziu-se numa redução da política externa portuguesa ao continente europeu (e à submissão deste aos desígnios desastrosos da política norte-americana que antecipou a decadência da hegemonia ocidental no mundo) quando, pela natureza das coisas, Portugal está vocacionado para políticas marítimas, como é evidente.

A caricatura da vocação marítima portuguesa é o abandono das zonas exclusivas, a litoralização da população e a desertificação política do interior, em favor da especulação imobiliária, dos negócios do crédito e da fuga ao fisco, da manipulação partidária dos impostos e das populações, enfim, das alianças políticas entre grupos privilegiados, organizados oligarquicamente, que transformaram a crise financeira internacional no descrédito da política e – o que é mais grave – da credibilidade das instituições.

A Europa connosco foi um brevíssimo ciclo da vida portuguesa que adiou a tomada de novas decisões geoestratégicas para orientar os destinos portugueses nos próximos séculos, pago em fundos que alimentaram a organização da corrupção, do caciquismo, do compadrio e finalmente das seitas que tomaram conta do Estado, geralmente por via partidária mas também por via das instituições e das organizações da sociedade civil, enlaçadas entre si em torno de privilégios, evidentes quando se trata de observar os direitos a múltiplas e chorudas pensões de Estado de uns poucos, por acaso aqueles que decidem a redução das pensões singulares da maioria ou pouco fazem para impedir o desemprego e a precariedade no trabalho e na vida dos mais jovens.

As instituições não servem os interesses dos portugueses: isso já é evidente para todos e é inegável. A questão é saber como se sair desta situação, sendo também certo que nela não será possível ficar por muito mais tempo.

Face à disputa entre os dois mais representativos candidatos à próxima eleição presidencial sobre qual deles melhor assegurará a manutenção do actual governo e, ainda que sem ele, as mesmas orientações políticas – por exemplo, debaixo da batuta do PSD e do CDS – resta-nos constatar a insanidade mental e política não apenas dos candidatos mas do próprio sistema político no seu todo. O que não é de admirar, dada a evidência de jamais algum Presidente da República se ter oposto ao disfuncionamento das instituições e aos desrespeito pela Constituição e pela Lei em geral, como seria seu estrito dever e como consta do juramento solene, entretanto não honrado, tornando a política numa mentira, de que o actual primeiro ministro é apenas um símbolo e um bode expiatório. Não que esteja inocente, no sentido técnico, mas porque tenha sido nado e criado neste ambiente de falsidade e de perversidade que hoje todos reconhecemos ser a vida portuguesa.

A campanha presidencial é uma oportunidade para, quem entender assumir as suas responsabilidades cívicas nela participando, abrir caminhos para o novo grande ciclo político que vem aí, mesmo contra a vontade dos mais poderosos. Quem o fizer estará a contribuir para – caso a discussão franca e aberta venha ser a possível e a saibamos, pela nossa parte, organizar – que o novo ciclo não seja mais um desastre histórico para a Pátria, de que temos alguns exemplos na nossa longa história, mas sim um renovar da esperança nas pessoas, na vida e na humanidade.

No fim do mandato do novo Presidente o mundo terá mudado de centros políticos e económicos. Portugal terá que se reposicionar proactivamente e tem boas condições para o fazer. Essa será a única forma de assegurar a reversão de algumas das tendências nefastas que temos vivido, a nível do ordenamento do território, da demografia, da educação e da justiça, nomeadamente, a que nenhum interesse estrangeiro atenderá se não formos nós próprios, os portugueses e quem queira viver em Portugal, a definir metas e traçar estratégias realistas para as atingir. Portugal teria vantagem em eleger um Presidente da República, em vez de mais outro “Presidente de todos os portugueses” que têm sido, na prática, encobridores da corrupção das instituições e cúmplices – ainda que populares – do estado a que isto chegou. Precisamos de um Presidente capaz de cumprir o juramento a que está vinculado, em vez de trânsfugas da honra, cuja função é fingirem estar despossuídos de poder.

O próximo Presidente, quer queira quer não, será confrontado com um mundo em acelerada mudança e, por isso, deverá deixar claro para que lado preferiria ver Portugal inclinar-se e para que lados não irá deixar Portugal reclinar-se. As intenções de apoio a governos decadentes e desacreditados como o de Sócrates não apenas são hipócritas como são ensaios de desresponsabilização pessoal na continuidade das políticas corruptas e obscurantistas que nos têm conduzido até aqui. Não precisamos de D. Sebastião: precisamos de um Presidente da República!

Portugal deve discutir urgentemente a sua relação com a China, a nova potência global, à qual as economia e política global, previsivelmente, se conformam e continuarão a conformar por muitos anos adiante. De que modo as nossas relações com a China poderão potenciar a nossa relação com os mares, coisa que a relação com os EUA não favoreceu. Temos a oferecer o respeito que temos pela cultura chinesa e devemos reorganizar o ensino em Portugal em função dessa nova orientação, incluindo uma revisão dos valores portugueses em função das doutrinas dos Direitos Humanos, do Estado de Direito, dos princípios de transparência e de regulação institucional, em parceria com os Chineses, em favor do aprofundamento das relações entre Europeus e o Império do Meio, de que novamente devemos, podemos e temos interesse em ser os precursores.

Tal orientação geral deverá ter em conta as nossas inserções tradicionais no mundo e potenciá-las, seja relativamente à Europa e à América do Norte, seja relativamente aos países lusófonos, seja à Ibéria e países do Sul da Europa ou ainda ao Norte de África.

Nesta perspectiva há que ser arrojado na disponibilização de pessoas e recursos para implementar políticas democráticas benéficas e solidárias, de acordo com as melhores tradições liberais (no bom sentido, como se costuma dizer) e de esquerda ocidentais, na perspectiva da afirmação de modelos de desenvolvimento garantes do bem estar social, coisa que não está a ocorrer com o actual modelo adoptado no ocidente (e, por isso, não se percebe porque se insiste nele, a não ser na perspectiva de manutenção de privilégios de minorias cujos interesses se revelam cada vez mais contraditórios com o interesse público e geral).

Portugal é um país de emigrantes; terá que ter políticas de emigração que favoreçam tal emigração e a organizem em favor da paz e do interesse nacional. Por exemplo, numa altura em que as pensões sofrem graves revezes, os seus beneficiários que estejam em condições de o fazer, poderiam ser estimulados para emigrarem para países onde as suas capacidades possam ser utilizadas – capacidades profissionais e capacidades de consumo através da pensões que têm – e os seus recursos potenciados, tendo em conta a paridade entre as moedas locais e o Euro. Tal movimento jamais se fará sem uma organização Estado a Estado, em função de interesses comuns. Mas como em muitos casos há problemas demográficos inversos (excesso de jovens abandonados de um lado e excesso de pessoas de idade abandonadas do outro), a globalização poderia servir para reequilibrar a situação e Portugal poderia tornar-se rapidamente e novamente um país rejuvenescido, através da imigração organizada em função dos valores da política assim desenhada.  

20/06/2010


“Presidente de todos os portugueses”?

Faz já uns anos que a demagogia tomou conta do Palácio de Belém. Adoptando uma versão pós-moderna da união nacional salazarista, os sucessivos Presidentes da República têm aceite desresponsabilizar-se das funções que juraram desempenhar quando empossados a coberto da velha política do “não se discute” o interesse nacional. De outro modo, como seriam presidentes de todos os portugueses?

Como bem sabe o povo, os nossos presidentes – por vezes conhecidos como semi-presidentes, segundo as complicadas teorias políticas em que se formaram – servem para não fazer nada. Os jornalistas interpretam isso como subtis ou mesmo subliminares estratégias para manterem o prestígio nas sondagens e assim assegurarem a reeleição (mesmo quando, nos segundo mandatos, ela é impossível).

Talvez seja bom começar a dizer-se que o acumular de prestígio nas sondagens – singular, para uma instituição democrática – seja qual for o Presidente em exercício, se deve à irresponsabilização organizada pelo sistema político, em geral, e que tem tido por cúmplices os sucessivos Presidentes desta república em tempo de saldos. Talvez seja bom começar a compreender-se como a corrupção das instituições foi possível nas barbas do Presidente sem que este, garante do respeito pela Constituição e pelo regular funcionamento das instituições, tenha mexido palha.

Fartámo-nos de ouvir o PCP gritar que a constituição estava a ser violada. E estava e está, como é evidente. O próprio PCP deixou de reclamar, tendo compreendido por um lado a incapacidade do espírito de legalidade ter algum curso neste país, e por outro lado ficando claro ser o próprio sistema judicial incapaz de, no seu interior, estabelecer critérios mínimos de fiabilidade legal reconhecíveis e compreensíveis para a população. Vivemos um Estado sem Direito, como foi denunciado, sem contradição ou drama, por vários agentes responsáveis, cujas declarações foram sistematicamente ignoradas.

Ocorre que tais declarações correspondem à verdade dos factos e não podem ser ignoradas pelo Presidente da República. Os portugueses não precisam nem votam num amigo. O Estado português (corrupto como está, fora da lei como anda) é que precisa de um Presidente capaz de cumprir um juramento solene, mesmo que os partidos, os tribunais, as assembleias soberanas ou o próprio povo prefiram viver na balbúrdia e na confusão.

Se em Portugal a culpa tem morrido sempre solteira, sem dúvida o exemplo vem de cima. A ternura com os Presidentes da República se insinuam (com sucesso) nossos amigos, com o apoio (e até imposição) de todo o regime putrefacto que temos hoje, tem servido para escamotear a sua irresponsbilidade, como muito bem (ainda que antipaticamente) reclamou um Presidente de uma República aliada (a República Checa), para não dizer a sua traição ao juramento político que livremente aceitaram fazer, após campanhas políticas em que nenhuma clarificação tem sido feita entre a solidariedade nacional e as responsabilidades políticas das instituições.

A alegação política de que o Presidente a República é uma espécie de Rainha de Inglaterra republicana não corresponde a todas as leituras que são admissíveis da Constituição portuguesa. Corresponde aos desejos dos interesses instalados, que preferem negociar como um governo livre de sistemas de regulação ou sequer de crítica, para melhor explorarem o território, as mordomias, os subsídios, as empreitadas, à sombra do que cresceram (e de que maneira) uma diversidade de seitas bem sucedidas, sustentáculo do trabalho extenuante de tornar Portugal o país mais desigual da União Europeia – bem como dos mais pobres.

Os próprios presidentes, naturalmente, a tomar pela descarada acumulação de pensões – mais o que se sabe e não se sabe de negócios esconsos – integram as suas próprias seitas secretas de pessoas influentes, cabendo-lhes, na sua óptica, parecer impolutos e legitimar que os seus amigos, por mais criminosos que sejam, também pareçam impolutos. Não é por todos sabermos disso que o povo goza sempre que algum procurador ou juiz decide atacar um político? Essa é, mesmo, a única atitude popular que um juiz ou procurador pode assumir, de tão degradado que está o seu próprio prestígio.

A funcionalidade do sistema passa por remeter para fora do debate político – nomeadamente para a vida pessoal dos políticos – a atenção dos portugueses e das instituições, como se o mérito fosse medido pelo que cada qual consegue sacar em vez de ser exactamente o reverso. Estamos chegados a um ponto em que quem tente equiparar o saque ao mérito ficará, necessariamente, desacreditado. Eis um tímido sinal de mudança.

Mas a questão central é política: teremos que depender da esperança de um D. Sebastião estrangeiro, vindo da Alemanha ou do FMI, para pôr cobro à roubalheira, ao amigismo, à ignorância, ao medo e à corrupção? Ou caberá ao povo mas sobretudo a quem jurou cumprir e fazer cumprir a Constituição da República – contra os portugueses que não o fazem e sobretudo contra aqueles que não o querem fazer – dar o corpo ao manifesto?

Contra a irresponsabilidade na Presidência marchar, marchar!

16/06/2010


Estratégia de recuo

A situação estratégica portuguesa não aparece favorável, na sua configuração actual. Por isso as atenções de vários quadrantes geralmente divergentes se voltam outra vez para o Brasil, mas agora como potência dirigente a quem possamos servir.

A configuração actual não é boa e não só se espera a qualquer momento as formas através das quais se concretizarão as maiores dificuldades políticas e económicas como não há esperança de melhorias, tanto quanto as previsões possam alcançar.

A desertificação do país é um risco apontado pelos especialistas do clima, da demografia e da crítica. Geografia, populações e mentalidades em uníssono parecem confirmar uma desgraça de grandes dimensões, mesmo sem a crise económica – que é a primeira – e financeira – que é mais reconhecida.

Pode pensar-se como o George W. Bush, que é como quem diz não pensar: dizer que devemos continuar a fazer o que sempre fizemos e ignorar previsões catastróficas por estas serem imorais e desmoralizadoras. Diria que esse é actualmente o pensamento dominante em Portugal, inspirado no bloco central dos interesses locais e também na influência da classe política triunfante que vingou no ocidente como resultado do êxito das políticas conhecidas como neo-liberais. É certo que há quem queira abrandar o investimento do Estado – por exemplo, nas grandes obras públicas – mas não é para fazer diferente daqui para a frente. Querem fazer exactamente o mesmo, mas como se fosse tudo privado, abandonando o público à sua sorte.

Mas pode também pensar-se que o fracasso do capitalismo com regulação mínima (e cúmplice) está a pedir mais intervenção pública, mais democracia, aquilo que o Estado não quis proporcionar nas últimas décadas e que cada vez mais mostra não querer nem estar em condições de proporcionar no futuro. A existência de inúmeros programas de regulação em muitas das principais áreas de actividade social e económica mostra que eles só não foram eficazes porque a iniciativa privada se lhes pode opor subordinando o Estado às suas próprias vontades (irrealistas) tendo-nos feito chegar ao estado em que estamos.

Os Estados ocidentais organizaram a globalização, como forma de ultrapassar os constrangimentos laborais impostos pela regulação social própria dos Estados Providência à arrecadação de lucros. Foram explorar lá fora o que não conseguiam explorar cá dentro. Isso permitiu, uma vez desenvolvido com sucesso o esquema infra-estrutural apropriado (de que a rede financeira que permite deslocar instantaneamente o capital e produzir moeda especulativa ad-hoc é uma parte), retornar aos territórios do centro do capitalismo e pressionar os salários até uma equalização global, em nome da competitividade. Na verdade o que ocorre é o esvaziamento não apenas moral mas também económico e financeiro do centro do capitalismo, em vias de ser substituído por novas paragens geográficas, a Oriente e a Sul.

Terá aspectos benéficos, esta redistribuição do poder e da riqueza no mundo. Porém, o modelo de desenvolvimento que estamos a considerar continua a ser o capitalismo puro e duro, medido pelo PIB, com desconsideração quer da pegada ecológica, quer dos rendimentos disponível das famílias, quer do desenvolvimento humano. A China, a Índia, a Rússia ou o Brasil competem pela felicidade dos respectivos povos do mesmo modo que os países ainda do centro do capitalismo o fizeram, para agora nos dizerem serem incapazes de manter as promessas de bem-estar e protecção contra os fados tradicionais, fome, doenças, isolamento e maus tratos sociais. Com a agravante de após a experiência industrial estarmos com problemas ecológicos produzidos pela actividade humana desconhecidos anteriormente.

O envelhecimento da população no centro do capitalismo marca uma falta de potencialidade de inovação e de reconversão socioeconómica e mental que torna praticamente inevitável o declínio, seja por via da desindustrialização, seja por via da competitividade, seja por via das dissidências internas que já aparecem à luz do dia, na sequência das miseráveis políticas de segurança de inspiração xenófoba que nos têm dominado (bem assim como os nossos parceiros do Norte de África) ao arrepio das melhores tradições dos Direitos Humanos, seja ainda por via da guerra de gerações entre aqueles que têm direito a reformas e aqueles outros que não terão esse direito mas são quem paga.

A velha esquerda foi pensada como uma forma humana de pensar o desenvolvimento, quando este estava em curso tendo por motor o capitalismo de primeiras vagas. A esquerda de hoje, com o desenvolvimento às arrecuas e com problemas estruturais que afectam o meio ambiente e as condições sociais de existência, têm condições de propor aos portugueses – e através deles aos europeus, aos brasileiros e a todo o mundo – um modelo de desenvolvimento capaz de lutar pela preservação do meio ambiente através de uma reorganização social e económica intensiva em força de trabalho, capaz de tornar indispensáveis e solidários todos os seres humanos, em nome da igualdade e da liberdade?

28-06-2010


Reformados de todo o Portugal uni-vos!

Quando foi da “Europa Connosco”, a saída política do processo revolucionário que fundou o actual regime político, opunha-se-lhe o que os vencedores chamaram o “miserabilismo”, isto é a defesa de um leque de rendimentos mais apertado e uma apostar nas solidariedades e cumplicidades próprias das consanguinidades culturais lusas com países do Terceiro Mundo. Escolhemos ser ricos. E aqui estamos.

Se fosse rico, com 54 anos deveria estar a planear como ocupar os anos de reforma, merecida pelos 30 anos de trabalho, como faziam nos países europeus (hoje só os funcionários da burocracia europeia de Bruxelas têm direito a tal). Em vez disso, estou preocupado com o que me irá suceder quando, daqui a mais quinze anos, deixar de poder trabalhar. Nessa altura dificilmente alguém encontrará qualquer resquício dos investimentos que fiz, através do Estado, para a minha reforma. De facto, embora tenha pago com os meus salários as reformas dos nossos mais velhos, em poucos anos os nossos mais novos estarão, em grande parte e os melhores de entre eles, fora do país que os abandonou à sua sorte, esmifrando-lhes a paciência em humilhações e desconsiderações intoleráveis. Do meu investimento restará a falência da segurança social.

Como os meus amigos de geração e de classe – embora sem ser racistas ou preconceituosos, claro – preferem viver em condomínios fechados ou pelo menos com parque automóvel subterrâneo, construindo assim o seu próprio mundo virtual entre as garagens do trabalho e de casa (e a escola dos miúdos, para aqueles que os fizeram), a quem irei recorrer quando, com os filhos no estrangeiro e sem amigos, precisar de uma sopinha aquecida para entreter o resto da vida? À reunião de condomínio?

Dos filhos dos outros, a recibos verdes e com trabalhos precários, posso esperar desprezo – bem merecido – por ter sido incapaz de lhes cumprir um destino aceitável. Dos governos que os representarão poderei esperar melhor do que daqueles que me representam agora? Continuarão o aproveitamento do ódio social entre grupos e estratos para dividir e a todos roubar o mais possível. Não é fácil conseguir recursos suficientes para alimentar as ambições de riqueza dos exploradores europeus virados cada vez mais para o seu próprio continente – a mama de explorar os outros, é certo, está no fim. Ironicamente isto vislumbra-se na sequência da globalização feita para enriquecer os patrões de um sistema que, agora, apenas conseguem prometer a redução dos rendimentos, mesmo e sobretudo daqueles de quem dizem não compreender como (ainda) sobrevivem com tanto pouco.

Não admira, pois, que a população europeia, como notou Agostinho da Silva alguns anos antes, se esteja a suicidar demograficamente: é a correspondência pavloviana, de facto, a uma política suicida das elites europeias, enlouquecidas pela sede de poder em tempo de secura.

Reformados provavelmente não faremos mais filhos. Mas seremos capazes de defender os valores morais que atraíram os povos que colonizámos, apesar das barbáries cometidas? Ou abandoná-los-emos, morrendo cobardemente e sem glória, amaldiçoando esta península continental para as civilizações futuras? Reformados, não nos podemos reformar: teremos que lutar pelas nossas reformas, o que quer dizer pela dignidade dos nossos filhos, sejam eles naturais ou adoptados. Como num jogo de futebol, a Europa Connosco reclama tensão aumentada no fim do jogo e vontade de marcar ao cair do pano.

Reformados de todo o Portugal uni-vos!

 2010-05-26


É tempo de matar o porco!

A sentença ilibatória do senhor Névoa, a par da sentença condenatória do senhor Ricardo Sá Fernandes, chocou o País. Só um estado adiantado de decomposição das instituições e da moral pública permite tal conjugação nefasta de factos. Só não ocorre alarme público por radical desesperança popular na autoridade do Estado.

De pouco adiantou, uma década atrás, o reconhecimento oficial, por Jorge Sampaio, da crise do sistema judicial, do empecilho que ele constitui (cada vez mais) para o desenvolvimento e a democracia no País e da necessidade de reverter urgentemente a situação. Chegados a tais extremos, porém, com tal funcionamento das instituições – sejam elas o Parlamento responsável pela legislação em vigor, ou os sucessivos tribunais que apreciaram este (e outros) caso (equivalentes mas menos mediáticos) – fica claro que a corrupção, para além de ser uma forma de (des)organização política do Estado e dos mercados, é uma prática não apenas tolerada mas também protegida.

A circunstância da crise financeira e económica europeia, dentro da crise global do domínio ocidental no mundo, em particular a necessidade de concretização do famoso PEC, de nenhum modo excluiu ou sequer secundariza o desígnio nacional de organizar a luta contra a corrupção. Pelo contrário: é também contra a corrupção estrutural que se dirigem as invectivas dos que contestaram a ajuda à Grécia sem garantias, sem condições e sem fazer sofrer com a demora da ajuda. O que, ainda que doutro modo, poderá bem ocorrer também com o nosso país, nos mesmos ou em outros termos.

Os custos financeiros da corrupção, pudessem ser avaliados, ainda que de forma controversa, caso fossem evitados, não deixariam de ser uma forte (decisiva?) ajuda às contas públicas. Porém, é ao nível económico, ao nível das práticas de mercado, da confiança entre agentes de desenvolvimento e entre o Estado e a sociedade civil, nas suas diversas matizes, é a esse nível que o impacto do combate à corrupção mais efeitos terá. Não será possível reorganizar o País com vista a uma nova fase de desenvolvimento que urge realizar com a promoção por parte do Estado da corrupção alargada, contra os actos de coragem cidadã de pessoas com provas dadas de disponibilidade para o serviço público, como é o caso do denunciante acima citado, transformado em “agente encoberto” como forma de o estigmatizar por ter organizado a denúncia do que todos sabemos serem práticas correntes e lesivas não apenas das contas da Câmara Municipal de Lisboa, mas do Estado, da economia e da moral do país.

A política, bem como as decisões judiciais, não podem continuar reféns de argumentações técnico-administrativas para protecção de interesses criminosos que sugam as nossas riquezas. O combate à corrupção tem de ser uma prioridade de primeira linha. Não pode continuar a acontecer que as maiores acusações – entre as diversas autoridades jurídicas entre si, inclusivamente, entre polícias e magistrados do MP, entre políticos contra “a corrupção organizada ao mais alto nível do Estado” – não tenham efeitos práticos de tocar a reunir o partido contra a corrupção. É literalmente criminoso não reclamar por políticas efectivas e urgentes de luta nacional contra a corrupção, o que significa recolha de informação disponibilizada por quem possa aderir politicamente a tal desígnio para tratamento e alimentação das reacções – penais, administrativas, organizativas económicas, financeiras e outras – que se venham a conseguir coordenar com o mesmo fim.

2010-5-18


Pedra por pedra

Precisamos um partido de paredes de vidro a múltiplas vozes, sem centralismos, seja qual for o adjectivo que se lhe siga. Precisamos de um partido virado para a liberdade de expressão dos militantes de base e para os seus problemas locais e não para consagrar mediaticamente as mais brilhantes ideias de dirigentes vitalícios. Queremos um partido europeísta mas que não aceite ordens de Bruxelas, como ultimatos. Queremos uma União Europeia dos povos e não dos burocratas e seus aliados, de moral cada vez mais duvidosa e perdida. Esse partido – apesar de desejável – não existe em Portugal.

Queremos criá-lo?

A esquerda purificada finge-se irresponsável perante o que se passa em Portugal, pelo facto de não pertencer ao arco do poder. Na prática, tal atitude tem negado às propostas de esquerda qualquer vigência regular e eficaz na vida institucional e, portanto, na vida social. A Nova Esquerda deve começar por assumir as suas responsabilidades próprias na situação, pelo simples facto de não se ter constituído antes – apesar do espaço político estar lá vazio, faz muito tempo, à espera de ser ocupado. Não vale a pena fingir, como foi feito na viragem de regime de 1974, que não há responsáveis pelo descalabro, nem dentro do regime nem fora dele. Se alguma coisa precisa de (e pode) mudar em Portugal é a ética política e pública.

O medo difuso mas persistente e característico que sentimos e vivemos tem de ser substituído pelo orgulho. Orgulho de querermos mudar de vida e sermos capazes de dar passos nessa direcção. Não em função de seitas que asseguram a subida na vida, como pactos com o Diabo. Não em função da resignação perante as convenientes aparências das “solidariedades” com Bruxelas, branqueadoras e estimuladoras da corrupção organizada aos mais alto nível em diversos (todos?) os estados da União. Orgulho de darmos a nossa cara e o nosso tempo para nos organizarmos, em solidariedade com outros, que pensem de modo diferente mas que compreendam a necessidade de sanear a vida pública.

Essa solidariedade de que Portugal e a Europa precisam para cumprir as suas melhores tradições – em particular a tradição democrática liberal e social por direitos – é pluralista. Deve, pois, estender-se a todas as organizações cívicas e políticas que possam colaborar para dobrar este cabo das tormentas em que estamos encalhados. Porém, se há instituição que faz falta, essa é a de uma força política capaz de dar esquerda à governança de Portugal e, ao mesmo tempo, libertar cada um dos portugueses e das instituições em que trabalham do torpor herdado do obscurantismo que, por toda a evidência, o regime actual quis continuar do regime fascista, como garantia de paz podre, que efectivamente conseguiu.

O sequeiro de que Portugal foi alvo nos tempos mais recentes está a chegar ao fim. Não porque a Esquerda tivesse feito alguma coisa por isso. Mas simplesmente porque o saque já não tem mais por onde continuar a crescer. As desigualdades evidentes duram há muitos anos, mas são hoje moralmente intoleráveis. Pior é a cumplicidade evidente das principais instituições do país. A falta de democracia que temos vivido revela-se nos resultados: nenhuma esperança de mudança. Tudo é ficção e vigarices.

Cada um terá que assumir a sua cota de responsabilidade, humildemente, para que as próximas gerações possam usufruir de um espaço público educado e despoluído. Como no tempo das catedrais, cada artesão há-de produzir-se e assinar a sua pedra. Para reconhecimento futuro da nossa vontade colectiva. A Nova Esquerda será isso ou não será.

2010-5-14


O Papa contra papistas

Da minha distraída memória relativamente às discussões televisivas sobre a visita do Papa a Portugal fixei, talvez por terem sido particularmente vivas, as de Rebelo de Sousa – “explicando” como a Igreja está a ser vítima de uma cabala, pois “a pedofilia está em todo o lado” – e a de um conhecido fundamentalista a quem foi admitido, sem nenhuma reacção, afirmar que desde há dois mil anos a Igreja Católica defende a democracia.

Refiro-as aqui porque as declarações do Papa no avião que o trouxe de Itália apontam tais atitudes – com um conhecimento de causa e autoridade que escapam ao comum dos mortais – como as inimigas da Igreja. Disse ele, com razoável transparência e sem ambiguidades, que as cabalas contra a Igreja de que se fala vêm de dentro da Igreja, nomeadamente aqueles que pretendem ou continuar a ocultar os crimes ou, reconhecendo a sua irreversível visibilidade, pretendem impor o perdão aos culpados sem admitir a intervenção da justiça.

Aguarda-se, então, pela penitência destes nossos católicos militantes, justificando-se por serem mais papistas que o Papa, como costuma dizer-se, e afastando-se assim do estigma de serem parte da conspiração para destruir a própria Igreja a que dizem pertencer. Poderemos esperar pela intervenção de jornalistas do regime para esclarecer esta questão? Nomeadamente junto do Patriarca de Lisboa, cuja voz ambígua mais pareceu suportar os conspiradores do que a rara clareza papal, que os jornais espanhóis associaram à terceira profecia de Fátima.

 

O certo é que antes da chegada do Papa o cartaz que me incomodou o passo e que deveria servir-lhe de boas vindas foi retirado. Serão já as forças de limpeza a actuar no seio da Igreja portuguesa?

2010-5-12


 

Acreditar foi o pai que ensinou?

ACREDITAR FOI O PAI QUE ENSINOU, em letras grandes, - sito de cor - é uma frase publicitária escolhida para divulgar a chegada do Papa a Portugal. Um imberbe em pose de imberbe faz de figurante. De imediato alguma coisa me arrepiou: a hipocrisia parecia sorrir por detrás do cartaz, oculta mas tão evidente que me repugnou.

A minha vida religiosa acabou na minha primeira comunhão. Depois das aulas de catequese em que nos contavam parábolas sem apelo à compreensão – por pressão da minha mãe que nos pediu para aprender primeiro e escolher depois – fiquei sobretudo impressionado com a ideia de deglutir o corpo de Cristo simbolizado na hóstia. Não posso dizer que me preparei bem – aquilo de ter que me confessar de “maldades” quotidianas era um bocado estúpido – mas lá que me emocionei com a entrada da

hóstia no meu corpo, emocionei. Enregelei rapidamente quando notei que os adultos que me enquadravam nem reparavam no que eu sentia nem eles próprios sentiam – aparentemente – nada.

A partir daí deixei de me referir à religião. É como se não existisse. Por isso, para mim, vir o Papa é o mesmo que ir ou nunca por cá ter passado ou jamais ter existido. Claro que estou consciente das consequências da sua existência, mas no meu íntimo algo bloqueou a tal respeito.

Numa ocasião em que o Papa é conotado, com razão ou sem ela, com o nazismo e o abuso sexual de crianças, a frase publicitária que o acompanha aparece-me como uma provocação. Ou até uma confissão. A racionalidade da Fé cristã, que também existe como potencialidade, é completamente eliminada desta frase, centrada na obediência patriarcal. O Pai, o meu pai e o padre, como se fossem uma santíssima trindade, aparecem aglomerados num PAI no meio de uma frase escrita em letras grandes. O Führer e o abusador sexual (pai ou padre) não deixam de poder estar incluídos no conceito, por antagonismo à mãe, à minha mãe – que foi quem me recomendou a Fé católica – e a todas as mulheres, sedentas de Paz. Porque são elas, crianças, jovens ou velhas, as maiores vítimas da guerra e da violência, dos Imperadores e dos patriarcalistas.

2010-05-06


Construamos uma nova sociedade

Face ao muro de impossibilidades que se nos deparam e a que fomos conduzidos por uma classe dominante incompetente, que apenas foi capaz de entregar os assuntos públicos aos interesses privados, com abastados lucros próprios, é preciso dizer que há outras possibilidades, a esperança de se viver melhor depende das nossas vontades reunidas.

A Nova Esquerda quer contribuir para a mobilização de quem vive em Portugal, para que não abandonem o país à sua sorte: esta não está predestinada. Nunca esteve. O que aconteceu foi que nos deixamos embalar pelas virtudes de uma Europa solidária, que agora ameaça retaliar termo-nos deixado conduzir por uma oligarquia de seitas de arrivistas. E se queremos merecer o crédito alheio, efectivamente, não podemos continuar a pensar que basta apanhar a última carruagem do comboio e descansar. É preciso agir.

Para organizar a acção eficazmente são precisos princípios claros e eficazes para atacar, ao mesmo tempo, a miríade de problemas que se nos colocam, a começar pelo “medo de existir”, passando pela iliteracia e pela corrupção, pela desistência da justiça de funcionar para o bem público e acabando nas contas públicas.

A Nova Esquerda/Movimento para uma Nova Sociedade propõem dois princípios muito claros e simples, como pedras de toque da acção cívica e política para a construção de uma Nova Sociedade: a) o reforço e amplificação da liberdade de expressão; b) a implementação de uma economia social de mercado.

Comecemos por apontar as linhas gerais de acção que se deduzem do segundo princípio político. Todas as empresas, organizações e organismos públicos, para se manterem em actividade legal, terão de promover a publicitação, o desenvolvimento e actualização das razões da sua existência, como contributo para o bem comum, reduzido a um documento a que se chamará Contributo Social da empresa ou organização. Todas as empresas e organizações terão de dar respostas, num prazo adequado de tempo a fixar por lei, a petições públicas que lhe sejam dirigidas pelos cidadãos, alegando qual a parte do texto do seu Contributo Social se refere a esse assunto. Caso contrário deverá a resposta indicar de que modo e em que tempo tal assunto será integrado no seu Contributo Social.

Problemas candentes como as pensões, a corrupção, os salários e prémios dos administradores, a precariedade no trabalho, práticas de concertação de preços, energia, atentados ao meio ambiente e ao património, criação de condições dignas de vida para as populações, reanimação do interior do país, etc. seriam tratados pelos intervenientes directos de forma explícita e pública, como contributo para uma democracia participativa assegurada pelas entidades mais activas e poderosas das sociedades modernas.

Do cumprimento deste desiderato e da sua qualidade dependerão os apoios e encargos públicos, fiscais, políticos e outros que o Estado poderá oferecer. O que implica a institucionalização de uma entidade reguladora dos mercados sociais cujas tarefas principais serão a) organizar a avaliação formativa e somativa dos Contributos Sociais por sectores, fileiras e regiões de forma independente dos interesses partidários, económicos e sociais em presença; b) produzir relatórios síntese da evolução recente (trimestral e anula) dos Contributos Sociais.

O financiamento destas actividades deveriam ser feitos pelas empresas e organizações junto de escolas, universidades ou empresas de consultoria, de modo a mobilizar os licenciados e outros detentores de graus académicos superiores para exercerem livre e aprofundadamente as respectivas competências a favor de uma Nova Sociedade, nomeadamente usando também o trabalhos dos jovens estudantes para, de forma mais económica, formativa e participativa, se recolherem dados, se produzirem conclusões e se aprender a cidadania e a literacia, tudo ao mesmo tempo e de forma integrada, atingindo todas as gerações.

Nada disto será imaginável numa sociedade onde as leis e o funcionamento da justiça protegem os agentes criminosos de colarinho branco, nomeadamente permitindo e até sendo actores de perseguições ad-hominem contra denunciantes de práticas anti-sociais de entidade tratadas como respondendo perante outras interpretações das mesmas Leis. É fundamental acabar com a dualidade de critérios, conforme se tratam de ricos ou pobres, de amigos dos poderosos ou seus adversários. Isso requererá uma acção enérgica e determinada de aliança entre agentes políticos, judiciais e académicos (sobretudo da área do Direito) que se revejam nesta necessidade de modo a, paulatina mas irreversivelmente, dar a Portugal um Estado de Direito.

2010-04-21


Movimento para a IV República

5 de Setembro de 2005

Passou a ser lugar comum a noção de estarmos a viver uma crise de regime em Portugal. Todavia, não se vislumbram sinais de regeneração política, o que não pode deixar de estar nos fundamentos da acelerada ciclicidade das desistências e dos abandonos políticos, ao mais alto nível, e a persistência nos cargos de mais baixo nível, mais difíceis de escrutinar publicamente. A arrogância de quem se imagina capaz de, por si só, com a clique de amigos e com os apoios dos boys for the jobs, impor aos portugueses negócios inexplicados e, provavelmente inexplicáveis, alterna com a aparente impotência do Estado, também ela pouco transparente e muito selectiva.

A instabilidade política é, obviamente, induzida pela profunda corruptabilidade do regime. Apesar da avalancha de denúncias dos últimos anos, evidentemente, nada de essencial tem sido possível melhorar. Os partidos já sentiram necessidade de limpar as suas hostes, com evidentes dificuldades e com resultados nada claros. O sentimento de impotência não pode substituir a confiança na democracia. O sentimento de impunidade e os queixumes para saco roto – ou, pior, a perseguição dos denunciantes – corroem o orgulho que temos por Portugal, a vontade de sermos melhores portugueses, as expectativas de vidas melhores para os nossos pais e para os nossos filhos.

A alternância democrática foi capturada pelos arranjos políticos implícitos entre duas facções que parecem digladiar-se quando de facto cooperam na manutenção do estado das coisas. Sociais democratas para beneficiarem directamente dos fundos da coesão social da União Europeia, revelam-se, à direita e à esquerda, neo-liberais na distribuição desses benefícios no interior, estando Portugal com taxas de pobreza e taxas de desigualdade social das mais altas, analfabetismo crónico e iliteracia desgraçadamente única no espaço europeu, ineficiência dos processos de ensino e impedimentos organizados – e injustos – ao desenvolvimento educativo e profissional dos jovens, quando as taxas de desemprego de licenciados são enormes, num país com escassez de pessoas qualificadas. O trabalho, pela pobreza dos sistemas produtivos e da gestão de recursos humanos, ajuda a desqualificar uma mão-de-obra já de si desqualificada, num ciclo de enterra moral e cívica das potencialidades dos portugueses, que continuam a ser mais bem sucedidos lá fora do que reconhecidos no seu próprio país, para realização de uma estafada, miserável mas persistente política de exploração das vantagens competitivas do preço baixo do factor trabalho no nosso País.

Os portugueses têm razões para não acreditarem em políticos que se comportam como aristocratas ou como contabilistas. Até porque já lhes deram todos os créditos possíveis e imaginários, e vemos agora no que resultou. Não está em causa a sinceridade ou a perversidade com que sempre são desenhadas políticas que mexem com interesses. O que está em causa é a necessidade inadiável de mudar de rumo, democraticamente, o que manifestamente tarda e não parece possível com o actual regime. Há pois que ir mais fundo na exploração das potencialidades democráticas e aprender com outros povos mais experientes democraticamente como se podem ultrapassar politicamente crises de nó cego como aquelas que estamos a viver.

 

Procura-se quem represente e suporte a vontade dos portugueses de se mobilizarem democraticamente para as tarefas de produção de uma nova estratégia capaz de colocar o país com capacidades proactivas e inovadoras no mundo global em que estamos inseridos, em benefício dos portugueses e do bem estar para quem viva em Portugal. Essa mobilização não pode deixar de ser radicalmente crítica em relação à intolerável tolerância da cunha e da prateleira, do uso dos dinheiros públicos para distribuir pelos correligionários e pelos arrivistas colectores de financiamentos políticos, do desleixo na colecta de impostos e de organização da segurança social – que se anuncia velhacamente falida aos que dela esperavam que cumprisse o contrato que, entretanto, beneficia (escandalosamente) quem nada deveria poder esperar desse seguro social dos trabalhadores portugueses.

Pode caber à Presidência da República abrir debates e dar voz à vontade e às iniciativas de todos os portugueses, e não apenas aqueles que prometem a árvore das patacas ou agricultura biológica das revistas cor-de-rosa. Pode caber ao Presidente da Republica servir a autonomia das instituições políticas, a consonância dos seus comportamentos relativamente à vontade dos Portugueses e não aceitar quaisquer interferências do Sr. Cunha, sejam elas veiculadas por amigalhaços ou por partidos inteiros. A justiça – aquela que é produzida pelas instituições judiciais e a outra, mais difusa, gerada pelo ambiente político e pelas políticas concretas quotidianas – deve ser sistematicamente escrutinada e não apenas para efeitos mediáticos ou para entreter os telespectadores. Não faz nenhum sentido entregar a resolução dos problemas estruturais da justiça portuguesa às corporações e às personalidades que construíram e beneficiaram – e continuam a beneficiar – da injustiça que campeia descarada e impunemente. Não é aceitável que bons desempenhos profissionais sejam postos em causa por um sistema de profunda interferência política na administração do Estado, que arreda toda a possibilidade de demonstrações de mérito e, para isso mesmo, faz circular o pessoal de confiança, em alta velocidade, por todos os milhares de lugares disponíveis, tornando impossível qualquer tipo de avaliação de desempenho administrativo e político.

Pode caber ao Presidente da República trazer os portugueses a construírem o Portugal do século XXI, já que o que também está em causa, no magma da globalização e das políticas europeias, é saber o que os portugueses querem ser no futuro: os herdeiros de uma língua e cultura minoritária e folclórica para vender aos turistas da terceira idade? Ou um povo que, mais uma vez, será capaz de dar novos mundos ao mundo, de encontrar caminhos novos para a justiça social, nos quadros financeiros e demográficos que são conhecidos mas em quadros políticos e sociais que temos oportunidade de, com a nossa vontade colectiva, encontrar democraticamente. Para atingir esses objectivos é indispensável começarmos de imediato a alterar comportamentos, nomeadamente a sermos exigentes connosco próprios e não aceitarmos mais entregar os pontos a quem nos melhor garante que não nos incomodará – até porque a experiência mostra como nos enganamos frequentemente nesse juízo. Temos que exigir de nós mesmos, e em primeiro lugar às instituições, que as denúncias e as queixas que chegam à administração serão tratadas em tempo útil, conforme a lei, e de modo empenhado e sério, em vez do velho sacudir de água do capote. Para que serve votar num candidato a Presidente da República com responsabilidades na estruturação de um regime que, manifestamente, caiu da cadeira, sem lhe pedir uma avaliação específica e criteriosa do que nos trouxe a este beco? Para assistirmos ao fecho de mais saídas para o regime? Para adiarmos para amanhã o que se pode começar a fazer hoje?

Não! Não somos todos responsáveis pelo estado a que chegámos! Os que lutam por sobreviver, aqueles a quem não são reconhecidos os seus direitos e que confrontam com os esquemas kafkianos montados pelo tráfico de influências e pela corrupção, os que são humilhados por querem denunciar situações ilícitas são igualmente responsáveis, se comparados com aqueles que recebem reformas ilegítimas para que possam continuar a acumular benesses e manterem a culpa solteira? Nestes trinta e um anos de democracia, houve quem desse tudo, incluindo o bem estar pessoal e das respectivas famílias, para melhorar Portugal e também houve os que só pensaram em si mesmo, nos seus pergaminhos e nas conjuras que fossem necessárias para não terem obstáculos à afirmação das suas irresponsáveis convicções, ao ponto de o povo confundir os bem intencionados e os mal intencionados de entre os vencedores destas competições organizadas pelo Sr. Cunha.

Não! Não somos todos responsáveis pelo estado a que chegámos! Os responsáveis não podem continuar irresponsáveis.

 


Liberdade

Haverá liberdade em Portugal?

Parece absurda a pergunta. Pelo menos para a grande maioria de nós que não foi incomodada por falar. Tal como no regime anterior, a maioria de nós ainda que quisesse dizer alguma coisa teria dificuldades. Por não saber como. Por falta de escolaridade, por falta de cultura, por falta de experiência de debate, por falta de liberdade, numa palavra.

E sofre-se com isso? Ou, ao contrário, é-se mais feliz por ignorar e não querer saber? Como na canção, o melhor é não nos preocuparmos porque isso só vai aumentar os problemas? Os dados comparativos sobre doenças mentais não enganam: o dobro dos portugueses sofrem desse tipo de doenças quando comparados com outras nacionalidades do sul da Europa. E são sobretudo as mulheres que sofrem de ansiedade.

Será por falta de liberdade?

A ter em conta que apenas recentemente passou a ser possível em Portugal denunciar publicamente a violência doméstica e os abusos contra crianças, pode bem-estar aqui uma parte da explicação. Sabe-se também que as mulheres em Portugal trabalham tanto como as nórdicas e são aquelas que mais trabalham, o que aparenta um contraste com o conservadorismo noutras áreas. Quer dizer: para pormos as mulheres a trabalhar, sobretudo pagando-lhes menos que os homens mas pagando mal a ambos e estimulando uma sociedade consumista, nesse campo não somos conservadores. O que é uma oportunidade para elas escaparem à dependência tradicional através do trabalho (como do estudo). Fazem-no pela calada, sem grandes alardes – porque se lembram do que aconteceu no Parque Eduardo VII, em liberdade pós-25 de Abril, à primeira manifestação feminista em Portugal: foram cercadas de homens com cio. Não o fazem sem custos, portanto. Entre os quais a discrição e sempre mais trabalho.

Provavelmente uma das causas e consequências de tal depressão é a taxa de natalidade sustentada e cronicamente abaixo da capacidade de reposição da população – que continua a somar-se, outra vez de forma dramática nos últimos anos, com a emigração. Não há quem aguente. Como dizem mais de um terço dos portugueses inquiridos, passar a integrar o reino de Espanha não seria má ideia.

No parlamento, por hesitante iniciativa do PSD, com apoio sobretudo do Bloco de Esquerda – com a oposição do PS – e por imposição dos factos (de facto a roubalheira está em fase de profissionalização oficial), dada a corrupção reinante, as tendências desreguladas para a concentração dos órgãos de comunicação social, os ataques à autonomia da classe dos jornalistas, discute-se a liberdade de imprensa. Uns dizem que o governo conspira (que haveria ele de fazer?) outros dizem que acham bem que assim seja e que isso é democrático (será que também eles conspiram?). Sobre a liberdade de expressão, nem uma palavra. Sobre a vida do povo, um manto de silêncio: sobre a falta de educação e de respeito por iniciativas populares, seja a nível autárquico onde reina o caciquismo, seja a nível político onde reina o tráfico de influências, seja nível legislativo onde mandam as “vírgulas” e proliferam as leis com alçapões, seja a nível da banca onde se digladiam seitas secretas pelo controlo das finanças e do governo, seja a nível cultural, tanto nas universidades – que continuam sem bibliotecas – como nos museus, nos teatros, na música, na literatura, na filosofia, nas escolas, a censura tem a forma de invejas, tropeções, perseguições administrativas, abusos de poder. Mas não deixa de ser esta censura que remete para o estrangeiro milhares de licenciados à procura de respeito pelo seu trabalho e pelas suas pessoas, lá onde a liberdade possa ser coisa mais sentida e reconhecida.

Portugal não sabe o que seja a liberdade. Porque das raras vezes que lutou por ela não quis morrer por isso; preferiu acomodar-se a conceitos perversos sobre o que isso seja. Liberdade não é cada um fazer o que lhe apetecer; mas também não é encolhermo-nos de cada vez que alguém mais poderoso manifesta incómodo pela nossa existência. Liberdade é cada um assumir a dignidade da sua identidade auto-determinada e auto-construída, plantada e mantida como um jardim para benefício de todos e da sociedade. Liberdade é o respeito que devemos aos outros, tal como reclamamos que nos respeitem a nós, independentemente do que cada qual entenda ser melhor para si e para todos os outros, incluindo a liberdade de lutar pelas suas convicções.

A liberdade tem consequências: o reconhecimento dos méritos e também das derrotas. Mas tem defesas: a dignidade de todos e cada um é sobretudo a defesa da dignidade alheia. Nesse país não poderia ser dito, como eu ouvi dizer aqui, que embora haja gente a viver com salários de trabalho indignos, tais salários vão ter de baixar em nome da economia.

Só a falta de liberdade explica ser pensável avançar com tal argumento. Só a falta de liberdade permitiu a sua repetição metralhada, sem reacção. Só a falta de liberdade permite dizer-se que há liberdade de expressão em Portugal.

2010-03-29


Era da vontade

A democracia, há quem diga, deixará aos poucos de ser possível. O argumento é: a democracia precisa de crescimento económico, de um jogo de soma positiva, de exploração acelerada do mundo e da humanidade em favor de uma sociedade que assim se poderá dar ao luxo de exercitar a liberdade. De facto, com o abrandamento do crescimento económico no Ocidente, a partir da crise do petróleo de 73, as empresas apoiadas pelos Estados Unidos desenvolveram a estratégia de globalização, que significa o alargamento da base de exploração a todo o planeta e um abandono das políticas nacionalistas de legitimação. As mesmas taxas de lucro podem suportar o crescimento da acumulação se houver mais transacções. Em tais circunstâncias, o aumento dos lucros passa a ser possível também pela negociação das deslocalizações e pelo aumento da exploração dos locais e povos mais desprotegidos da Terra. Tais lucros, todavia, não são para serem divididos socialmente: são tomados como obra de gestão de visionários iluminados e anti-democráticos, num tempo em que todos os ocidentais aspiram a ser ricos para além do possível, como se os juros à D. Branca pudessem ser pagos à casta de dirigentes bem informados e bem colocados, sem risco.

A democracia, de facto, quem não o pressente?, está decadente. Há quem confunda democracia com política. Mas esta última, estando apropriada por uma classe política corruptível, gestora de gestores, centrada nos lucros financeiros, aspirante a integrar a classe dominante global, odiando os povos que trata como públicos e embrutece com espectáculos (dos meios de comunicação até às escolas e universidades), desprezando os velhos que lhes aparecem apenas como alvos de exploração dos sistemas de saúde, é a política, dizia, que comanda globalmente os destinos da humanidade. Porque, manifestamente, se fosse apenas a economia já tudo tinha implodido.

O capitalismo, por definição, não cuida dos problemas sociais nem respeita planeta ou humanidade. É a política que o fará ou não, democraticamente ou não, no respeito dos Direitos Humanos ou não.

A seguir à II Grande Guerra os Direitos Humanos fizeram o seu curto caminho institucional em nome da dignidade humana de cada pessoa. Foi essa política exígua desenvolvida após a derrota do colonialismo, nos anos 60, que serviu de mote ao lado vencedor da Guerra Fria. A capacidade de mobilização da liberdade de iniciativa económica para organizar a globalização capitalista revelou-se uma vantagem comparativa que conquistou os próprios gestores do socialismo real, que o auto-liquidaram para correr atrás do paraíso neo-liberal, com milhões de vítimas directas.

Eufóricos com a nossa vitória de Pirro, não quisemos dar-nos conta dos custos de tal operação, nomeadamente a expansão a Leste da União Europeia. Nos dias de hoje é já claro que os poderes centrais europeus (como os norte-americanos, os primeiros a nomear a Nova Europa) preferem descartar-se do Sul – os chamados PIGS – e explorar as competências e determinação dos países de Leste.

 

Quais são, então, os nossos activos, em Portugal? Serão os nossos gestores de gestores nos diversos postos da administração de Bruxelas? Ou será a nossa cultura universalista? Será o nosso sistema financeiro periférico, oligárquico e corruptível? Ou será um povo treinado para compreender os ventos da história e para reconhecer o valor de terceiros? Serão as grandes obras públicas? Ou será a mobilização dos recursos em rede estabelecidos ao longo do último meio milénio por todo o mundo, organizados para nos assegurar paz?

A União Europeia respeita-nos como respeita os seus velhos. Quando tiver tempo, logo tomará alguma atenção. Nós próprios estamos a seguir essa via de isolamento social dos indivíduos em busca de rendimentos. Em Portugal as políticas de habitação obrigam à fixação das pessoas longe dos seus locais de trabalho, gastando parte importante do dia em transportes para animar esse sector e desvalorizar todos os outros – porque as pessoas cansadas rendem menos que as pessoas despertas. Toda a vida social é substituída pelas rádios dos automóveis e pelas televisões das casas. O envelhecimento da população é alarmante, bem como a intolerância crescente, bem espelhada nas políticas de segurança, justiça, imigração e pobreza.

Esta é uma sociedade em vias de suicídio, dadas as políticas anti-sociais em vigência, nomeadamente as de destruição do Estado Social – por alegadamente não haver alternativa que não seja a de organizar a substituição massiva dos jovens que não existem por imigrantes, a que alegadamente a população resistiria por efeito da xenofobia. A demografia, efectivamente, é um dos busílis da política actual: as instituições desenvolvem políticas contra a xenofobia e o racismo, como contra a pobreza, como políticas “sociais” para minimizar (e mascarar) as políticas dominantes de exclusão social, de preparação para e provocação da guerra social inter-étnica global, interna e exterior por igual, nos bairros classificados como problemáticos ou contra países infiéis. São, de facto, políticas policiais contra os jovens do sexo masculino que sofrem mais directamente as contradições das políticas vigentes (por exemplo, sabendo ser as suas vidas destinadas a serem piores do que a de seus pais e ao serviço dos mesmos patrões) e que podem ter forças para desestabilizar os poderes instituídos. Tudo se passa como se a consciência da própria ganância antecipasse a consciência dos excluídos da ilegitimidade moral e política das práticas de gestão dominantes, que chegam a enojar os próprios gestores, como aqueles que apareceram em 2008 a reclamar contra a imoralidade de Wall Street e das práticas bancárias. Muitos desses, com apoios políticos fortes, mantém hoje as mesmas práticas que condenaram.  

Tal como, há mais de 500 anos, Portugal foi capaz de fazer reverter as dinâmicas da guerra santa da altura a favor das Descobertas, poderemos também assumir hoje o legado dos nossos antepassados e viver da política e do Mundo. Não é esse o nosso destino, mas antes não apenas uma mais valia que herdámos como também a melhor janela de oportunidade para viver melhor, connosco e com o mundo. Não é uma proposta para santos, pois as misérias humanas foram testemunhadas por portugueses provavelmente mais do que por qualquer outro povo no mundo. É um trabalho de tecedura para o qual poderemos levar a estranha e ambígua bandeira dos Direitos Humanos, sinal em vias de ser renegado pelo Ocidente, que o usou também contra os interesses estratégicos de Portugal (e Brasil) durante o século XIX, aquando da substituição da escravatura pelo salariato.

Direitos Humanos em Angola, Guiné. Moçambique, S.Tomé e Príncipe, Timor e no Brasil podem bem ser marcas da presença portuguesa não contra mas a favor dos povos, intransigentemente contra os gestores de gestores que se tornaram a classe política dominante. Com tais países será possível refazer como melhor se entender a nossa demografia, fraternalmente. E acompanhar (com a mesma fraternidade) a emergência dos países emergentes, proporcionando-lhes a possibilidade de apoiarem uma experiência política democrática adaptada aos tempos – construindo um jogo de soma positiva para Portugal que os “mercados” estão prontos a negar, como se tem visto.

Uma tal perspectiva não é compatível com a política da mentira ou sequer da política “para inglês ver” que foi a sua predecessora. Precisamos de políticas de convicção, testadas democraticamente e apoiadas em princípios de igualitarismo, de serviço público (na administração, no terceiro sector e no sector privado) e no liberalismo judicial. Essas, sim, farão a diferença, porque serão mobilizadoras dos portugueses e dos seus amigos para novos horizontes de convivialidade mais próximos dos ideias humanitários do que a derrocada da civilização ocidental no Ocidente e a sua réplica exploradora na China e nos países emergentes faz antever.

2008-03-17


Cultura política para um país inculto 

No país onde o Primeiro-ministro está a ser sujeito a escrutínio público por ter aparentemente usado meios do Estado para controlar a seu favor a comunicação social, o partido do governo, o maior partido da oposição, as organizações representativas das profissões jurídicas, o Procurador-geral da República, o próprio Presidente da República, todos se queixam publicamente de estarem a ser alvos de conspirações e de, por isso, organizarem contra-conspirações. Perante tais imbróglios, a justiça, através do Supremo Tribunal de Justiça, tenta pôr-se a recato da discussão em que a querem envolver, aparecendo à opinião pública como surda e muda mas de olhos bem abertos para não colidir com as jogadas políticas de bastidores.

A justiça é, aos olhos dos cidadãos portugueses, uma das instituições menos fiáveis e mais temíveis, não apenas pelos intermináveis anos de desgaste que impõe aos litigantes, pelas custas exageradas com que o governo pretende combater o aumento do número de processos, pelos custos dos honorários dos advogados, mas sobretudo pela incapacidade do cidadão em controlar a acção (frequentemente incompreensível ou mesmo danosa) dos respectivos advogados, porque as sentenças são, em si mesmas, frequentemente incompreensíveis e, em todo o caso, imprevisíveis por serem bastante independentes dos meios de prova apresentados.

Uma das características nacionais portuguesas bem estabelecida é a improbabilidade de algum responsável político assumir as suas responsabilidades políticas: a palavra de ordem é ninguém se demite dos cargos, por maiores e mais graves e credíveis que sejam os ataques públicos aos actos ou ao carácter dos titulares de cargos públicos. Em contraponto a esta falta de pudor no enlameamento da honra entre políticos, o cidadão comum é intimado pelos próprios tribunais para não reagir perante as injustiças mais básicas e danosas: como quase todos concordarão, “não vale a pena queixar-se”. Sobretudo quando se trata de abusos de poder.

A disfuncionalidade do sistema judicial português relativamente às necessidades de desenvolvimento – Portugal, apesar da modernização sofrida após a revolução dos Cravos em 1974, é um dos países mais desiguais da Europa e também um dos mais pobres – é reconhecida pelos próprios poderes públicos, nomeadamente quando se trata de avaliar as condições do investimento externo e se constata como os empresários temem ficar atolados em processos judiciais intermináveis e com resultados imprevisíveis. O que não significa que o sistema não seja funcional para outras finalidades, nomeadamente para novas formas de proteccionismo, a que a oposição chama os jornais, a publicidade e os empresários do regime. O sucesso empresarial na economia portuguesa fica assim condicionado por relações políticas suficientes para poder pagar a sua protecção.

As lutas em torno da transparência – dos rendimentos dos titulares de cargos públicos, das empreitadas públicas, das parcerias público-privadas, do acesso do Ministério das Finanças e da investigação criminal aos registos bancários, os sucessivos erros legislativos e as sucessivas mudanças de legislação, as políticas anti-corrupção, etc. – revelam aos olhos dos políticos mais críticos, incluindo no partido do poder, a cumplicidade entre os órgãos de soberania e as práticas de corrupção. O poder político prefere delegar a perseguição dos crimes de corrupção ao braço judicial, ao mesmo tempo que é acusado de desmantelar as polícias competentes encarregues de fazer esse trabalho, passando assim o odioso da situação para o já sobrecarregado sistema de justiça e lavando as mãos do que é o seu (im)próprio modo de financiamento. Poderes judiciais há que, com as dificuldades de meios mas com as liberdades próprias da arbitrariedade de julgamento e de imprensa, atacam o poder político, acusando-o através de fugas de informação para os jornais e de folhetins de descredibilização de personagens, nomeadamente o Primeiro-ministro, cuja resistência aos ataques de carácter é típica da política portuguesa – mesmo se danosa para o Estado e o país. Para a política oficial em Portugal, a estabilidade significa os mesmos nos lugares de poder[1] e, portanto, os mesmos canais de subordinação à ordem vigente, independentemente da liberdade, da igualdade e da sanidade dos mercados.

A noção de haver uma justiça para pobres e desvalidos e outra para ricos e poderosos está muito generalizada na população portuguesa, bem como a noção de que a política é para os doutores e, dentre esses, os especializados na política, cabendo ao vulgo olhá-la como quem comenta o futebol: tomando partido com emoção. Ou então desligando-se do assunto.

As contradições da situação reflectem-se na dependência e atraso económicos, na ausência de alternativas políticas que diminui a democracia, como se reflectem na discussão da liberdade de imprensa concebida como a liberdade dos donos dos meios de comunicação e eventualmente dos jornalistas, alheia à discussão da liberdade de expressão, a que mesmo os jornalistas e os meios de comunicação são insensíveis.

 2010, Março 8


[1] A função pública é encabeçada por milhares de políticos directamente fiéis ao primeiro-ministro em funções e, por isso, mudam praticamente todos quando muda o primeiro-ministro.


Transformar Portugal na Presidência

Embora os poderes presidenciais em Portugal não sejam apenas de cortesia, mudar Portugal a partir da presidência da República significa deixar sementes para o futuro (eventualmente próximo).

Cavaco Silva está sempre pronto para mudar, que para ele significa fazer “reformas estruturais”, que por sua vez significou para Portugal abrir caminho aos novos ricos que criaram o “monstro”: uma economia privada à sombra das benesses do Estado e vice-versa, com uma desigualdade social das maiores do mundo Ocidental (1/8 nos rendimentos, 40% de pobres), um crescimento económico estacionário, a apologia da ignorância e da trivialidade, a arbitrariedade na gestão das instituições, desde os sistemas de regulação até ao sistema judicial, controlados por seitas secretas e opacidade condizente.

Não sabemos se haverá outros candidatos do regime. Mas sabemos haver dois já no terreno que, à sua maneira, se apresentam em ruptura com o regime. Manuel Alegre do lado do maior partido português, conhecido por não se deixar calar e por estar saudoso de um partido socialista próximo dos anseios populares, como aquele que recentemente foi encenado em emails e sms para fastasmagoricamente aparecer na Fonte Luminosa, quer sobretudo mudar o seu partido e mantê-lo no poder. Fernando Nobre, sem partido, quer dirigir-se aos portugueses para que o acompanhem na sua campanha de moralização, resgatando a identidade humanista, pluricultural e pluriracial, universalmente conhecida, de Portugal.

De momento, as opções de voto apelam alternativamente à obra feita, às palavras ao vento que passa e à vocação universalista de Portugal. Esta vocação existe e tem estado ao serviço do Estado rapace, mas não dos portugueses. A questão é a de saber se as palavras podem ser entendidas, do que se duvida, não tanto pela mensagem que contenham ou não mas sobretudo pela desconsideração imposta em Portugal ao respeito pela cultura, por um lado, e pelos compromissos assumidos, por outro. Como é evidente, a vigarice continua a ser quanto muito um problema individual, de carácter, a contrabalançar a sua evidente utilidade, operacionalidade e até respeitabilidade reclamada pelo governo e seus apoiantes, nomeadamente os seus parceiros de negócio. Outra coisa é organizar uma relação directa com os portugueses para lhes dizer a) há que respeitar Portugal; b) há que abrir ao mundo e às alternativas disponíveis, principalmente quando a União Europeia se prepara para estigmatizar a Europa do Sul com bode expiatório para “explicar” a crise; c) há que aprender a aprender; d) há que exigir funcionamentos justos tanto das instituições como das empresas, a começar pelo sistema judicial cuja fealdade terá que ser removida tão rapidamente quanto possível.

Ao governo caberá alinhar com as mesmas prioridades mas dar prioridade invertida, de d) par a), àquela que serão as da Presidência.

Fernando Nobre entende que lhe cabe acreditar nas possibilidades de regeneração do regime e da democracia. Acha que pode contribuir para isso interpretando – pela primeira vez em Portugal – a Presidência da República como uma instituição ao serviço dos portugueses e não da facção dominante do Movimento das Forças Armadas ou da facção dominante dos partidos.

Qualquer que venha a ser o resultado eleitoral, Fernando Nobre já ganhou, ao romper com a partidocracia. Terá que saber conquistar os portugueses, nomeadamente os jovens e os mais desfavorecidos, a quem a educação política tem vindo a ser confundida com o oportunismo profissional que se pratica desde as universidades até às carreiras políticas. Terá que ensinar a responsabilidade e a respeitabilidade da transparência e do voluntarismo. Terá que reclamar pelo legal funcionamento das instituições, a começar pelo sistema de justiça. Do seu desempenho e dos apoios que se lhe juntarem dependerão, sim, as potencialidades de Portugal no futuro.

20 Fevereiro 2010


Assumamos a marginalidade

A situação política caracteriza-se por existirem condições objectivas propícias a uma eclosão de lutas sociais para transformar a sociedade e, ao mesmo tempo, a falta de condições subjectivas para que as energias propícias à transformação social venham a proporcionar a abertura de perspectivas de evolução positiva da vida das pessoas.

Ainda que haja revolta – como em Paris em 2005 ou na Grécia em 2008 ou durante as contestações das cimeiras ou durante os Fora Sociais – que fazer com ela? Deveremos colaborar na integração social dos excluídos ou acompanhá-los na construção de formas de organização social diferentes das actuais, sob as quais não sejam mais tratados como não pessoas?

A resposta a esta pergunta depende do diagnóstico das causas da incapacidade de actual resistência perante a imoralidade das causas da crise auto-atribuídas pelas classes dominantes. Se se entender que se vive numa sociedade integradora, escolher-se-á a primeira resposta. Se, como quem escreve este texto, se acredita a) o sucesso da actual classe política global ocidental depende da sua coesão interna e, por isso, dos privilégios que a si mesma se atribuiu, fazendo com que todas as sociedades se organizem em torno da distribuição de privilégios – como antes da Revolução Francesa, embora de outra forma e com um âmbito planetário. Por ser assim é que, mais Estado ou menos Estado, mais investimento público ou menos, são os privilégios que são o reduto essencial a defender e não há político que sobreviva se não se dispuser a pactuar com isso; b) a crescente desigualdade social não decorre de critérios ideológicos em si (todos simulam ser modernos) mas antes da exclusão imoral dos povos de Estados dependentes, dos imigrantes, todas as populações estigmatizadas a viverem nos territórios nacionais dos Estados dominantes e ainda de todas as populações estigmatizáveis externa ou internamente – incluindo os islâmicos e profissões inteiras altamente qualificadas, como os professores em Portugal. São tais processos de estigmatização a justificação política para o trabalho imoral e anti-moderno de exclusão crescente dos povos da vida política e económica. “To blame de victim!”

As provocações bélicas, a vergonhosa apropriação dos recursos naturais globais, as provocações inter-civilizacionais, a destruição do Direito como sistema de regras de aspiração universal para aplicação da justiça, a insensibilidade social e económica, a corrupção, o facilitismo cognitivo das ideologias dominantes, seja do lado do neo-liberalismo seja do lado do debate político em geral, incluindo à esquerda, facilitismo esse com implicações nas políticas educativas, a ganância e o desprezo social como modelos morais, tudo se pode explicar pela convergência entre ânsia organizada de privilégios – tipo ser engenheiro por enviar faxes a organizações criminosas e todos acharem muito bem e muito legítimo, do foro privado – e a determinação em fazer vítimas a quem poder atribuir culpas – vejam-se os debates parlamentares.

Não se pode é explicar isto como um fenómeno nacional. Este é um fenómeno global, com especificidades nacionais, sem dúvida.

A política, como sector de actividade especializado e profissionalizado, numa sociedade de exclusão (em que a explosão informativa não permite, no imediato, uma explosão cognitiva mas antes uma confusão mental, apesar dos aumentos de escolaridade e da divulgação do inglês como língua franca global. A explosão da informação, no imediato, permite, isso sim, privilegiar quem esteja em melhores condições de manipular símbolos, como as redes de informação financeira e a comunicação social), a política torna-se formalmente desligada da vida dos povos e, ela própria, parte das dinâmicas de exclusão (veja-se o controlo da política pelas seitas secretas, a que alguns chamam equivocamente os poderes económicos: não há poderes económicos sem relações sociais (e morais) que os suportem! É o que as classes dominantes chamam sociedade selecta, isto é, redes de confiança (as mesmas que auferiram de exuberantes “subsídios” em tempo de crise para evitar “problemas sistémicos”. Claro.), incluindo os negócios privados do Estado, como o sector das sucatas, cuja confiança entre os parceiros passará à história através do símbolo exotérico que são os ro(u)ba(-)los).

A esquerda, bem como muitos sectores da economia social e da vida intelectual, deixaram-se capturar pelas dinâmicas de exclusão – que os ameaçam mas também oferecem modelos de sucesso social (vide comentadores ou agentes filantrópicos ou famosos). Aceitam discutir a agenda dos vigaristas e ilusionistas no poder. Os rendimentos da exploração concentrados pelos Estados possibilitam uma alargada autonomia da classe política relativamente ao capitalismo e, do ponto de vista deste, tem a vantagem (indispensável) de manter a ordem, isto é distribuir as migalhas (metade dos 40% de pobres em Portugal não o são tecnicamente porque recebem subsídios directos do Estado por aceitarem pedir o reconhecimento da sua auto-declaração de pobreza: a humilhação porque passam os desempregados, tratados como arguidos de crimes, é só um aspecto do modo como as populações dominadas são tratadas) e o cacete (vejam-se os preparativos para a guerra social que duram há muitos anos nas polícias, nas forças armadas e no sistema judicial, especialmente a nível intergovernamental na Europa).

O capitalismo em crise (de desmascaramento e de confiança – necessidade reorganização das seitas) esteve de acordo na necessidade de se moralizar em troca do branqueamento dos mecanismos imorais propulsores da crise: em troca do Estado – solícito e já preparado – assegurar a Ordem. Uma vez percebido o impasse e a incapacidade de reacção do campo popular, tudo voltou rapidamente à mesma exacta conjuntura política que gerou a crise, apenas agora com deficits maiores, a pagar pelos impostos de todos. Estamos exactamente na mesma, em termos de relações de força políticas, do que antes da crise, e portanto a continuar a ravina descendente do ponto de vista da esperança, do desemprego, dos salários, das pensões, da precariedade, da auto-estima.

O que há a fazer é estabelecer uma moralidade política anti-situacionista, radicalizar as reivindicações de equidade – desde logo no sector da justiça, por ser politicamente pelo menos tão essencial como os aspectos económicos – e dar conteúdo convivial à reflexão política, isto é, criar uma forma de fazer política – no sentido institucional – oponível àquela que se pratica nas instituições actualmente em funcionamento. Há que criar uma rede de relações políticas subversivas da sociedade da exclusão (por esta ser anti-moderna, nomeadamente por viver dos privilégios, da violência, da exploração das pessoas e da natureza, da mentira e da perversidade moral) a partir de uma discussão sustentada em instituições próprias para o efeito.

A democracia – como a sua civilização – está em grave crise, precisamente por não ser capaz, na prática, de admitir a produção de alternativas políticas enquanto este sistema de poder estiver no comando. Todos os partidos, em qualquer país ocidental, estão condenados à esquizofrenia de dizerem uma coisa na oposição e o seu contrário no governo. Logo, a democracia reclama novas instituições. Há que criá-las imaginando-as.

Essas instituições deveriam ser formas variadas e variáveis de relacionamento entre pequenos núcleos de amigos que se entendessem bem uns com os outros e cujas iniciativas fossem apoiadas por outros núcleos que com eles queiram partilhar uma agenda transformadora da sociedade em ruptura com a agenda da situação, mesmo que discordem das perspectivas uns dos outros. À unidade dos partidos do centrão e à impotência dos partidos de fora do arco do poder oponhamos a nossa liberdade de expressão e de comunicação em condições de assumida e orgulhosa marginalidade, através dos novos meios actualmente disponíveis, com toda a gente livre que por aí quiser emergir, independentemente das ideias que tenha e da sua representatividade social: as ideias e os ideais não são melhores por serem populares.

A luta pelo poder dentro das novas instituições a criar – como acontece também nas actuais instituições – será feita por gente com ideais muito distintos. A unidade far-se-á apenas (o que já não é pouco) contra a sociedade da exclusão e os privilégios, com todos os que queiram ver acabada a vergonha que se vive hoje – para que a nossa civilização ocidental volte a saber o que fazer de si própria.

Não nos deve bastar reclamar a mudança de modelo de desenvolvimento: devemos querer e saber construir novas relações sociais, onde caibam todos os seres humanos, em nome da Humanidade que desejamos um dia poder ser.

A política na era da globalização não pode ser uma reflexão sobre Portugal. Tem de ser uma discussão sobre as nossas possibilidades de colaboração com todas as forças da liberdade e da igualdade deste mundo que se entendam como oponíveis ao status quo e que dele estejam dispostas a libertar-se. As nossas redes políticas devem estar abertas a todas as redes que se interessem por política e possam contribuir para o resultado de alterar a situação, nomeadamente o apear da classe política actual e, com ela, das redes de solidariedade corruptas de que todos os dias temos sinais vividos nas nossas vidas quotidianas, e instalar uma conflitualidade democrática não armada. As nossas redes políticas devem saber ensinar-nos a vivermos nós próprios de outras maneiras, com recurso mínimo à violência. E também organizar a defesa da nossa liberdade política, pois o autoritarismo não tolera oposições.

Em resumo: há que contribuir para a construção de um novo tabuleiro político – que já tem muitas peças em funcionamento – separado e denunciador do tabuleiro actual. É preciso que passemos a credibilizar e a sinalizar e a partilhar e a estimular e a organizar as ideias marginais e de contraposição. É assim a democracia! É preciso premiarmos a dissonância e a dissidência, reconhecer ideias e sugestões que nos tocam e encontrar formas de dar força a isso a esse debate: por exemplo, organizando encontros de mútuo reconhecimento e debate entre pessoas e grupos alinhados nestes princípios de marginalidade orgulhosa e jornais electrónicos de divulgação de tais eventos subversivos para todos os gostos e sem censuras.

Sinalizemos com clareza e determinação a vontade de antecipação daquilo que um dia terá forçosamente de acontecer: o fim dos privilégios. Poupando aos povos de mais guerras, perseguições, conspirações e destruições de ecossistemas. Esta é a alternativa à decadência para um retorno aos privilégios feudais, que opõem os que têm reformas milionárias por nunca terem trabalhado que não fosse a pensar no dinheiro que ganham e os que vão perdendo as reformas a que tinham direito assegurado, como os clientes do BPP ou os trabalhadores da função pública.

Lisboa, 30 de Janeiro de 2010


 

Travar ou avançar? a précampanha eleitoral, Nov 2009

 


A moral da liberdade – um debate necessário

14/6/2009 

Os seres humanos tem tendência a elevar o tom e a potência da voz quando querem animar um grupo de pessoas (por exemplo, jogadores) ou quando querem vincar um ponto de vista que lhes seja particularmente caro. A diferença entre estas duas situações é no primeiro caso não há problema em reconhecer publicamente a prática e no segundo caso os protagonistas costumam negá-la. “Não estou irritado!”, gritam para o interlocutor.

“Estarei sempre à disposição do Jornal da Noite!” disse Marinho Pinto e Moura Guedes. “Tem toda a liberdade de responder como entender às minhas perguntas!” dizia Moura Guedes a Marinho Pinto. Frases necessárias na medida em que eram ditas num momento de alta tensão – foram uma forma de tomar posição – e porque correspondem a excepcionalidades – os ouvintes poderiam imaginar precisamente o inverso: que o Marinho Pinto estava a portar-se de tal forma que jamais voltaria a ser convidado e que Moura Guedes actua de forma a condicionar a capacidade de expressão dos seus convidados.

Este episódio da vida portuguesa só não foi alvo de melhor análise por causa do monopólio de poder entregue aos representantes dos partidos políticos (quem não seja de um partido vê as suas posições reduzidas à insignificância, só porque não vão a votos) e porque tal discussão atingiria centros nervosos da crise nacional (que é de confiança, antes de ser económica), o que distrairia os portugueses da economia política – segundo a opinião dos ideólogos da situação, no poder ou na oposição.

O debate televisivo pôs frente a frente duas perspectivas de acção social para ultrapassar a (justificadíssima) crise de confiança dos portugueses em si mesmos, crise essa já assinalada pelo filósofo José Gil uns anos atrás em O Medo de Existir. Nenhum dos protagonistas pode ser acusado de ter medo de existir, até porque nenhum dos dois tem medo de projectar imagens pouco discretas sobre a sociedade portuguesa. O contrário seria mais verdadeiro: ambos procuram protagonismo, que tanto na linguagem da polícia como dos políticos, pelo mesmo tipo de razões, soa a demérito.

Protagonista é alguém que, intencionalmente, procura investir o seu corpo, as suas ideias, a sua energia vital, no espaço público, eventualmente a favor do público, mas em todo o caso animando esse espaço. Em democracia podemos não estar de acordo com as intenções ou a forma de actuação dos protagonistas, mas será em torno deles que se pode produzir opinião, participação cívica e consequentes condicionantes à acção dos poderes públicos. Por isso julgo ser oportuno utilizar este espaço mediático que me é oferecido para reclamar mais debate público sobre estes protagonistas em confronto. Até porque nenhum ameaçou passar para os meios judiciais aquilo que é do foro político (embora não partidário). Não há problemas com o segredo de justiça, tantas vezes utilizado como arma de arremesso político, não apenas conspirativo e cabalístico mas também, quiçá sobretudo, na medida em que serve para intimidar quem entenda haver questões políticas a tratar para além das questões judiciais.

Concordei com os que alegaram ser de proteger e apoiar as iniciativas mediáticas, especialmente nos grandes órgãos de comunicação, que se proponham não respeitar o pacto de silêncio sobre a crise moral que o pais atravessa. É claro que é discutível a forma como se faça isso. Temos exemplos de sobra, sobretudo na política e na banca (às vezes, uma e outra, parecem a mesma coisa), de moralistas – PRD, PP, BCP – cuja moralidade foi publicamente posta em causa de forma escandalosa. Portanto, se na substância estou de acordo com a política de adoptar uma postura pública de denúncia da imoralidade, também não posso deixar de estar de acordo com a necessária crítica ao modo de cumprir tal política, não vá a forma negar as intenções.

Não concordei com todos os que defenderam tal posição contra o Bastonário da Ordem dos Advogados, como se este fosse alguém em campanha contra a liberdade de palavra, ou sem se referirem ao assunto substantivo – a luta dentro da Ordem dos Advogados – que esteve na base do convite para estar no Jornal da Noite e, também, na base da contestação do trabalho jornalístico por parte de Marinho Pinto.

Se for verdade que a Manuela Moura Guedes se preparava para interpelar o Bastonário de modo a apoucar a sua legitimidade e posição social e política, o que julgo ter sido confirmado pelo que se passou, não terá o Bastonário – como qualquer outro convidado – o direito de se indignar e de se defender? Será tal atitude um ataque político à liberdade de expressão?

Aqui chegados temos que ponderar: a violência simbólica nos media (e na sociedade em geral, já agora) deve ser contida ou moral e livremente regulada? 


O fim da economia

A noção de nova economia tem sido discutida por um lado como uma fuga teórica da teoria do valor-trabalho e da teoria da exploração e, por outro lado, como uma ficção que tende a separar (economias nacionais dos países desenvolvidos) o que a globalização juntou (circulação livre de capitais e investimentos incluindo deslocalização do trabalho). A nova economia é a grande narrativa correspondente ao novo espírito do capitalismo, em que tudo – incluindo as repartições do Estado ou os trabalhos beneméritos ou as tarefas intelectuais ou religiosas – tudo deve passar a ser equalizado, digamos assim, pela visão menagarial do mundo (uma contabilidade refinada com coaching, com uma pitada de iniciativa e muito modelo de negócio, isto é produtos mais ou menos tóxicos que dêem lucro).

E se a nova economia, em vez de ser uma ideologia a realizar fosse antes uma descrição empirista do mundo tal como ele é visto a partir dos bem sucedidos?

Se a era do progresso (ainda que apenas sonhado) se acabou? Se as classes dominantes perderam a confiança no futuro da humanidade, se deixaram de se entender como dirigentes e passaram a entender-se como domadores? Nesse caso poderiam reunir-se em locais longínquos e secretos, ultradefendidos com seguranças temerosas e numerosas, em conclaves sem conclusões que não fossem as canalizadas através de think thank secretos, próprios para gerarem opinião através de colunas em canais de comunicação adaptados ao pensamento menor dos que fazem do quotidiano reality, do consumo sonhos e do futuro uma merda.

Ao contrário do século XIX, o trabalho não tende a ser um bem escasso. As tecnologias e a dificuldade de consumir tudo o que é preciso para mascarar a queda da taxa de lucro, a globalização, tornam o trabalho super abundante, tanto mais quanto mais populações são integradas nos mercados de trabalho. O resultado é que as pessoas agarram-se aos empregos como se eles fossem trabalhos, quando na nova economia são sempre meios de realização de capital (o que dantes se chamava comércio) a que anteriormente se chamava trabalho improdutivo. Trata-se não só de encontrar quem possa estar interessado num certo produto que beneficia da produção barata em série. Trata-se também de informar a produção sobre as “necessidades” dos consumidores (em produtos tóxicos e outros) para que a produção flexível, on demand, just in time, utilize esse canal para realizar capital.

Aqui em S.Paulo todos os Omnibus (os autocarros da terra) para além do condutor têm um cobrador (que nome, heim? Cobre – bicho diabólico – e dor – de sacrifício). Os cobradores têm emprego, claro. Acompanham de perto o uso das máquinas automáticas pelos passageiros e também aceitam cobrar bilhetes aos poucos que não trazem cartões. O que mais fazem é dormir em cima da mesa dos trocados, coitados. “Não há nada para fazer!”

O seu papel é de guardas do mercado. Explico-me. Atrás de cada cobrador há uma informação que refere o facto do código penal brasileiro condenar entre 15 dias a dois meses de prisão (prisões brasileiras) quem entre em restaurante, hotel ou transporte público sem ter meios de pagar. Esta brutalidade, evidentemente, pretende dissuadir os que estão fora do mercado de trabalho e não conseguem arranjar dinheiro a penetrarem no meio social dos que podem pagar (quem anda de omnibus são os pobres trabalhadores, claro). Os ladrões bem sucedidos, esses podem entrar.

O aumento demográfico das metrópoles, a sua desindustrailização, o aumento do sector da segurança e do comércio, a necessidade de aumentar a velocidade de circulação de mercadorias, cada vez mais à medida que o número de empregados vai decrescendo por via dos processos de racionalização, o temor da avaliação da produtividade ou simples utilidade do trabalho por parte dos trabalhadores, convencidos de que estão empregados apenas por simpatia e confiança pessoal dos seus empregadores ou chefes directos, a vontade dos modernizadores de pressionar os custos do capital (e do Estado) quando chega a altura da crise, tudo isto tende a tornar cada vez menos escassa a mão-de-obra e o trabalho.

Não é isso o fim da economia?

Concerteza: o que já vivemos não é uma crise económica – essa já foi há anos. O que temos é uma crise de confiança dos dominantes de poderem continuar a enganar os outros todos com a ideia de nova economia. Para os dominantes já é evidente que não têm defesa nenhuma, assim os incrédulos burros que os acompanham como serviçais se dêem conta, aceitam dar-se ao trabalho de dar-se conta, de que não terão cabidela nos planos futuros da classe dominante, cujos privilégios são cada vez mais escassos – devido à crise política, à crise ecológica e à crise financeira.

Os ladrões podem manter-se livres da perseguição judicial, mas como poderão continuar a legitimar poderes de estado e de opinião fantoches nas actuais circunstâncias de zangas das comadres?

2009-05-13


A violência dos modernizadores

Perante as notícias de carros incendiados e tiros de contestação das práticas policiais levadas a cabo nas ruas de Setúbal, há quem venha desdramatizar – “Já passou! É só fumaça!” – e quem se prepare para pedir reacção “exemplar” da polícia, já que nos últimos anos, segundo informações de peritos na matéria publicadas recentemente, os polícias portugueses “só” mataram em média 5 pessoas por ano (nos EUA parece se a média tem sido 11, pelo que, em termos de modernidade, como se vê, ainda há alguma margem de manobra). Para compor o ramalhete só falta aqui o argumento dos custos da modernização: como se fosse verdade (e é mentira) que a urbanização e a industrialização sejam sinónimo de maior violência quotidiana nas sociedades afluentes.

Estamos num período de expectativa relativamente a saber de onde a violência vai irromper: do lado do governo, apertado pela contestação popular, por processos judiciais e escândalos regulares de abuso de poder? Do lado da oposição, que – ao que se diz – já começou a atirar líquidos para a roupa dos candidatos do governo a eleições europeias? Do lado da União Europeia, que tem discutido propostas interessantíssimas como as 65 horas de trabalho semanais ou a privatização da Internet? Do lado dos pobres e excluídos, sobre quem pesa o novo encargo de pagar a crise criada pelas pessoas de confiança dos governos mundiais?

Ainda recentemente persistentes tumultos na Grécia assustaram os comentadores, já que o problema veio de onde menos se esperava: dos adolescentes ricos das cidades gregas, que se juntaram aos contestatários crónicos e a que se juntaram os imigrantes, o lumpen e os trabalhadores precários.

Querem-nos fazer querer que a violência organizada é uma consequência das ideias “radicais” ou de simples oposição, dos estrangeiros, dos desempregados, dos pobres, dos excluídos. Não é da polícia que se prepara para a guerra social, a quem os governos dão meios bem mais caros do que custariam programas de integração social dos excluídos. Não são os que acumulam reformas de luxo, umas atrás das outras, enquanto preparam políticas de contenção e de actualização das fórmulas de cálculo para reduzir as reformas dos outros. Não são os reguladores que entregam aos regulados a informação para se auto-regularem, enquanto partilham entre si os benefícios do domínio sobre as instituições democráticas definhantes.

Os bairros pobres terão que aguentar a crise, pagar o que puderem e manter-se quietos e calados, agradecidos pelo favor de viverem perto dos privilegiados e poderem aprender com eles as competências para se poder viver assim, como por exemplo: aprender a poupar, a conter as despesas.

Sem dúvida, há que reconhecê-lo, em Portugal tem sido possível manter o povo agachado de uma forma que até já irrita muitos comentadores: os portugueses não “inscrevem”, filosofou José Gil no seu “Medo de existir”. Ficou famoso por isso. Aliviou muita tensão acumulada, mas os portugueses continuam sem inscreverem nada. Será essa uma situação sustentável?

O Estado e essa gente que se governa em nosso nome não vêem razão para se preocupar. Enquanto for dando, já lhe chegam os problemas que têm mais próximo de casa. Tal como ensinou o Presidente Bush, o que fazem, em matéria de segurança, é assegurar que a guerra se passa longe de casa, lá nos bairros problemáticos para onde procuram empurrar, para debaixo do tapete, a violência e as guerras compradas na bolsa de valores sociais, desvalorizando assim ainda mais populações manipuladas mas, por isso mesmo, imprestáveis para colaborarem em nenhum programa de desenvolvimento, que aliás e significativamente também não existe, como anuncia insistentemente o Presidente da República.

Os modernizadores, afinal, só têm uma ideia na cabeça: esperar que as coisas que se componham ou cheguem ordens de quem saiba mais, tipo FMI, OCDE, Banco Mundial, ou alguma seita secreta dominante. Ordens para se implementarem a martelo, quer a gente queira quer não, quer eles saibam o que estão a fazer quer não. A estabilidade está garantida, com Bloco Central ou sem ele: quem ainda espera disso alguma coisa, além de porrada?

9 de Maio de 2009


 

Análise da situação de crise

A insistência na disciplina económica para compreender a crise, ainda que seja sob a forma de uma economia política, parece-me um erro crasso a evitar e a denunciar. Assim o farei aqui brevemente, utilizando o caso daqueles que estejam, porventura, a desenvolver expectativas, esperanças e actividades em propostas cooperativistas ou tomando por certas as condições sociais que permitem actualmente algumas das populações urbanizadas imaginarem poderem viver autonomamente como indivíduos livres e auto-determinados.

O sucesso perspectivado das actividades de moralização dos grupos sociais económica e socialmente mais activos (trabalhadores e empresários, por exemplo através de formação ou coaching ou através de programas de solidariedade social como forma de promoção das marcas empresariais) de modo a estabelecer aí, nas práticas laborais, as bases para a moralização da vida pública decorre da aplicação uma perspectiva marxista, adaptada aos tempos actuais: será a infraestrutura que ao transformar-se obrigará a uma adaptação da super estrutura.

Para efeitos de polémica simplificarei dizendo que uma análise de classes actualizada (isto é, sensível às profundas transformações anti-progressivas que se tem confirmado nas últimas 3 décadas) nos levará a infirmar essa tese marxista, na medida em que – ao inverso do que acontecia no tempo de Marx – a inversão do sentido do progresso está a tornar a economia um efeito secundário da política (ao contrário da tese banalizada pelos partidos marxistas, social-democratas, democratas cristãos e conservadores actuais). Sendo que essa política é a política do privilégio e do saque – leia, por favor, Peter Oborne The Triumph of the Political Class.

Se eu tiver razão, com a autonomização do sistema político (globalizado) relativamente aos sistemas sociais (locais), a moralização das práticas locais ou é uma forma de tomar conta do destino de cada um em solidariedade com os outros que dependem do local (através de programas de solidariedade interclassista que não existem) contra os que exploram o local em nome do global - o que bem é preciso fazer, mas com grandes dificuldades práticas e teóricas – ou também pode ser uma forma de evitar o confronto (inevitável, em todo o caso) com os poderes globais e moralmente (compreensivelmente) extra sociais e mesmo anti-sociais. Foi a Tatcher que ficou famosa entre os sociólogos por ter declarado que não existia nada disso a que se chama sociedade.

2009-04-16


A justiça de Entre-os-Rios 

“Quem se mete com o PS leva!”

O que é que esta enigmática frase tem a ver com o caso da queda da ponte de Entre-os-Rios? Tem o mesmo autor, cuja demissão de ministro das Obras Públicas após o desastre foi saudada como um raro exemplo de assunção de responsabilidades políticas.

Em Portugal, diz-se com razão, só as bagatelas criminais são julgadas e a corrupção sobrevive “acima de qualquer suspeita” à vista de todos. Quem não esteja protegido por cumplicidades de sociedades secretas dominantes pode ser atacado pela justiça. Por isso é hora de perguntar, em especial ao Sr. Jorge Coelho que certamente saberá o que diz e como as coisas funcionam (dizem as más línguas que é ele um dos que melhor as sabe pôr funcionar), se os familiares das vítimas do desastre de Entre-os-Rios se meteram com o PS?

Uma petição ao Estado dos familiares das vítimas reclama que se encontre um modo de evitar a sua falência, ao terem sido intimados pelos tribunais a pagar meio milhão de Euros pelas custas judiciais. Espero que haja vergonha e que deixem as famílias em paz, ainda que à custa de uma atribuição de um privilégio qualquer que queiram inventar para o efeito.

Mas o problema político é outro: o que espera os cidadãos que recorram à justiça e não tenham direito a privilégios?

A justiça insensível à corrupção, ou melhor incapaz especialmente perante a corrupção, é explosiva para com os denunciantes e as vítimas, em especial quando as vítimas o são por efeito de acções do Estado. Numa época de tanta perversidade ética e moral em torno de interesses financeiros e políticos, ambos cada vez mais distantes da vida das populações, mesmo das populações de classe média, quando se anunciam aumentos brutais das custas judiciais já de si maximizados pelas políticas de (in)justiça dos últimos anos, tendo em conta as condenações da Comissão de Prevenção da Tortura e do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem contra o Estado português, que sinal nos é dado pela experiência do julgamento de Entre-os-Rios?

“Quem se mete com os interesses protegidos pelo Estado leva!” E justiça, é melhor não pensar nisso.

Em Portugal não há tradição de trocar indemnizações por ofensas mas, no estado em que estamos, é o Estado europeu mais incapaz de assegurar níveis mínimos de justiça social que encaixa indemnizações, produza ou não justiça – e, a experiência mostra-o, não é de esperar que nas próximas décadas haja condições para produzir regularmente justiça compreensível ou credível. Pelo contrário, o que se vê é a proliferação de privilégios. Alguns compreensíveis para ultrapassar injustiças profundamente arreigadas na sociedade portuguesa – como a injustiça endémica das práticas institucionais – cobrem os outros, aqueles que queremos todos combater mas não podemos, porque senão levamos.

16/4/2009


O pingalim de serviço ao sistema

O nosso ex-ministro medalhado pela administração Bush – por feitos jamais revelados em público – retomou poses de Estado para explicar porque é que o governo português não deve respeito e acatamento às decisões do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.

Condenado o Estado português por ter atentado contra a liberdade de expressão – no caso do barco que procurava atracar em portos portugueses para tomar posição sobre a questão do aborto – vem alguém que diz de si mesmo ambicionar representar – ainda mais? – o Estado português explicar porque faria exactamente a mesma coisa caso tivesse poder para tal. E nem sequer se estranha que para o efeito evoque a Lei.

Como se sabe, a lei em Portugal é propriedade de quem nela se possa pendurar. Infelizmente não é uma piada. É a vida portuguesa.

É, assim, possível fazer carreira política com um único ponto de programa: o aumento das penas de prisão. Mas é também esse espírito carcereiro que impede voos mais altos. A malta está de acordo. Mas descola da vileza necessária para cumprir tais promessas. Os amigos do Bush, ao invés, reconheceram-no como amigo.

2009-02-04


O que há para se fazer?

No programa Prós e Contras da RTP de dia 2 de Fevereiro de 2009, a respeito da confusão judicial em torno das alegações de corrupção no caso Freeport, que atingem o primeiro ministro de Portugal, e, portanto, todo o país, geraram-se consensos sobre a culpabilidade do sistema judicial na situação e sobre a desorientação geral sobre como ultrapassar o problema, sem falar como prevenir réplicas do mesmo. Que fazer, perguntava a jornalista aos seus convidados: “Não sei!” foi a resposta mais precisa que obteve.

Como pau carunchoso, o Estado português desmorona-se à frente dos nossos olhos sem haver quem ponha mão nisto? Hilariante, e significativa, não fosse caricata, foi a interpretação feita das palavras do Presidente da República sobre a inépcia dos legisladores: Cavaco Silva referia-se à nova lei do divórcio – seu cavalo de batalha – e, porque não o referiu expressamente, todos interpretaram a acusação de falta de qualidade na produção de leis como um bota abaixo ao Parlamento e aos deputados. O Presidente ficou refém das suas palavras e os comentadores usaram isso para denunciar o estado a que a coisa chegou.

Gente como Júdice – cujo prestígio cívico o impede de ocupar lugares de responsabilidade pública sem ser enxovalhado (embora seja presença assídua nos media) – teme pela democracia. Aqui chegados temos de nos perguntar de que democracia se fala? A democracia que não sabe que fazer perante o naufrágio do Estado? Isso não é democracia! Isso é nepotismo e oligarquia, como alguns dos mais reputados politólogos estão cansados de afirmar, sem que ninguém os queira e possa ouvir.

O Estado de Direito e a Democracia ou se constroem juntos ou se abraçam mutuamente como náufragos. Infelizmente é este último o caso em Portugal. O que há a fazer? Impor a Democracia e o Estado de Direito. Como: lutando pela liberdade de expressão e pela liberdade política, princípios básicos dos Direitos Humanos, contra o compadrio, a arbitrariedade e a corrupção.

Há os que dizem serem tais objectivos políticos populistas, abstractos, demagógicos e não operacionalizáveis. Esses não são os democratas militantes de que Portugal precisa neste momento. Vejam, por favor, o que tem dado 30 anos de preocupações políticas centradas na economia: colapso e desorientação, vergonha e desânimo. Democracia é existirem efectivas possibilidades de mudança de política sem violência. Passarmos a dar prioridade política a questões morais, base da confiança social e por sua vez base da possibilidade de desenvolvimento económico. Ora, tais condições não estão reunidas em Portugal, como o caso Freeport evidencia à saciedade. A Democracia que dizem que temos distingue-se do Fascismo de forma positiva, sim. Mas de nada nos servem, de facto, actualmente os males do passado. Precisamos de liberdade para organizar o futuro e, essa, falta-nos.

2009-02-03


Matem a morte 

Como é que uma manifestação a favor da justiça e da paz, denunciando o assassínio de um jovem de 14 anos por um polícia, pode tornar-se no motivo de um ferimento de uma agente da polícia por um dos manifestantes?

Da mesma maneira que os comentários na Internet às notícias comparavam os traumas desenvolvidos pelos roubos de automóveis com os causados pela morte de um jovem, como se os primeiros justificassem os segundos.

A natureza humana é de uma enorme capacidade de violência. Veja-se o que foi capaz de fazer com o planeta e com as guerras, por exemplo. O que não quer dizer que a natureza humana seja hobbesiana, do todos contra todos. Ao contrário: para sobrevivermos à nossa própria violência precisamos de apoio social dos nossos próximos, daqueles que sejam capazes de nos reconhecer como gente. Com as nossas qualidades e com os nossos defeitos.

A sociedade organiza-se para reconhecer as qualidades (às vezes inexistentes) de alguns – vejam-se, por exemplo, as práticas de auto-elogio dos poderosos para aumentarem o prestígio dos seus grupos de influência – e para salientar os defeitos (às vezes induzidos pelas profecias que se auto-realizam) de outros – os excluídos.

O Estado, esse, informado pelas doutrinas políticas e de direito, tem obrigações de civilização: não discriminar, defender os direitos humanos, assegurar acesso ao Direito, assegurar a liberdade de expressão, etc. Porque o Estado é bonzinho? Não, pelo contrário: porque o Estado depende da capacidade que tenha de pacificar a sociedade. Quando não cumpre essa função perde a legitimidade e a justificação da sua própria existência – bem lucrativa, como se sabe, para os seus beneficiários – e arrisca-se a ser alvo da violência que não foi capaz de conter.

Um exemplo quotidiano: quem declarou a guerra contra a droga foi o Estado, ou melhor a ONU e o conjunto dos Estados. Desde então um enorme mercado negro emergiu com tentáculos em toda a parte, incluindo nos corredores do poder. Quem não sabe onde se trafica? Porque é que a polícia não acaba com isso? Pura e simplesmente porque não está nas mãos da polícia fazer outra coisa senão perseguir o pequeno traficante que é oferecido à morte e respeitar o grande armazenista com influência corrupta suficiente para não ser apanhado. Nas prisões, onde a maioria dos presos está lá por causa da droga, oferecerem-se as doses que se quiser a quem puder pagar, sem que o Estado se sinta na obrigação de acabar com isso.

Sendo o Estado uma organização de gente, o que faz é auto-elogiar-se em permanência a dizer que faz tudo bem – e quando isso não acontece a culpa é de algum agente descontrolado que há que castigar. Acontece que os castigos previstos são desagradáveis: expulsão da profissão (que é, nas nossas sociedades, o tal apoio social que valoriza as nossas qualidades e minimiza os nossos defeitos, a que os sociólogos chamam identidade) ou até a multa ou a prisão (lugar onde todos os defeitos são valorizados ao extremo). E os amigos, colegas, preferem evitar que isso aconteça por solidariedade e também para impedirem o reconhecimento público de poder haver maldades ou defeitos nos campos sociais onde vivem.

A exclusão decorre do funcionamento social competitivo. Como os gorilas, gostamos de bater no peito sem mácula, atribuindo a outros – que queiram experimentar o mesmo gesto – o carácter provocador. Na verdade, o poder social é relativo e exclusivista. A democracia é, porém, um modo de distribuição do poder. De modo a minimizar a violência interna das sociedades e prolongar a estabilidade do poder e a segurança dos detentores do aparelho de Estado.

Qualquer manifestação, seja ela de professores ou de jovens, é sempre um risco para os poderosos. Mas também é uma necessidade para os manifestantes. O que acontece a seguir às manifestações (“Nós é que ficamos aqui!” – gritavam os jovens locais contra um partidário da partir para a violência) é sempre imprevisível. Todos os professores na rua, por si só, não fizeram recuar o governo – pelo menos no imediato. Seria coerente uma manifestação pela justiça e pela paz não ser causa de ferimentos, em especial em agentes da autoridade acusados de serem, eles próprios, abusadores da violência legítima. Os resultados, porém, decorrerão da capacidade de encaixe das partes envolvidas nos acontecimentos.

O que se viu na manifestação foi a reacção agressiva dos manifestantes ter-se dirigido contra a pose de suave confrontação de quatro polícias na portaria da esquadra, substituída depois do ferimento da agente de polícia pela simples presença (descontraída) do chefe da esquadra junto das grades, em diálogo com alguns jovens, à margem da manifestação.

A polícia, a menos que seja radicalmente incompetente, teria de ter informações seguras sobre o carácter e âmbito da manifestação: os jovens dos chamados bairros problemáticos estão fartos – e ainda bem para eles e para nós – de serem enxovalhados: de verem as suas características transformadas em defeitos (nomeada e simbolicamente a cor da pele) e os defeitos transformados em identidade colectiva. Pretendem – que bom! – reconstruir a sua identidade social, transformando-a numa boa marca, como agora se diz, à luz de exercícios já realizados a pretextos diversos (a Zona J tornou-se um mito do cinema português e a Cova da Moura tornou-se num percurso turístico).

Ao Estado, por seu lado, caberá afirmar a democracia: assegurar o direito de manifestação, a liberdade de expressão e reconhecer o diálogo como forma privilegiada de acomodar a emergência de novas identidades – de boas identidades – na sociedade portuguesa.

Há aqui riscos para o poder? A vida é um risco para o poder. Também para as crianças, como se viu no caso do jovem abatido. Agora os riscos podem ser maximizados, como quando os polícias se ofereceram aos manifestantes como alvos, em vez de dialogarem com eles ou de, como é normal noutras manifestações, organizarem a segurança da manifestação e assegurarem a liberdade de expressão.

Não, não. A responsabilidade da pedrada e do ferimento da polícia é da manifestação e do manifestante em concreto que lançou a pedra. Do mesmo modo que o assassinato do Kuku (do Angoi, do Tony, do PTB, do Tete, do Corvo) deve ser assumido por quem de direito. Não na lógica do roubo de carro pela vida de quem possa estar próximo dos culpados, mas na lógica de dar nomes positivos a jovens traquinas, rebeldes, provocadores, desorganizados, que só diferem dos filhos das classes dominantes por serem excluídos nas escolas, nos locais de residência, no acesso ao emprego, no acesso aos centros de diversão comercial, da imagem púbica sobre o que é a vida em Portugal actualmente.

2009-01-18


Campos de caça

                                                   16 Janeiro 2009

Um polícia executou um jovem de 14 anos com um tiro a 10 cm da cabeça. A polícia não tinha disso qualquer informação: apenas soube dizer que o jovem roubara o automóvel e estava armado. A família recordou ter tido a possibilidade, nas vésperas do homicídio, de retirar das mãos da polícia o rapaz, pois queriam levá-lo com eles (?).

Passa-se isto dias após o senhor Procurador-geral da República manifestar os seus receios de agravamento da violência nos bairros classificados como “problemáticos”, nomeadamente por a circulação de pessoas no espaço da União Europeia ser uma realidade – pelos vistos perigosa.

Passa-se isto seis meses depois de o governo ter enviado a polícia à caça nos bairros periféricos, para provocar uma cobertura mediática estival capaz de contrapor aos casos de incapacidade da polícia para deter o crime a manifestação do poder de intimidação da mesma polícia contra o Outro, aquele que habita em bairros escolhidos para o efeito.

Passa-se isto meses depois de os jovens residentes nos bairros de caça policial começaram a contar e a nomear a lista dos companheiros abatidos pela polícia desde que têm memória.

Enquanto os técnicos descobrem ocorrerem a maioria dos crimes nas zonas nobres das cidades, onde a polícia não quer, não sabe ou não pode evitá-los, a administração interna divulga os locais de residência dos alegados meliantes – que não podem deixar de corresponder aos locais onde a polícia, longe do palco dos crimes, actua quotidianamente de forma ostensivamente intimidatória.

Maximiano Rodrigues, instalador do IGAI, organismo de polícia das polícias, deixou-nos em testamento a denúncia do interesse do governo em desprestigiar esse organismo de Estado, ideia confirmada pelo seu sucessor no cargo. Disse, na altura, que o facto de no ano em que se demitiu de funções não ter havido vítimas mortais de encontros com a polícia, tinha sido resultado do trabalho do IGAI e, disse mais, o desprestígio do IGAI significaria – como se veio a verificar – um aumento de homicídios cometidos por agentes e um desprestígio da polícia.

Um agente de segurança do Estado, fora da comunicação social, manifesta-se preocupado pelo facto de, na sua corporação, a base de recrutamento estar a encurtar - apesar do desemprego, o número de candidatos aos lugares a concurso tem diminuído – e a selecção não excluir, ao contrário favorecer, os cabeças rapadas.

Uma das razões de, a partir de 1996, ter começado a tomar mais atenção às questões de segurança foi uma resposta que na altura ouvi a um assessor jurídico do primeiro-ministro de então: “Quem é que o senhor quer que agente lá meta?” A pergunta foi:”Como é possível estar um fascista à frente de uma direcção geral de serviços de segurança?”

A guerra colonial acabou, faz várias décadas. As relações de amor-ódio entre os povos envolvidos desenvolveram-se. Por que é que a maioria dos filhos e dos netos negros dos portugueses e dos imigrantes que escolheram ajudar a construir a modernidade desta país têm de pagar tão alto – com a exclusão social organizada superiormente e executada também pela polícia – o preço de viverem aqui? Por que fazemos das suas dificuldades de integração social, negligenciadas pelo Estado, bodes expiatórios dos nossos erros colectivos? Por que é que em vez de tratarmos de enfrentar as verdadeiras questões – o crime onde ele se pratica, a falta de vontade política de regulação (tanto económica como policial, tanto laboral como nos alojamentos sociais), os jogos de poder, os vícios de praticar o racismo, a homofobia ou o machismo – preferimos, através dos nossos governantes e dos meios de comunicação social, convencer-nos que as nossas inseguranças se resolvem fustigando o Outro?

 

Segurança com liberdade!

Democracia sem exclusões!

MATEM A MORTE


Gaza and Acts of Terrorism

Dear R.D.Coates,

It is sad when to rule of market is used by its adversaries (I suppose you are) to talk about something what you don’t feel the need to understand.

You present the Gaza last week events as a play between two sovereign armed parties: one, strongest than the other and full of goodwill, only show its power when provoked.

You accept that Hamas is mostly using terror (meaning psychological war that produces fear in living people) and Israel used deadly strategies. My questions are: Do you propose that death is morally cleaner than terror? Why did you not mention the fear feelings of Palestinian side? Are you not sympathetic with?

You should present the situation in Palestine as a situation where a modern State, sponsored by Western powers, organized a discriminatory legal regime based on religious and ethnic segregation, where one can find 4 different kinds of citizenship (with different social economic and political rights associated by legal constraints), beside the people with no identity at all (1/3 of the population is out of national statistic counting) who lives in city like no roof prisons, from where the water, the food, the healthcare, the identity cards, the traveling licenses, the jobs, every single part of life is controlled by the armed enemy, organized as an army.

Do you know that a Jewish person cannot married legally in Israel with other people than Jewish legal recognized person? Do you know that mixed couples must married themselves in Creta? Do you know there are roads where only Israeli persons can drive? Do you know if you are Palestinian it is possible you cannot be able to invite friends of your at your home place?

Do you understand what means for the people in Gaza being under siege for months for voting wrongly in Hamas candidates? Why should not the Humanity (if it has an army) siege north American people for voting George W. Bush? (ok, I know: your President, himself, did it anyway).

Do you listen to the news about the electoral competition between Israeli parties on killing Gaza people, such as unarmed civil police, presented by Israeli government as they were warriors?

I do not know much about what is going on the Middle East. I do not need to know much to say that your speech about it is absolutely wrong. You do not argue with facts. You moralize the situation. That would not be a problem if you would be able to be balanced: terror is a feeling only felt by Israeli? Strange, is not it? Comparing death causalities with terror feelings is not subtle: is wrong, obviously.

You tried to avoid the evidence: in that case you prefer to back the guards of the biggest prison on earth against the prisoners. It is a choice (a very common choice, I must say). Anyway a wrong choice: the violence comes (off course) from the master of the situation (look at Zimbardo Lucifer Effect, please). The situation still is in place because it serves the master. Who is the master? That is the big question.

USA will shut down Guantanamo. Well done. Still, one should shut down all prisons in the world, where mankind dignity in mocked by and used by criminal leaders to stay in power, corrupt power - as we can see in Palestine and Israel too.  

In Israel there no war. There is a western colonial like occupation using Jewish guards to control Palestian people inside prison walls. Israeli citizenship is imprisoned, as much as the families of prison guards are imprisoned too. Even they get some privileges.

Silenced by the violence they perpetrated every day, as a professional task, to serve western interest against whatever are the relevant values of western civilization, Israeli people seek for peace as much as Palestinians. How is it possible, if western powers need them where they are? That is why they are paid for, is not it?

 

There is a difference between Europe and USA. A speech like R.D.Coates wrote would be difficult to be written in Europe.

That is why I felt the need, for the first time in my life, to write about Palestine. I know very little about it. I hardly can write in English. Any way my point is not hard to make: you are morally biased, Mr Coates. You follow the evil side that legitimate the oppression (even the genocide and the ethnic religious apartheid) inventing a war with only one army in the field. There is no such a war, except in the market ideal-type ideology.

2009-1-3 

melhores cumprimentos

António Pedro Dores

 

Gaza and Acts of Terrorism

Rodney D. Coates*

                With extreme sadness I have watched events unfold over the past week as thousands of Palestinians and Israelis have been traumatized by violence, death, and terrorism.  All of us have seen the distraught faces of children, past mourning, in a sort of daze as the mayhem and destruction assaults reason on a daily basis.  While cries for a cease fire and some sort of temporary resolution have gone unanswered, the missiles continue to fly from both sides.  Now, as a ground assault seems imminent, many have tried to paint the Israeli's as the culprit we must not ignore the repeated and blatant acts of terror by Hamas which continues to precipitate the crisis.

                For days, Hamas directed hundreds of missiles daily to rain upon innocent Israeli towns.  For a similar number of days, Israel held back with restraint.  It was only after several days of continual missile attacks, did Israel finally decide to retaliate. I find it strange that many now call these acts of self-defense cruel and inhuman.  Without minimizing the hundreds of Palestinian civilian deaths, we should equally not minimize the abject act of terror on the part of Hamas which has directly resulted in these deaths.  Put simply, Hamas acts as a coward by hiding among the innocent while it wages its terror attacks upon Israel.  By so embedding its military operations within towns and villages, Hamas commits the perfect act of terror.

                The function of Terrorism is to use limited resources to get maximum exposure in various media.  The aim of terrorists is not to win a war or a battle, but to garner the maximum of publicity for a particular cause.  Therefore, terrorist's campaigns are judged according to the amount of media exposure their actions produce.  The most successful campaigns, from the vantage point of the terrorist, are those which minimize their losses while maximizing the terror produced.  While we note the number of Palestinian people that have been killed, few have counted the number of Israelis' who have lived in terror for the past few weeks not knowing when and if a missile will strike.  The most potent weapon of terrorist is fear, and the daily fear of not knowing maims thousands of Israelis.  Further, being forced to retaliate, the Israelis suffer worldwide condemnation for their response.  The actual blame should fall on Hamas who chooses to hide behind women, children and the innocent.

                Victory in this dance of death will not come from violence, it must come from diplomacy.  But diplomacy cannot come until the violence has been abated.  Israel would be foolish to abandon its own defense while being attacked.  We pray that sanity will come to the Middle East, that the Palestinian leadership will abandon the use of terror cloaked in human lives and seek peaceful resolution of this conflict.   We can ill afford to reward acts of terrorism, cowardice and violence.  We must continue to demand peace, diplomacy, and compromise.

Rodney D. Coates

Professor of Sociology and Gerontology

Miami University

Oxford, Ohio 45056

 513 - 529 1590


Obviamente, demita-se o presidente da CP

Notícia nacional do dia (2009-1-3) foi a abertura de um inquérito à administração da CP para investigar um série de factos alegados em carta anónima indiciando nepotismo e gestão danosa em casos muito concretos e com autores também identificados. Um dos visados é o próprio presidente da CP, cuja honra – compreende-se – poderá estar afectada.

A forma como reagiu deviam impedi-lo, de moto próprio ou por iniciativa da tutela, de continuar no cargo.

Não está em causa a culpa que possa ter ou não ter nos casos (se existem) arrolados na denúncia anónima. Só com um conhecimento mais detalhado das acusações poderia apreciar a necessidade ou não da sua exoneração do cargo: ainda que o interesse público deve sempre prevalecer sobre interesses privados, como a honra ou a posição de seja quem for, não é lícito nem interessante para o bem público oferecer a falsos acusadores a possibilidade de afastar dirigentes inconvenientes.

O que é intolerável – para o interesse público – é o comportamento do presidente da CP confrontado com as acusações.

a) o anúncio da intenção de mobilizar o processo penal para perseguir os denunciantes é intolerável. Primeiro porque o país precisa de todas as denúncias possíveis para combater a corrupção endémica de que sofre. Segundo porque o processo penal não é, não deve ser, a sede de debate de políticas de gestão de empresas públicas. Terceiro porque justificou com tal reacção o facto de os denunciantes se terem coberto com o anonimato, com o legítimo e compreensível propósito de se salvaguardarem – precisamente – de ataques judiciais que oneram a vida das pessoas por muitos anos, décadas eventualmente, sujeitas a todo o tipo de pressões e humilhações próprias deste tipo de tribunais, especialmente em Portugal onde a justiça é o que é.

b) a mobilização de recursos da CP para prosseguir fins pessoais é intolerável. O presidente da CP anunciou ter dado ordens aos juristas da empresa para perseguirem criminalmente os denunciantes, 34 funcionários da empresa não identificados, iniciando uma caça às bruxas para que todos os apaniguados do Presidente dentro da empresa procurarão contribuir com alguma dica, a fim de ajudar a salvar a honra do seu chefe. Ora, as empresas públicas pagam suficientemente bem aos seus administradores para que eles tenham recursos – apesar dos elevadíssimos custos da justiça em Portugal – para pagar aos seus próprios advogados e as custas judiciais, sem recurso a bens públicos, muito menos aqueles que estão à sua disposição para fins empresariais (e não para fins de interesse pessoal).

O interesse da CP é combater a corrupção, o nepotismo, a gestão danosa e outros males que a possa prejudicar, como organização e empresa. É certo que a defesa do bom-nome de uma companhia também pode ser importante. Mas não no caso de um monopólio. O bom-nome de um seu colaborador também pode ser relevante, principalmente quando esteja em causa a moralidade social e, portanto, a desmoralização do pessoal que trabalha e se identifica com a empresa. A reafirmação da solidariedade colectiva que une quem trabalha quotidianamente na empresa pode ser um acto de gestão e de liderança indispensável. E é precisamente aqui que bate o ponto:

A moral da CP, e das outras empresas públicas, não deve continuar a ser a moral neo-liberal (para usar um estrangeirismo em moda) de que tudo e todos devem servir os melhores e que estes têm direito a usar qualquer recurso para esmagar quem se lhe oponha. A moral a construir para o futuro é a da velha distinção entre os interesses privados e pessoais dos interesses empresariais, organizacionais e sociais, tal como Max Weber descreveu (benevolamente) o espírito do capitalismo (ideal).

A CP está atacada por corrupção a nível da administração? Nada mais natural, no estado de coisas actual. Há quem fique ofendido com isso? Isso é salutar. O presidente da CP desce de chinela ao terreiro a ameaçar os denunciantes? Perdeu as estribeiras – o que não é bom sinal para um gestor público -, mas quem não se sente não é filho de boa gente. Anuncia ter mobilizado recursos públicos para vingar a sua honra abalada? Equivale a uma auto-confirmação daquilo que é o essencial da denúncia: o senhor presidente está habituado a usar o património da CP para fins pessoais.

Demita-se.


Determinantes

2008-08-30

Faz trinta anos que fui expulso de um curso de cooperativismo organizado pelo Instituto António Sérgio, recém-criado, com financiamento do fundo da ONU para países em desenvolvimento. Era um internato de poucos meses, com direito a um rendimento mensal para os candidatos e alojamento mais refeições. As disciplinas de curta duração eram avaliadas, à medida que iam sendo dadas, através de testes e respectivas avaliações em notas de zero a vinte.

Já não me recordo dos pormenores. Lembro-me bem, isso sim, de dois episódios.

Um deles refere-se à organização interna do curso. Fazendo jus ao patrono do Instituto, as verbas referentes aos pagamentos aos alunos foram entregues à comunidade dos estudantes para, à moda republicana, assumirem a auto-gestão cooperativa. Um dia, quando uma ou duas colegas abandonaram o curso (talvez por notas insuficientes), os nossos rendimentos foram reduzidos de duas bolsas e decidiu-se dividir por todos tal redução, enviando lá, para onde foram as colegas, a sua remuneração.

Fiquei fulo. Primeiro porque o dinheiro me fazia falta. Segundo porque foi a única decisão alguma vez tomada pela “república”. Terceiro, mas a mais importante das razões, a decisão foi tomada por umas irmãs de caridade amigas das miúdas que tiveram que sair, contando apenas com a tolerância dos restantes aprendizes de cooperantes.

Recordo isto porque me lembrei de um amigo, também aluno desse curso, que se me dirigiu para me dizer que estava a exagerar nos protestos. Quando o episódio me veio à memória pensei para mim mesmo: já nesse tempo o caminho, que entretanto percorremos durante as últimas décadas, estava a funcionar. Quem pode manda, e o resto do pessoal procura evitar incómodos. Os princípios são exageros. A discussão dos princípios uma estafadeira inútil. A injustiça tolerável.

O segundo episódio, ocorrido no mesmo curso, revela-me como, efectivamente, também as instituições, ainda de forma ingénua e titubiante, já tinham entrada na mesma linha.

O brasileiro funcionário da ONU que acompanhava o curso começou a dedicar-se a actividades de bufaria. Os organizadores imaginaram – ao que sei, erradamente – que haveria uma célula comunista infiltrada entre os alunos. Para tirar as coisas a limpo o energúmeno tratou de organizar já não sei bem o quê. Seja lá o que foi, provocou em mim uma reacção: cada vez que o via chama-lhe bufo em frente a quem estivesse presente. Ora, a partir de certa altura todos os meus professores decidiram dar-me zeros em todas provas, tendo conseguido, no final, por duas centésimas, inviabilizar a nota suficiente para eu ser aprovado.

Logo que me apercebi do caminho das coisas comecei a provocar situações capazes de denunciarem perante os próprios fautores da perseguição encapotada a sua miseranda verdade. E, no final, lá consegui um papel comprometedor assinado por alguém e enviei o caso à direcção do Instituto. Se fosse hoje, claro, nunca seria recebido. Na altura fui. Três aventesmas atrás de uma secretária olhavam para mim como se fosse uma ave rara. Explicaram-me coisas ridículas, cuja memória não tenho. E a coisa lá acabou, de tal modo que, passadas umas semanas, ao entrar na faculdade de letras, ao dar de caras com uma das aventesmas, o homem inverteu a marcha e resolveu sair do edifício por outra porta para não ter que me enfrentar. Quiçá, temia ser esmurrado. Isso nunca foi o meu estilo.

Depois de perder o curso do Inscoop por apego aos princípios – na altura eram só situações intoleráveis para mim – ainda teria de viver por quatro vezes, desta vez em situações profissionais em todas as instituições por onde passei mais de 6 meses, situações equivalentes: perante a reclamação avaliação da aplicabilidade dos princípios a situações concretas, as autoridades baldaram-se e assumiram o vergonhoso poder de tomarem para si a posse do pior que tem as instituições: o poder expedito e arbitrário contra um ser humano que legitimamente quer fazer o seu caminho com dignidade.


A função dos bairros problemáticos

2008-08-29

A comunicação social informa sobre casos extraordinários de criminalidade violenta (assaltos a bancos em que a polícia apanha os assaltantes em flagrante, explosões em carrinhas de segurança de onde são roubados milhões) em parte, segundo relatos da própria imprensa, resultado de algumas poupanças que os bancos fazem em termos de prevenção e segurança.

A polícia mata em directo nas televisões e os sentimentos do auditório explodem, como explodiam os populares nos circos romanos. As televisões passam e repassam a sequência, para satisfação pública, eventualmente na esperança de o caso servir de medida de prevenção contra quem possa imaginar ou querer assaltar bancos ou cometer crimes violentos. A punição, diz-se, serve para intimidar os criminosos e a punição mais violenta torna o cálculo custo/risco benefício potencial uma equação mais difícil de ser propícia a uma decisão pela violência.

Os dias seguintes mostraram precisamente o inverso. Será que o trabalho das televisões estimulou os potenciais criminosos a avançar? Será que a dureza das penas apenas provoca os criminosos? Se a causa dos crimes for o desespero, a perspectiva de um suicídio provocado e executado pela polícia, pode ser uma perspectiva aceitável e estimulante. Não terá sido a isso mesmo que se referiu o assaltante que sobreviveu quando disse ao primo, pelo telemóvel, que preferia morrer a entregar-se à polícia?

Faz já muitos meses que o meio político nos informa da certeza de estar em gestão, e a emergir a qualquer momento, uma crise de violência na sociedade portuguesa, dada a radical divergência entre as promessas da entrada na CEE e as realidades actuais, em particular as situações insustentáveis de muitos cidadãos que, mesmo empregados, não têm condições de manter os mínimos para a sobrevida. Serão as notícias apenas uma informação da ponta do iceberg?

Na verdade não se sabe nada de relevante sobre isso. Os jornalistas relatam, a sociedade agita-se para querer saber o que se passa, as polícias e os estudiosos não fazem a mínima ideia. Os políticos estrebucham, procurando aproveitar a ocasião para fazer valer os seus pontos de vista desconsiderados anteriormente – porque a nossa democracia não funciona bem – e para tentar atingir a popularidade do governo, para fins eleitorais. O governo manifesta preocupação e as polícias organizam espectáculos mediáticos. Aqui chegados, é fácil agora deduzir a resposta à questão deste artigo: a função dos bairros problemáticos é servirem de figurantes precários de filmes de curta-metragem para televisão. Sem contrato, sem remuneração, o seu papel é o de serem agredidos e pagarem as contas das destruições da polícia em casa de cada um.

Lá, onde se sabe se concentrarem em maior número vítimas de criminosos (como, de resto, é relatado pelas notícias sempre que bandos rivais se confrontam nas ruas – os bandos escolhem as mesmas ruas que a polícia: porque será?) o Estado envia a polícia para os vitimar outra vez. Pode bem dizer-se que já estão habituados. E o Estado ainda ganha noutro aspecto: escusa de investir na segurança dessas zonas mais problemáticas, pois as populações, agredidas por polícias e por ladrões, não têm outra escolha a não ser defender-se a si mesmas, poupando recursos colectivos.

As mesmas tácticas são usadas em Israel, quando a cada ataque terrorista, de um lado e de outro, as autoridades decidem vingar-se na população, com o argumento da existência da solidariedade familiar ou étnica entre criminosos e populares. Em Portugal, à escala de um país em segurança na Europa, quando um crime provoca alarme social, organiza-se uma caçada a um bairro problemático. E, segundo parece, todos estão de acordo ser isso uma estratégia de segurança a adoptar sistematicamente, para evitar a queda de ministros (coitados).

Mesmo para quem nada percebe de segurança, é óbvia a revolta provocada nas populações directamente atingidas, os traumas pessoais por vezes reportados nos media, a confusão provocada entre a violência legítima e criminal, a necessidade de auto-defesa promovida junto das populações, a mistura de sentimentos legítimos e de intenções ilegítimas, a impossibilidade prática de discernir a corrupção policial (o abuso do poder, o encobrimento de criminosos protegidos, a incompetência, os serviços mafiosos) e a defesa das populações.

Esta política irresponsável e ignorante exposta aos olhos de todos, aparentemente sem reacção dos nossos representantes defensores dos direitos humanos ou do simples bom senso, já está a provocar rupturas sociais no frágil tecido nacional, enquanto a corrupção permanece fora das cogitações de segurança do Estado.

A segurança no País – tão importante … para os turistas, segundo o nosso Presidente – é um caso de estudo. Mesmo sem fazer esse estudo, aposto serem as qualidades/defeitos do povo português a maior contribuição para tal estado de coisas. A menos que se considerem serem tais qualidades inatas, próprias de um genes habitante do interior das nossas fronteiras, a procura da manutenção de tais qualidades passa por estudos sociais capazes de identificarem e valorizarem isso mesmo. Quem sabe se as operações de retaliação contra os pobres, actualmente em uso para fins políticos, não irão destruir a ingénua crendice nacional na legitimidade dos poderes de Estado?  


Insegurança, o que é? Ou as dúvidas trocadas entre um Chico-esperto e um Otário.

2008-08-28

A onda estival de criminalidade reportada pelas televisões portuguesas parece confirmar o aumento da criminalidade violenta registada no primeiro semestre. O que a onda de criminalidade não revela é o sentimento de insegurança que se vive em Portugal. Esse apenas será revelado por inquéritos de opinião.

Portugal, apesar do ano de 2008 ser mais violento, continua a ser um dos países mais seguros do mundo. E, da Europa, um dos países mais ignorantes sobre o que é a criminalidade.

Sem experiência de criminalidade, o conhecimento sobre tal fenómeno será, necessariamente, mais reduzido. No caso português esta correlação lógica é aprofundada pela falta de gosto dos portugueses pelo saber (veja-se os índices escolares e de literacia), cujas causas são sociais, isto é, decorrem das relações estabelecidas durante a história do país entre os principais sectores da sociedade portuguesa, geralmente conhecidos por ricos (ou chicos-espertos) e pobres (otários, para os amigos).

Quando os jornalistas, acusados de serem eles, através das notícias que fazem, a inventar a onda de criminalidade, procuram especialistas para coadjuvarem ou negarem a coincidência entre as notícias alarmantes (pelo menos para o governo e quem se sinta potencial vítima) e a realidade efectiva (como se as notícias fossem irreais), a ignorância fica exposta: Cândido Agra, a maior referência académica nacional na área, declara ao Diário de Notícias não haver informação disponível para se pronunciar sobre o que se possa estar a passar. Parabéns professor: cada um deve assumir as suas responsabilidades.

Será preciso saber-se de onde vem a onda de criminalidade? Obviamente, dava jeito para se poder preveni-la, combatê-la e ultrapassá-la. Quanto custa produzir essa informação? Muitos anos de estudos devidamente organizados e liberdade de acesso à informação institucional. Os custos financeiros podem ser insignificantes: os custos políticos e culturais, esses, seriam incompatíveis com o estado de coisas neste país.

Por exemplo, todos sabemos como o segredo de justiça é bofe nas mandíbulas dos acusadores, polícias e procuradores não identificados e, reconhecidamente, não identificáveis. Imagine-se, então, como seria possível guardar informação sensível, como a que diz respeito às causas da criminalidade, num Estado como este.

Nesta área, mais do que noutras, o Estado e os poderes fácticos que dele tomam conta sabem ser praticamente garantida a directa politização dos problemas: recordemo-nos dos vários ministros demitidos por não utilizarem as palavras correctas junto da comunicação social, na sequência de casos mediatizados de alguma violência durante o Verão: a actriz de telenovelas que foi roubada na auto-estrada durante a madrugada, o arrastão racista na praia de Carcavelos, os fogos florestais, agora a onda se criminalidade violenta.

Durante o Verão, na silly season, é isso que tem acontecido: o longo relaxamento do controlo político sobre a agenda mediática dá numa sobrecarga repetitiva de notícias choque, com efeitos encantatórios. A opinião publicada, todavia, não deve ser confundida com opinião pública, com o sentimento quotidiano dos portugueses. Aliás, a primeira tende a convergir e a segunda tende a divergir: pessoalmente, por exemplo, entendo ser preciso combater o crime no imediato, rapidamente (a um ritmo compatível com a produção mediática) mas, ao mesmo tempo, respeitar a dignidade das pessoas acusadas pelas polícias e pela justiça (frequentemente fora da avaliação imediatista feita pelos jornalistas de serviço).

Pelo facto de me sentir de esquerda, não posso evitar o sentimento de insegurança e até medo. Agora duvido que pessoas que se sintam de direita fiquem satisfeitas por ver mortes em directo na televisão, repetidas à náusea, ou ataques a “bairros problemáticos” e operações stop nacionais como forma de retaliação, para dispersar a atenção concentrada dos media sobre os feitos criminosos.

Todos preferiríamos ver as regras do código da estrada respeitadas sistematicamente – até pelos membros da oligarquia reinante –, e não só durante as operações stop. Todos gostaríamos de saber os processos de realojamento reavaliados racionalmente, em função dos melhores critérios conhecidos para tais operações. Quem precisa de políticas penais decorrentes de critérios economicistas, corporativos ou de protecção a criminosos sexuais contra crianças?

Naturalmente, não seremos um país de que nos possamos orgulhar de um dia para o outro. Não condenarei o atirador que abateu o meliante nem o seu chefe, mas pedirei uma actuação sistemática, em defesa dos cidadãos, da Inspecção a todos os casos de alegada violência policial contra cidadãos, também nesse caso. Elogiarei as acções policiais impeditivas de consumação de crimes, se não houver violência desproporcionada. Defenderei a liberdade dos órgãos de comunicação social para exprimirem os sentimentos que a sua vida profissional os leva a interrogar, exigindo critérios racionais, preferencialmente aos critérios partidários, nessa avaliação pública. Esperarei por movimentos sociais capazes de reclamarem o cumprimento da legalidade a respeito da criação de condições sociais para a habitação condigna e trabalho suficientemente remunerado para evitar a pobreza absoluta. Esperarei, ainda, que a luta contra a corrupção em Portugal seja capaz de melhorar as condições de transparência e acessibilidade dos processos e informações administrativas e contratuais, de modo a vir um dia a ser possível ao povo aprender a valorizar o conhecimento, sem o qual nenhuma política preventiva será possível de gizar.

Para já. resta-nos a repressão? Resta-nos hipotecar a (nossa) liberdade por alguma segurança (de outros)? Parece que sim. Quem reprime os repressores? Quem afasta de cena os corruptos e os corruptores?

Pela minha parte disponho-me a investigar as causas da nossa segurança nacional, apesar do nosso desgosto colectivo sobre o ponto a que chegámos, ao fim de quase 900 anos de história. Aliás, parece-me ser esse um desígnio nacional altamente estimulante e instrutivo para um povo dividido entre chicos-espertos e otários (pessoalmente, sinto-me bem integrado em ambos os grupos ao mesmo tempo).


O quadro político e institucional do alegado motim de Caxias

2008-08-17

Num mundo onde, segundo um recente director-geral dos serviços prisionais, a investigação de crimes é virtualmente impossível por causa da lei do silêncio, que significado terá o arrolamento de prisioneiros na lista de acusadores dos alegados cabecilhas de um motim?

Treze anos após os acontecimentos, a justiça portuguesa prepara-se para, em Março de 2009, começar um julgamento de pouco mais de duas dezenas de arguidos.

Meses volvidos sobre os acontecimentos conhecidos como o motim de Caxias, a Associação Contra a Exclusão pelo Desenvolvimento (ACED), então recém-constituída, manifestou publicamente, a pedido de alguns dos arguidos que nos contactaram, a convicção de haver interesse em “abafar” o caso por parte dos acusadores [isto é, do Estado], já que não se conheciam diligências para avançar com o processo, cujos contornos políticos eram evidentes através do envolvimento directo do governo, através do seu ministro da justiça, colocado em defeso no Hospital Prisional, perto dos acontecimentos. Manifestou também a vontade desses arguidos em que a verdade pudesse vir ao de cima. A verdade era, para eles, a provocação do motim como forma de aniquilar a luta dos presos que vinha em crescendo desde 1994, e que iria continuar, de facto, até 2001.

Pessoalmente, tomei contacto mais intenso e directo com as vidas prisionais em 1996, mas no Parlamento, quando lá estive com um grupo de pessoas portadoras de um pedido popular de debate parlamentar sobre a questão das amnistias, recentemente abolidas, digamos assim, do instrumentário político para gerir as prisões. Desde então, esta é a minha declaração de interesses, tenho seguido, como activista, as lutas pela justiça e pelo direito nas vidas prisionais, em particular no que diz respeito às garantias de liberdade de expressão a que os presos têm formalmente direito. Mais tarde, mobilizei aquilo que as lutas dos presos me ensinaram da natureza humana para desenvolver as minhas actividades profissionais, que são ensinar e investigar a nível superior as potencialidades da sociologia.

Publiquei alguns trabalhos científicos sobre as prisões e em particular sobre as prisões portuguesas, cf. http://iscte.pt/~apad/novosite2007/textorelt.html e http://iscte.pt/~apad/novosite2007/livros.html. Tenho um entendimento de como a política manipula a vida dos prisioneiros (e dos funcionários das prisões) para atingir fins que lhe são próprios e que, de resto, torna a política – surpreendentemente, para quem esteja desprevenido – um tema recorrente nas conversas prisionais.

Dadas as características institucionais das prisões, nomeadamente a sua estreita ligação com o exercício do poder de Estado, numa aliança entre o poder jurídico do lado do decreto de culpabilidade, e o poder executivo do lado da investigação dos factos, é natural que as tensões políticas se reflictam nas prisões e os conflitos prisionais, em particular os motins, se reflictam na vida política. Sobre isso, a propósito do que possa ter acontecido no alegado motim de Caxias, daremos a nossa contribuição. Mobilizaremos, para tal, factos publicamente conhecidos, desde logo o episódio da demissão forçada do Director Geral dos Serviços Prisionais, juiz Marques Ferreira, em 1995, depois de ter denunciado publicamente, através da televisão, estarem as prisões portuguesas reféns de “máfias” que as controlavam. Ameaçado de morte, segundo alegou também na televisão, ao contrário de resistir em nome da autoridade do Estado, como começou por anunciar, demitiu-se (ou foi demitido), passando o lugar a ser ocupado pelo seu vice, Dr. Celso Manata, que jamais se voltou a referir ao assunto. Pelo contrário, inaugurou uma campanha de boa imagem das prisões portuguesas, através da publicação de “Prisões em Revista” completamente irrealista e que, se não esteve na base, ajudou ao confronto entre o Ministro da Justiça, Dr. Vera Jardim, e o Provedor de Justiça, Dr. Meneres Pimentel, aquando da publicação do primeiro relatório de 1996 da Provedoria de Justiça sobre o estado calamitoso das prisões em Portugal. Em 2004, Freitas do Amaral, após todos esses anos de investimentos nas prisões, anunciava ter um plano a 12 anos com vista a tornar as prisões portugueses naquilo que se pudesse considerar “a média europeia”.

Primeira característica a registar da política nacional a respeito das prisões: abandono das mesmas à sua sorte, sem nenhum orçamento de investimentos, desde, pelo menos, a revolução democrática, em 1974, mas agora, desde os anos 80, no quadro de fortes crescimentos da população prisional, com sobrelotação do sistema, tornando inexequível – por exemplo – a determinação legal do cumprimento de pena em cela individual.

Para fazer face a esta situação, vários governos decidiram medidas especiais de amnistia com o objectivo de aliviar as cadeias. Tal política tinha um sucesso relativo, visto que em poucos meses os níveis de ocupação anteriores eram atingidos e até ultrapassados, aumentando os níveis de reincidência criminal e pressionando a nova acção de amnistia, e assim sucessivamente.

Porém, os factos políticos mais relevantes deverão ter sido os relacionados com a luta dos presos no processo das FP-25A, que mereceram a certa altura uma amnistia especial, por razões políticas. Isso causou alguma divisão no Partido Socialista e na sociedade portuguesa, e também nas prisões, onde alguns discordaram dessa concessão. Eleito Presidente da República, Jorge Sampaio decidiu terminar com a política prisional de amnistias sucessivas e, para dar o exemplo, não concedeu a tradicional amnistia sempre que um Presidente da República era eleito. Na Assembleia da República, o grupo de peticionários, a que me juntei na ocasião acima referida, era recebido por vários deputados, tendo um deles explicado que o ambiente político não era favorável à aprovação de uma tal petição. A Assembleia não desejou fazer oposição ao recém eleito Presidente.

Naturalmente, entrou-se numa fase de adaptação do sistema prisional à nova situação, tendo 1997 sido o pico mais alto não apenas no números de presos mas também no número de mortes de prisioneiros em Portugal. Como se percebe, a política tem um impacto directo nas vidas prisionais. Mas as vidas prisionais ameaçam irromper na vida política a qualquer momento.

Face à fragilidade da situação prisional, em que: a) desde 1994, por iniciativa dos activistas e militantes políticos presos, se verificaram tentativas de organização de lutas de prisioneiros em diversas cadeias, principalmente naquelas onde estavam presos com penas mais longas; b) à gestão local e sem regulação de cada estabelecimento prisional onde os poderes fácticos eram então, como provavelmente ainda hoje, mais importantes do que a cadeia de comando; c) ao fim das amnistias e à sobrelotação, a ser gerida pelo governo, alguma coisa tinha que mudar.

Disso mesmo se aperceberam os media e os jornalistas. Cumprindo a sua função em democracia, procuraram informar-se sobre o que se estava a passar nas prisões e sobre como o governo entendia dever transformar as cadeias, face às circunstâncias.

O que os media iriam encontrar, caso se interessassem pelo assunto, seria o mesmo ou pior do que aquilo que o Provedor encontrou. E, seja por necessidade de exercer os seus direitos de livre expressão, muito limitados para quem esteja preso, seja por discordarem das políticas seguidas (a amnistia às FP-25A e/ou a abolição das amnistias regulares), seja como forma de pressão na expectativa de aliviar a violência institucional endémica, muitos presos estavam interessados em fazer chegar mensagens às comunicação social. Sei disso porque ainda hoje esse é o principal objectivo da ACED.

Se os magistrados judiciais temem o contacto e a intromissão dos media nas suas actividades, imagine-se o que acontece com as prisões.

Não havendo condições de mudar, a curto prazo, a forma de administrar as prisões, acossada a sua direcção pessoalmente por “máfias que dominavam o sistema prisional”, tendo de acatar a decisão presidencial que deixaria sem alívio a pressão demográfica dentro das prisões, estando a aumentar o número de reclusos doentes, nomeadamente com doenças infecto-contagiosas, sem recursos técnicos, seja a nível administrativo, de saúde ou sequer dietéticos, que fazer?

Sem dúvida, afastar os media do caso e restringir ao máximo a liberdade de expressão e de comunicação dos reclusos. O contrário disso, procurar exprimir publicamente sentimentos ou opiniões sobre o que se passava nas prisões adquiriu, naquela circunstância em particular, um cariz político difícil de aceitar para os que entendem que a ralé da sociedade pode ser simplesmente ignorada. De facto não pode (e não deve!).

Estando alguns presos no EP de Caxias empenhados em contactar com jornalistas para fazer declarações políticas sobre a situação e reclamar melhores condições de vida – o que era essencial, especialmente na altura, quando a degradação das vidas prisionais de aprofundou em todos os indicadores conhecidos – essa terá sido, também, a oportunidade dos serviços prisionais matarem dois coelhos de uma cajadada: acabar com aquela tentativa concreta de exercício da liberdade de expressão e, ao mesmo tempo, culpabilizar os jornalistas e respectivos órgãos de comunicação social por estarem a colaborar com inimigos do regime democrático – os presos, calcule-se.

Se o alegado motim de Caxias não tiver sido um motim, poderia ter sido inventado, bastando para tal a entrada dos polícias anti-motim. A violência instalada, pelas represálias impostas a muitos presos e pelas notícias que sobre o motim se divulgaram, desta vez apenas do lado das autoridades, foram uma ajuda preciosa para distrair e afastar os jornalistas da sua missão, através da produção de um monopólio de facto de fonte de informação.

Este efeito de monopólio pode passar desapercebido ao público em geral. Mas é um efeito muito conhecido das forças da ordem. Por experiência milenar sabem que o uso da violência estigmatiza o lado perdedor e descredibiliza toda a informação que aí possa ter origem. Ao invés, do lado dos vencedores esperam-se explicações susceptíveis de legitimar o que se passou.


O Portugal fascista

"Gonçalo Amaral desfilou pela RTP reclamando-se santo. Esqueceu-se de mencionar que todos os relatórios médicos comprovam que Leonor Cipriano foi efectivamente torturada pela PJ. E que o pseudo-santo não só não impediu, como também não denunciou as torturas de que Leonor foi vítima, como ainda por cima mentiu no relatório ao MP, assinando um testemunho dizendo que assistiu Leonor a cair pelas escadas. E o gajo desfila impune, com a cumplicidade do Estado fascista, e da RTP do Estado fascista. Veja-se a diferença entre o furioso ataque jornalístico de que Marinho Pinto foi vítima no mesmo programa e pela mesma jornalista, e a complacente entrevista feita ao Gonçalo, o torturador. "

Concluia-se que o fascismo ainda mora entre nós, nas nossas mentes e também nas nossas instituições democratizadas. De facto, não é possível evitar tais pensamentos. Como é possível tolerá-los praticamente sem reacção?


A venalidade e a justiça em Portugal

2008-07-16

Há pessoas admiráveis. Uma delas é, de momento, o Sr. Bastonário da Ordem dos Advogados. Um advogado à antiga, que diz o que pensa, sem temor.

Dos advogados que dão o corpo ao manifesto pelos seus constituintes ouvimos falar no antigo regime, em particular nos Tribunais Plenários. Gente humilde mas firme, culta mas solidária, informada mas sem preconceitos. Desses advogados temos apenas a memória. Tínhamos, até que Marinho Pinto apareceu a reclamar o património da reivindicação de justiça para os casos concretos e para o País.

É preciso entender que foram os advogados que deram voz à voz que já todos conhecíamos, não apenas das colunas dos jornais mas também das posições enquanto presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados. Os advogados humildes querem ser firmes – que bela notícia. Informados, querem afastar os preconceitos – que bom. Mas como acontece que tal cultura ainda não é solidária, ainda não é sensível no dia a dia?

Uma das explicações consta da recentíssima carta do Bastonário aos seus colegas – peçam, como eu fiz, a um advogado que lhes envie por email a carta e leiam-na: ela diz-nos respeito a todos. Diz o Bastonário que desde a entrada de Portugal na CEE a Ordem se tornou um centro privado de formação de advogados a granel, para dar honorários aos amigos dos tachos que se sentaram à volta da mesa, e que agora reclamam “Aqui D´El Rei!” que nos estão a tirar privilégios, nomeadamente de tomarem lugar no Conselho Geral onde se discutem as políticas da Ordem.

Fica claro como a Ordem se tornou num mini politécnico com direitos sobre os candidatos a advogados, sem controlo de nenhuma tutela, e com resultados catastróficos para a justiça em Portugal. Quem diga que o Bastonário só ataca Juízes, engana-se: o Bastonário quer, sobretudo, atacar advogados tachistas e venais.

Assim outros dirigentes de outros sectores de actividade, em Portugal, tivessem a sabedoria e a firmeza para purgar dos lugares onde tenham responsabilidades as perversidades que todos sabemos terem sido o resultado de apropriações indevidas de recursos injectados no país via fundos comunitários. Depois desta carta aos advogados, a Ordem dos Advogados só pode ficar melhor. Podem estar, disso precisa o país, reunidas as condições para a emergência de novos protagonistas forenses, lá onde a venalidade possa ser substituída pela moralidade.


Humanizar as prisões?

2008-06-27

O ministro da justiça anunciou (mais uma vez) que também as prisões vão ser alvo de modernização. As prisões de que nos fala são as que desde 1996 ainda não conseguiram acabar com os baldes “higiénicos” nas celas, cuja abolição estava prevista para o fim do ano passado e agora está prevista para o fim do ano … 12 anos depois do seu primeiro anúncio.

Com um novo modelo de negócio, vender as prisões situadas em territórios urbanizáveis e fazer (sempre) cimento em larga escala em terrenos baratos, a ineficiência deverá não ser tão implacável. Daí o empenho do Sr. Ministro em aparecer em público a falar de prisões, quando normalmente o que manda dizer é que todas as queixas e denuncias são investigadas – sem se atrever a dizer que o código do segredo impede, sistematicamente, burocraticamente, amedrontadamente, qualquer conclusão útil para evitar o que recorrentemente ocorre nas prisões portuguesas. Neste caso (huf!) o código do segredo ainda não estará instalado: as prisões vão ser construídas de raiz e, finalmente, de alguma coisa é possível falar.

Mas falar de humanização não é hipócrita? Quando o Estado – os diversos governos solidariamente desde 2001 – adoptou uma política de segurança (tão eficientes quanto a abolição dos dejectos em baldes) para evitar crimes dentro das cadeias, lançando mão de processos ilegais, como são as Alas de Segurança e os regimes conhecidos como Guantanamo português em Monsanto (onde há guardas especializados em meterem as mãos nos corpos dos presos: com que cheiro chegarão a casa?), porque lhe terá dado agora para as humanidades? Pior do que isso: como se pode falar de humanização quando o que de facto está planeado é o inverso: são economias de escala, concentração de altas quantidades de presos, reduzindo o número de prisões, em situações … concentracionárias.

A experiência de tais situações no passado ficou registada no terror que incute a simples menção da palavra.

Não seria preferível que o Ministério da Justiça pugnasse por fazer cumprir a lei penitenciária, em vez da lei do cimento?


O sonho da inadaptação

2008-05-05

Não costumo tomar atenção ao que me lembro dos sonhos que tive. E sempre me fez confusão aqueles que dão importância a isso, sabendo que sonhamos muito mais do que somos capaz de nos lembrar e lembramo-nos de imagens diferentes daquelas que sonhamos. Seria como pedir uma opinião sobre um filme a porteiro de cinema de um complexo com muitas salas a servir.

Não foi o caso, desta vez. O sonho, ele próprio, se me impôs. Sonhava que estava num grande escritório a que retornara recentemente (poderia ser, portanto, qualquer dos empregos que tive até hoje, excepto a universidade). Era segunda-feira, como é de facto hoje, e tinha (outra vez) de me meter num buraco em que os ombros só cabiam se os encolhesse para ter acesso ao meu posto de trabalho (ou de colaboração, como hoje mais se usa dizer).

Decidi tomar uma atitude e dizer aos colegas em volta não estar disposto a passar a vida a meter-me num buraco. Um deles, que segui, logo se dispôs a ir procurar o chefe para lhe pôr o problema. Abriu uma porta e dirigiu-se a um jardim suspenso, melhor dito: uma horta urbana no topo do edifício, onde um camponês tomava conta dos seus rebentos vegetais. Percebi que não deveria ficar a observar e voltei para ao pé do buraco e aguardei. Pouco tempo depois, principalmente tendo em conta que o camponês que me apareceu estava impecavelmente vestido com um fato completo, um homem muito pequeno aproximou-se de mim.

Tão pequeno era que me pus de cócoras para falar com ele. Imperturbável, com o braço direito sobre um corrimão, como fazem alguns automobilistas na sua janela, mas, neste caso, do lado do pendura, dirigiu-se-me a palavra numa frase lapidar: “Estive a meditar no seu caso e verifico que levanta muitos problemas. Devo concluir pela sua inadaptação ao lugar?”.

Por acaso não pensei no novo código de trabalho – só agora, que estou a escrever, isso me passou pela cabeça. Pensei em mostrar-lhe o buraco para ele ver com os próprios olhos – como se já não o tivesse visto. Aí o sonho terminou abruptamente como quando sonhamos que vamos morrer. Foi aí que percebi o sonho: a cantora pergunta paradoxalmente “what´s love got to do with it?”. O meu sonho perguntava: o que é que os factos e a razão têm a ver com isso? Apenas a humilhação conta.

No dia anterior tinha escrito sobre a indiferença dos media portugueses às denúncias de mau funcionamento da justiça, incluindo alegações de tortura judicialmente acolhidas tratadas como indiferente à persecução de processos judiciais com provas obtidas nessas condições. Tinha escrito sobre a cumplicidade dos media nesse processo, vendendo personagens criminosos que encantam o público e tornam os media interessados nessas condenações, incapazes de voltarem a trás e pôr em causa as suas próprias convicções, feitas em torno da venda de histórias afinal ficcionadas, com a colaboração da justiça instituída.

Dias antes tinha preparado uma irónica tomada de posição no meu departamento contra o discurso único, a irresponsabilidade generalizada, as estratégias defensivas quando estamos encostados à nossa área a jogar uma final em que estamos a perder (mas alguns contam ganhar na secretaria e outros preferem não exagerar no desgaste físico).

Lembrei-me também do tempo que em finalmente pude jogar nos seniores, meus heróis, e me explicaram que não podia correr tão depressa porque assim me isolava no meio dos adversários.

Acordei a pensar no significado do sonho e a lembrar-me dos estudos sobre inadaptação nas prisões. Lembrei-me ainda da denúncia que fiz, faz anos, de um caso de censura académica por razões directamente políticas partidárias – sobre um trabalho meu – a que ninguém com responsabilidades institucionais, por razões diversas, entendeu dar importância. Pus-me a pensar se não terei sido cúmplice disso mesmo ao evitar começar aos gritos ou passar a denúncia a outros níveis de tutela?

Para mim, na altura, foi uma revelação: não tinha ideia de que isso pudesse funcionar assim. Esfriei as relações pessoais com alguns colegas (mas curiosamente não com todos os directamente envolvidos no acto de censura, que foram muitos) e passei a estar avisado. Foi tudo o que fiz. Tinha consciência, como tenho hoje, do destino que a minha avó me avisava estar feito para quem se mete na “política”, para quem questione as práticas instituídas e, por via disso, os poderes mandantes dos buracos e de quem neles aceite trabalhar, ameaçados de inaptidão se não aceitarem a situação.

É uma versão dos tormentos kafkianos das condenações à loucura dos dissidentes soviéticos. Condenações enraizadas – como é hoje evidente – no espírito do povo, nas espinhas dobradas, uma a uma, perante a indiferença e o medo generalizados, a pedir algozes na direcção de tais processos, em nome da perenidade das instituições e da ignorância dos princípios naturais de sã convivência e solidariedade. Para inglês ver e português torcer.  


Contra o Acordo Ortográfico

2008-05-05

Pois é... Singular que a defesa pública da Língua Portuguesa se faça sob a promoção de um apelido Romeno. Não haveria sequer um Costa? Um Silva? Um Dias? É a doce Roménia que sentirá a falta desta Língua?... Mas porquê? Para que serve hoje tal Língua? (É a Língua de Sócrates e Cavaco e em todo o espaço de uns teóricos duzentos milhões só houve um Nobel da Literatura e mesmo esse não consegue viver cá e escreve habitualmente em Castelhano no El País (porque também não há propriamente jornais).

Defesa da Língua... (Por nostalgia?)... A minha Língua materna é aquela em que a liberdade de falar, criar e discutir me sejam dadas. E todas ma oferecem, excepto esta. Quatrocentos processos judiciais a alvejar a liberdade de palavra no foro (!) e milhares de processos disciplinares com o mesmo escopo e quantas dezenas ou centenas de processos a alvejar a liberdadede imprensa?  

Morra a Língua imprestável! Arranquem-lhe os acentos, façam-na aqui tão grotesca quanto o são os poderes decisórios do país da Casa Pia. Alarmam-se uns porque a população vai deixar de saber escrever... Mas a população não escreve. Aliás a população nem sequer lê. Nem parecendo que nisto, alguma vez, os poderes à escala do sítio tenham visto alguma coisa de inquietante.

Porque não haveria a terra dos cágados de ser a terra dos cagados? (Abaixo da alma de homens nada convém à Dignidade Humana, tanto dá, portanto, que sejam cágados como cagados)... Há aqui alguma distinção relevante a fazer entre coisa frigida e coisa frígida? 

Aos trinta por cento de europeus neste território que querem (comprovadamente) ser espanhóis, a Hispânia oferece-lhes o Castelhano; para os hesitantes, há a variante Galaica e para os homens com alma de cágado ou de cagado há a esperança salvadora da Sharia e a Nobreza do Àrabe. São Línguas com pujante Literatura, vivas porque Línguas onde se cria. Quanto à Língua de Portugal já nem vale o argumento geo-político:  Moçambique integra o espaço político anglófono, a Guiné integra a comunidade dos países francófonos (e têm toda a razão, estes). Falhando hoje em tudo na asquerosa vida, a Língua de Portugal deveria ao menos acertar no momento da sua morte. O Brasil impõe?... Porque não haveria de impor? A Língua é do Brasil. Não é dele a imprensa relevante da Língua? Não é dele a Liberdade que na Língua cabe?

Quanto ao gesto da Senhora Buescu ele parece-me fuoarte bine. São sempre belos os gestos de defesa das causas perdidas. Respeito-a a ela. Não à causa. O linguarejar autóctone merece bem a morte. Morra a língua das minutas dos eunucos do palácio. Língua dos bordeis de órfãos. Língua da padralhada dos pedómanos. Língua de gente que quer fugir e realmente foge (com excelentes motivos)... Como se pode  fugir com tal Língua atrás? Arranquem-lhe os acentos, matem-lhe o nervo das conjugações reflexas, anulem-lhe os pilares das consoantes surdas. Língua de gente achatada, deve ser achatada. E quem nisso não couber, já aqui não cabia.

Rebente tal Língua: Pum!  

por José Preto


Parabéns Hélder Costa.

4 de Maio de 2008

Na noite de 25 de Abril de 2008 a televisão pública passou um programa de variedades organizado no dia anterior (não fosse haver algum incidente censurável) pela associação 25 de Abril. Gostei de ver a diversidade e quantidade de expressões culturais persistentes em Portugal no campo da música, apesar da repressão a que têm estado sujeitos. Mas gostei especialmente dos bonecos que deram vida aos curtos textos de Hélder Costa. O arrepio da assistência ao ver-se retratada até se sentiu cá em casa, a kilómetros de distância e no dia seguinte. Foi um toque no nervo.

Numa conferência de imprensa organizada pela ACED, uma semana depois das comemorações do 34º aniversário do 25 de Abril e no dia da (falta de) liberdade de imprensa, quatro juristas e um criminólogo referiram-se, de modos diversos, a propósito de casos mediáticos de desaparecimentos de crianças, ao modo conspirativo como se fazem as investigações criminais e a justiça em Portugal. Ao ponto de torturas poderem ser admitidas em processos de condenação e da liberdade de expressão em geral, e dos advogados em especial, estar condicionada de modo antagónico ao que é determinado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.

Estiveram presentes as televisões privadas e outros órgãos de comunicação social. Não viram na ênfase na discussão dos princípios fundamentais da regulação de um estado de direito nada de relevante para ser noticiado. Será por não terem percebido o que foi dito? O conteúdo foi previamente anunciado – ainda está no site de anúncio http://iscte.pt/~apad/ACED_juristas/maddie.html: não foram ao engano! Ou será por estarem condicionados na sua liberdade? Já será proibido falar publicamente de tortura em Portugal?

No início do Verão de 2007 a ACED recebeu anúncio de torturas na cadeia de Monsanto, recém inaugurada. Estranhou-se o silêncio dos media, que poderiam servir - precisamente – para evitar os abuso de poder. Mas o silêncio persistiu mesmo quando familiares de presos se dispuseram a dar a cara às câmaras na tentativa de aliviar a situação dos seus parentes. Mesmo quando a Procuradoria Geral da República entendeu por bem abrir um inquérito sobre as alegações de tortura em Portugal nenhum meio de comunicação fez disso uma notícia.

Porquê? O que se passa em Portugal?

Será como o Hélder Costa escreveu para as comemorações televisivas da revolução: os antigos fascistas andam agora todos satisfeitos nas suas modernizadas roupagens? E não será que os antigos fascistas somos nós todos juntos? E isso não mete nojo? E isso não é perigoso?


O Horror ao Direito

2008-04-21

Portugal não reúne a condições institucionais mínimas para ser considerado um estado de direito. Essa a declaração subscrita por algumas figuras públicas, sem reacção ou alarme social.

Todos concordamos que o estado da justiça portuguesa é um dos principais obstáculos à modernização do país. Pessoalmente, o que mais me preocupa é o facto de que estas frases terem consequências muito directas na vida de muitas pessoas. Quantas das que integram os 40% de portugueses pobres não são injustiçadas? Quantas doenças e óbitos não decorrem da falta de recursos de justiça? Quanto do medo e da inacção cívica que habita Portugal não são estimulados pela ausência de tutela do direito?

O que me mobiliza aqui não é o que mais me preocupa. É, antes, a criação de uma situação de impossibilidade de se cumprir o Direito com que fui atingido pessoalmente e que passo a analisar, brevemente.

Em 2004 ficou claro, após 7 anos de experiência de actividade associativa de comunicação pública de situações atentatórias dos direitos de reclusos, haver uma forte probabilidade de existir impunidade ilegítima mas institucionalmente concertada em casos de crimes graves, como homicídios, nas prisões portuguesas.

Dos fundamentos dessa conclusão quis-se dar conhecimento aos órgãos de soberania, à Procuradoria Geral da República, órgão responsável pela averiguação deste tipo de crimes, e aos portugueses, através da comunicação social, conforme prática estabelecida pela associação na sua actividade cívica.

A esse respeito representantes associativos foram recebidos na Assembleia da República e na Procuradoria-geral da República, que registaram, de modos diversos, as nossas comunicações.

Das declarações à comunicação social, o sindicato dos guardas prisionais tirou elementos de acusação contra mim, acompanhado mais tarde pelo Ministério Público. Acusam ter havido intenção de criar um clima entre muros propício a aumentar os riscos de exercício da função profissional e de ofender a instituição, através do corpo de guardas. Ver tudo AQUI

A juíza de instrução entendeu ser essa uma questão válida para ser apreciada em tribunal.

O problema é saber se assim é. E se assim for, como pode acontecer estar o juiz de tal tribunal condicionado na sua decisão pela circunstância de, ao condenar, poder estar a entregar à pena de morte extra-judicial o condenado precisamente por ter denunciado a possibilidade de ser essa a situação nas prisões portuguesas.

Imagine-se, para efeito da demonstração, haver matéria de justificação para condenação do arguido. Poderá o tribunal, caberá ao tribunal, garantir que, na prisão, a morte ou a doença grave não irá atingir o condenado – precisamente por ter denunciado isso mesmo? Mais especificamente, poderá o tribunal assegurar não existir nenhuma senha persecutória contra o acusado dentro das prisões?

Vários casos históricos mostram não apenas a incapacidade como a irresponsabilidade do Estado para proteger quem, sob a sua tutela de segurança, estima poder estar a ser vítima de perseguição e de ameaças de morte (exemplos de memória como os de Dionísio Alberto Oriola, assassinado em 1998, Augusto Morgado Fernandes assassinado em 2001, Marco Santos assassinado em 2002, Hélder Oliveira, violado e falecido em consequência dos maus tratos na prisão em 2004).

No caso vertente, a ironia da acusação é a possibilidade de encobrir a mesma intenção que serve de acusação. A alguém lembraria serem as denúncias de crimes ocorridos em prisões uma forma de induzir violência espontânea contra os guardas prisionais, a não ser alguém que tenha experiência do valor e da eficácia de tais processos indutivos? Tais acusadores serão eles – sindicato dos guardas em conluio com a instituição prisional, de que se reclama representante – idóneos para acolher o arguido condenado nos seus recintos, sem gerar tal situação a tentação de indução de violência contra o denunciante, ora reduzido a criminoso?

Dito de forma mais chã: que tratamento penitenciário se pode esperar ser oferecido a um condenado por organizar a luta social contra todos e cada um dos guardas prisionais? Na prática, a acusação o que diz ao tribunal é: entregue, respeitosamente, o pecador ao braço secular, eles próprios. Gente séria, direito garantido. Ou como diria um antigo dirigente sindical de má memória, não são meninos de coro. Mas precisam de autorização para actuarem.

Ora, tal autorização foi-lhes dada pelo ministério público e pelo tribunal de instrução. No debate instrutório, o próprio advogado de acusação sentiu necessidade de explicar que não pediria prisão efectiva do arguido (de outro modo, é evidente, fragilizaria mais a moralidade, já de si esguia, do processo). Desejaria apenas um correctivo simbólico, na esperança de os tribunais poderem ter algum ascendente moral sobre a consciência da pessoa acusada.

Esperança vã, claro, já que nem ele próprio oferece ao tribunal outra coisa que não seja a convicção da compreensão do conluio sistematicamente observável a olho nu pelos portugueses entre a administração – e em especial os serviços de segurança – e os diversos órgãos de soberania, incluindo os tribunais, mesmo à margem da lei. Mera presunção de radical impunidade dos servidores do Estado policial, porque servidor do Estado também é o arguido, mas de outra parte do Estado.

Desejaria ter o apoio equivalente dos órgãos representativos da minha corporação na defesa do Direito e da Liberdade (nomeadamente da liberdade de expressão). Mas esse não é o caso, nem a mim me ocorreria comprometer a minha corporação (ainda que por óptimos motivos) na minha defesa dum processo acusatório (judicial ou não) contra mim próprio.

Agora, também não posso oferecer a nenhum juiz qualquer credibilidade ou autoridade quando aceita julgar a possibilidade de me entregar, liminar e literalmente, nas mãos ensanguentadas de instituições cúmplices e encobridoras de situações tidas por inaceitáveis pelo próprio Estado. Tais declarações foram proferidas por um antigo director geral dos serviços prisionais, sucessor de um que foi assassinado e ele próprio ameaçado de morte por ter denunciado as máfias que dominavam (e deixaram de dominar?) as prisões. Foram proferidas em relatório pela Provedoria de Justiça. Foram escritas num relatório de Reforma Prisional dirigido por Freitas do Amaral. Faz anos, e ainda por muitos anos assim será, as prisões portuguesas são uma vergonha para o país.

A questão é: como será possível reformá-las num país avesso ao direito?

DECLARAÇÃO DE REACÇÃO DO MEU DEFENSOR: BEM HAJA!

Resposta a um comentário amigo:

Quanto a poder estar a assumir previamente a posição de condenado, o que penso é que arrisco "apenas" uma multa, embora a pena admissível seja prisão efectiva. E, naturalmente, pode o caso acabar encerrado sem condenação. O que me permitirá tomar a ofensiva, a partir daí (o que de resto faço desde já).

A questão, como a coloca o meu defensor, e como eu a retomo à minha maneira, é a de que o sentido do próprio processo - que já passou por várias instâncias jurisdicionais, incluindo juízes de direito - é contra Direito.

E até comprometedor do bom senso de justiça. Não podem as instituições judiciais permitir pressões extra judiciais nos tribunais, como acaba por ser o caso. Não podem as decisões judiciais integrar tais pressões nas suas próprias decisões, como é o caso, por reflexos corporativos, como se costuma dizer.

O Direito já falhou, independentemente dos resultados do processo. Mais do que a minha defesa pessoal, o que está em causa é a necessidade de construir Direito em Portugal.


Estratégias e estratagemas

2008-03-17

Ao revelarmos a aceleração das mudanças sociais nas sociedades actuais, como podemos deixar de atender às aceleradas transformações da própria sociologia?

Mergulhado num processo de aceleração da mudança imposto por via político-administrativa, que escolheu a redução da democracia como estratégia para obrigar as instituições a submeterem-se a lideranças mais voluntaristas, o departamento não pode deixar de sentir o balanço. É, por isso, salutar procurar organizar uma estratégia legitimada, tão adequada aos tempos de incerteza quanto possível. Como o deveremos fazer, no imediato? a) cavalgando as ideias da reforma, antecipando já o futuro de elitização administrada da condução dos destinos do departamento? b) com respeito formal e substantivo do modus operandi legítimo neste momento, independentemente do venha a ficar decidido no fim do processo?

Não subscrevo a ideia triunfalista dos que já se imaginam num tempo em que ditarão pessoalmente a lei, sem prestação de contas. Dos que entendem estar a chegar o tempo do leite e do mel (para as suas próprias intenções e actividades), bastando para tal atravessar o purgatório dos restos de democracia ineficiente que ainda existe. Fazer estratégias não é desenhar uma ponte entre este e o próximo anos lectivos. Fazer prospectiva não é viver de imediato o sonho de futuro. Acompanhar as transformações sociais aceleradas não é só (nem principalmente) projectar no futuro próximo as tendências verificadas nas estatísticas sobre o passado.

A nossa vontade pessoal (ou colectiva, se a soubermos forjar) terá maior probabilidade de influenciar o futuro quanto mais realista for, quanto menos saltarmos etapas para um futuro incerto, quanto mais resistirmos à vertigem da superstição, mesmo se esta é alegadamente fundada cientificamente. Quem pense ser capaz de estabilizar a sociologia o suficiente para lhe fixar uma definição válida para todos e para os próximos anos, evidentemente só pode suportar-se em crenças extra-científicas. Quem pense ser detentor de alguma verdade, em vez de se considerar pesquisador da verdade, engana-se. Donde não virá mal ao mundo, desde que não nos enganemos todos juntos, a reboque de tais megalomanias. O futuro é para a frente, não para trás.

A liberdade individual, pelo menos o respeito por ela e pelo seu exercício por parte de quem esteja disposto a usá-la, em cada momento, não é apenas um imperativo moral dos cientistas modernos: é também uma condição de resistência e persistência das actividades científicas e da ciência, cuja produtividade é muito aleatória, mas será nula na ausência de liberdade. Cientistas que não prezam a liberdade podem ser repugnantes mas não são problema maior. Instituições que pretendam ser científicas sem assegurarem a liberdade dos cientistas, não existem. Instituições científicas insensíveis à defesa da liberdade individual dos seus membros são suicidárias.

 

Os sucessos do passado não asseguram o futuro. Segundo as intenções da reforma em curso, não deveriam sequer assegurar o futuro imediato – o que parece um pouco radical para o ritmo de planeamento possível em actividades científicas. A excelência exige toda a atenção e, segundo parece, depende mais do respeito dos orçamentos e das estatísticas do que da criatividade e imaginação científicas.

Como o futuro é incerto, dentro e fora do departamento, dentro e fora do ISCTE, a que poderemos nós agarrar-nos para organizar um plano estratégico? A extraordinária resposta dos partidários internos da reforma político-administrativa em curso é “o emprego”! Os partidários da política governamental para a instabilidade no emprego – para alegadamente promover o mérito – são partidários de políticas defensivas do emprego no departamento. Como compreender ou explicar isto? Como explicar a proposta de um semi-plano estratégico administrativamente urgente em Novembro que persiste por aprovar em Abril? Como explicar as profundas alterações sofridas pelo documento entre Novembro e Dezembro – primeiro excludente de parte importante dos maiores e menores projectos já tradicionalmente instalados no departamento e, depois, aberto a tais projectos, passando, por exemplo, de um programa doutoral para vários?

Quem quiser que responda. Pela minha parte quero afirmar continuar disponível para discutir com os colegas interessados estratégias de futuro para o departamento e em particular para a sociologia – discussão essa para a qual preciso de companhia, sem o que será sempre um monólogo. Prefiro pensar uma estratégia proactiva de ampliação do espectro de actividades (e de saídas profissionais potenciais) da sociologia, a longo prazo, capaz de envolver e articular interesses variados, em função de um processo voluntário de auto-mobilização assistida pelos órgãos do departamento, incluindo colegas do departamento e colegas externos ao departamento, incluindo docentes-investigadores de diversas áreas do saber, dentro e fora das ciências sociais.

À ideia de tomar conta de um mercado de assistentes sociais já existente e em crescimento contraponho a conquista de espaços de manobra nos vastos e importantes sectores da saúde e da justiça – para além dos sectores de actividade já assediados pela sociologia, como sejam, por exemplo, os media e as comunicações, a organização do território e o planeamento, as políticas sociais e a acção social – sectores esses em profunda transformação, em crise de crescimento, em situação de urgente reorganização e reconceptualização, com peso político e social incomparável relativamente à proposta defensiva contraposta.

Não se trata de controlar as iniciativas dos colegas, como dizem as propostas avançadas pela direcção do departamento, mas de proporcionar amplas perspectivas de desenvolvimento, cooperação e mobilização para cursos, investigações e debates científicos a coordenar e promover pelo departamento nos próximos anos, até que se esgotem as potencialidades da estratégia acordada, na mira de lançar a sociologia para uma nova etapa histórica, a realizar na primeira metade do século XXI, de maior centralidade e intervenção social e profissional.

O mundo está em acelerada transformação. Mas há quem insista em fazer querer que sabe o que é isso da sociologia, a verdadeira, a justa, a progressista. Imagina-a, eventualmente, como uma máquina fotográfica (analógica?) a tirar fotografias a um ecrã de uma sala de cinema, para, em laboratório, ampliar ao máximo e, assim, conseguir descortinar as rugas do tecido por detrás das imagens e anunciar, finalmente, a realidade social ao mundo de ignaros. Por mim prefiro uma sociologia capaz de navegar ao sabor das marés mas com um destino bem identificado e concertado de pesquisa sobre o que seja central nas sociedades actuais.


Alternativas de vida

2008-03-09

O Sócrates não vai demitir a ministra? Pedida a demissão na rua, o primeiro-ministro, segundo alguns, não o vai fazer. Porque é teimoso, porque não se pode deixar condicionar pela rua, porque não pode abandonar o reformismo. Porque não deve dar mais força aos partidos que gostam de cavalgar as lutas populares.

Isso é irrelevante para o destino do país, na minha modesta opinião. O que tenho curiosidade em saber é se os movimentos de professores, fora dos partidos e dos sindicatos, vão conseguir afirmar-se e desenvolver-se. É essa possibilidade a boa notícia destes últimos dias.

É claro que o mundo político vai andar agitado pelas considerações político-sindicais de adaptação às novas circunstâncias: o povo, através dos professores, deu sinais de não tolerar bem os ataques à democracia perpetrados por este governo, na prática e nas palavras. A essência do Povo mudou muito nestas últimas décadas. Além dos trabalhadores dos transportes, são os profissionais dos serviços sociais – hospitais e escolas, nomeadamente – e da justiça, quem encarna a soberania popular – os direitos. A revolta é evidente, como o revelam o relatório da SEDES e o impacto político que tiveram as conclusões desse estudo. Não é por acaso que a revolta se manifesta lá, no sector onde a interpretação da política reformista do governo foi mais intensa e profunda. Os trabalhadores que sempre se dispuseram a, reforma após reforma, a colaborar com todas as ordens, sem autonomia e sem voz, desta vez foram estridentes. Todos e em público, independentemente das suas convicções (porque elas nunca foram importantes ou relevantes) gritaram a uma só voz, muitas palavras de ordem, sob o redil dos sindicatos, por quem não morrem de amores. Ao inverso. Os movimentos de professores que começaram a emergir como cogumelos apresentaram-se, em geral, críticos das prioridades sindicais.

O país precisa de gente empenhada e clarividente para ser capaz de reconstruir o seu destino multissecular, num contexto altamente complexo e pouco favorável. Precisa dos mais novos, como dos mais velhos. Ora, quando a maioria dos professores nunca saiu da escola, onde ingressaram aos seis anos e onde se tornaram professores, onde construíram um reino de liberdade condicionada – não podem sair das salas de aula nem ensinar fora dos currículos – a produzir crianças e jovens sem ideologia, sem palavras nem convicções, dependentes de opiniões de caudilhos tecnocratas de quem esperam orientações, como robots, a revolta das últimas semanas só pode ser salutar. Um exemplo – o melhor exemplo – para os seus alunos. Uma esperança de liberdade. Liberdade pessoal, individual, sem tutelas outras do que a consciência desenvolvida por cada um.

Não se pode esperar da classe dos professores, após 50 anos de obscurantismo e 35 anos amesquinhantes da criatividade e da liberdade, clarividência. Pode-se esperar, entretanto, alguma dignidade: que reclamem da sociedade e dos governantes respeito e uma ponta de educação cívica no trato com os seus mestres. Fizeram-no de modo espectacular. O que trocou as voltas ao governo: se a sua política fosse pró-sindicatos não poderiam esperar-se melhores resultados. O que coloca um desafio aos professores: como sacudir as tenazes do jogo democrático formal vigente – entre ministério e sindicatos em amplexo político-partidário perverso – e assumir nas mãos de cada um e de todos os professores a responsabilidade militante de formar cidadãos (crianças, jovens e adultos) livres. Livres dentro de si mesmos, confiantes nas respectivas potencialidades pessoais, conscientes da necessidade de acção para as testar, na certeza de que mesmo os erros serão apreciados, e não serão motivo de punição, como actualmente acontece.

É neste aspecto que a política de educação de Sócrates falhou rotundamente – e ainda bem. Os professores não estão dispostos a verem cerceadas as possibilidades de tomarem iniciativas próprias, ideológicas, empenhadas, contra e a favor do que entenderem ser um tributo à liberdade prometida pelos regimes ocidentais. Nem com as visitas da polícia. Correndo, portanto, os riscos inerentes. É disso mesmo que Portugal precisa, para se afirmar como gente digna dos nossos antepassados. Infelizmente, contra o governo. A bem dizer, não foi nem será a primeira vez. “É a vida!”


Nem autoritarismo, nem social autoritarismo: independência pessoal!

2008-03-04

No sábado, os professores do país apresentam-se em Lisboa, numa manifestação democrática, quando nas escolas – não por acaso – a democracia está a ser minguada. O Presidente já pediu contenção – avisado pela experiência carnavalesca da sua governação – e Fátima Campos Ferreira pediu mediação internacional.

Não é para menos: face às más notícias da nossa inserção na globalização e nas políticas europeias, já que não dá jeito reformar o Estado, quis-se reformar a sociedade. Pôs-se à bulha a população com os sindicatos, com os corpos especiais do Estado e com os funcionários em geral – os “privilegiados” – como nuvem de fumo para reduzir direitos na saúde, na educação, na segurança social, no acesso à justiça, nas garantias de liberdade e de privacidade. Os mais velhos derem o exemplo, e obrigaram o ministro da saúde, cheio de razão, a ir-se embora e entregar a pasta a uma colega crítica, que entretanto vai continuar a política que criticava. Os professores são a segunda leva de reclamação de fundo.

O bloqueio partidário da política, está feita a prova, não impede a emergência da política. Dá-lhe é uma urgência e uma irracionalidade que os países desenvolvidos aprenderam a tratar através de processos democráticos. Infelizmente, não é o caso em Portugal.

A democracia formal tem sido tomada como garantida e natural. Esta governação mostrou como as derivas anti-democráticas (anti-sindicais, pró-corrupção, anti-direitos-humanos, por exemplo) podem emergir de onde menos se espera, do partido das liberdades. É certo que os portugueses se deixaram embalar pela leveza do ser europeu e pelos brandos costumes, que são afinal um espírito matreiro de subordinação. É certo que também os professores preferiram adoptar a política da “nossa política é o trabalho”. É certo que os sindicatos são um espelho de contrapoder, com os mesmos vícios de exclusão da discussão e da participação política dos partidos, a quem se referem. Também é certo que a Igreja de Roma se opôs à formação cívica para todos nas escolas e a formação pessoal e social – como a formação de adultos – jamais vingou em Portugal. Por isso, nem nas nossas reuniões de condomínios é possível acordar decisões razoáveis e sensatas, a menos que haja algum deputado ou outra pessoa importante na vizinhança em quem se possa descarregar essa responsabilidade.

Na hora da escolha, isso também se verificou, os portugueses escolheram a “evolução na continuidade” política desta república em crise, apesar dos votos independentes. O governo atirou-se contra as promessas eleitorais, na direcção da única ideologia bem estruturada – o neo-liberalismo – que também é a mais fácil: façam-se uns cálculos, avance-se a todo o vapor, que ninguém está preparado para reclamar.

Ora no sábado, dia 8 de Março, vai haver reclamações. É certo que lhe falta organização. Vai levar tempo a ter corpo. Mas, sem dúvida, os professores estão a mostrar o caminho: utilizam o espaço público com nervo, em nome da sua dignidade e da dignidade do país. É das melhores notícias ultimamente: é o equivalente ao 16 de Março de 1974. A brigada do reumático é o conjunto de todos aqueles que não compreendem o relatório da Sedes (“Portugal e o Futuro” dos dias de hoje). Quando chegará o êxodo dos reformados de luxo para o Brasil?


Parabéns ao Sr. Carlos César

Segundo a agência Lusa de dia 9 de Fev 2008, o Presidente do Governo Regional dos Açores admitiu a possibilidade de a base das Lajes ter sido utilizada para transporte de prisioneiros clandestinos e torturados pelas autoridades norte-americanas. admitiu que tal possibilidade deveria ser dirimida diplomaticamente junto dos responsáveis norte-americanos.

http://noticias.sapo.pt/lusa/artigo/5c26c938d9cc3826f83c7d.html

Esta posição é uma alteração significativa e um avanço relativamente ao passado, quando o presidente brincou com a sua obrigação de vigilância sobre o respeito pelos direito humanos no território nacional, alegando serem visões místicas as denúncias da deputada europeia do seu partido, Ana Gomes.

ver AQUI posição pública da ACED sobre esta mesma questão, um ano atrás.

Mas é preciso ir mais longe. E encontrar formas de investigar por conta própria o que se passou realmente e evitar que se repitam casos equivalentes no futuro, nomeadamente preparando as autoridades portuguesas em geral para serem diligentes quando ocorra alguma suspeita, em vez de assobiarem para o ar e porem vendas nos olhos.


Vemos, ouvimos e lemos!

2008-02-01

Link para discurso do Bastonário na abertura do Ano Judicial 2008

Porque é que o Bastonário dos Advogados provocou escândalo ao dizer o que vinha dizendo faz anos – atenção à gravidade e impunidade da corrupção instalada no Estado ao mais alto nível –, repetindo aquilo que muitos outros antes dele já disseram, coisa banal tanto nos noticiários como nos blogs e emails?

Um dos argumentos mais significativos é este: “No lugar que ocupa perde-se liberdade e há coisas que não se podem dizer!”. A este argumento corresponde, ao nível do senso-comum, um outro que corre assim: “Ele há-de calar-se quando lhe derem o que ele quer!”. É assim que estamos de solidariedade institucional: nada em público, tudo em privado?

O programa sufragado pelos advogados determina-se numa campanha nacional contra a corrupção. Contra a coisa e principalmente contra a complacência perante a coisa. Tema que aflige os portugueses faz anos, que tornou conhecido o casal Maria José Morgado/Saldanha Sanches e que foi ponto forte nas últimas campanhas eleitorais, sem nenhuma consequência prática, a não ser a promoção do Eng. Cravinho para um Banco internacional. A comunicação social tem procurado, temerosamente – porque sabe que é perigoso mas também chamativo –, promover protagonistas desta causa e, por isso, também desta vez, deu destaque às declarações e tomadas de posição públicas do Bastonário. O que é novo são os ataques de cara destapada de alguns moralistas armados em paladinos da democracia, obviamente interessados na matéria e até nervosos. Acusam o estilo agressivo do Bastonário com agressividade. Invectivam as invectivas. Pretendem liquidar o mensageiro. A liberdade que se dane!

Num estudo recente, ainda por publicar, tive oportunidade de verificar – a partir de opiniões produzidas pelos portugueses a respeito do assunto – ser a maior característica da mente de cada um, quando interpelada, a confusão e falta de clareza e coerência na opinião. O estudo das ténues tendências com maior coerência distinguiu quatro: os neo-liberais (para quem o problema se resolverá com menos Estado), os conservadores (para quem a defesa do Estado impede de reconhecer a existência de corrupção, mesmo contra a maioria e o bom-senso: cá está), os securitários (para quem será a imposição da moral pela força a melhor solução) e os reguladores (para quem a luta contra a corrupção é política e judicial ao mesmo tempo).

Marinho Pinto, o “nosso” Bastonário, apela ao corpo dos advogados – os que o elegeram e os outros, assim como aos cidadãos seus potenciais patrocinados – para tomarem partido pelas tendências reguladoras, que já existem mas são frágeis. Pedidos de mais policiamento, próprios das ideologias securitárias, são muito vulgares e facilmente mobilizáveis por todos os populismos. Quando acaba a gritaria, como sabemos de experiência feita, apesar de Portugal ser o país da Europa com maior proporção de policias entre a população, espera-nos novo escândalo que volta a revelar o estrutural abandono dos excluídos e a radical falta de prevenção dos riscos. Atitudes de avestruz, negando a evidência, boicotando avaliações, tornando as regras procedimentais em plasticina ao serviço dos autoritarismos locais ou centrais, próprias do conservadorismo nacional, tacanho, irracional e ignaro, são as vivências que se projectam na votação televisiva de Salazar como a personalidade mais admirada pelos tele-ouvintes, e também no desgosto dos críticos por isso continuar a acontecer, mais de 30 anos após o fim do Estado Novo. O neo-liberalismo, claro, embora seja também minoritário como convicção, é politicamente dominante na UE e também em Portugal, onde os melhores alunos podem ser recompensados com carreiras políticas internacionais, seja ao serviço da burocracia não-democrática de Bruxelas, seja ao serviço de estratégias empresariais globais.

Como diz o Bastonário, a sua denúncia é política, ideológica, contra as perversidades do sistema. E é por isso que se tornou um escândalo. O seu discurso é um catalizador de vontades não apenas dos advogados – que bem precisam de nervo e sentido de serviço do Direito e dos seus valores primeiros, como a Liberdade e a Igualdade – mas de todos os sectores da sociedade portuguesa mobilizável para definir qual das quatro tendências ideológicas prevalecerá nos próximos anos. Caso tenho sucesso – faço votos para que assim aconteça – a luta contra a corrupção, mas também a correcção da reorganização do Estado e das decisões sobre obras públicas, por exemplo, deixarão de ser verbos de encher. O tribunal de contas será respeitado e as leis também se aplicarão aos partidos. Percebe-se que é chato.


Liberdade académica ou ninho de cucos

2007-12-3

A racionalização dos recursos do departamento pode ser entendida de dois modos, substantiva e praticamente contraditórios entre si.

a) os recursos são administrativos e burocráticos, concentrados na direcção do departamento,  nas direcções dos centros de investigação associados e nos outros órgãos executivos do ISCTE, a cujo funcionamento e controlo os colegas se devem adaptar;

b) os recursos são cognitivos e de iniciativa científica, acumulados nos diversos grupos de pesquisa, cujas sinergias podem e devem ser organizadas de modo a concretizar ao máximo as respectivas potencialidades singulares e as possibilidades de cooperação entre si, para prestígio e proveito colectivos.

O que tem vingado historicamente tem sido o entendimento b), embora os escassos recursos administrativos tenham tendência para serem apropriados pelos titulares dos cargos de direcção (como é normal, ainda que não seja desejável).

O que está em causa actualmente é saber se as transformações impostas pelo processo de Bolonha irão ser utilizadas para maximizar o controlo dos cargos de direcção sobre as actividades científicas de terceiros, em função de critérios particulares de quem ocupe o poder, a pretexto de funcionalidades administrativas e economicistas (“escassez de recursos”). Ou se, pelo contrário, o trabalho de luta contra o feudalismo académico será feito em nome da liberdade, por exemplo utilizando a ideologia dos jogos de soma positiva. Nomeadamente organizando o debate científico intra e interdisciplinar em função das realidades sociais que devem ser chamadas – não apenas para efeitos palacianos – a participar na vida académica, em concreto através do reconhecimento, regulamentação e estímulo de práticas pro-activas de intervenção dos académicos na vida social exterior à academia.

Pessoalmente tenho razões, infelizmente bem actuais, para pensar poder estar a ocorrer uma deriva administrativista no ISCTE, como dei a conhecer. Quando as questões de funcionalidade administrativa são interpretadas em termos de relações pessoais, está-se a escamotear, na prática, a centralidade cognitiva do trabalho académico. Quando se defende, como critério de racionalização, a independência e autonomia dos poderes executivos relativamente ao escrutínio dos docentes/investigadores, é no mesmo sentido que se caminha. Nenhum vanguardismo académico auto-declarado se expressa no campo das concepções administrativas – nomeadamente limitando as competências de auto-regulação e de emissão opinião de pessoas e órgãos em nome da racionalidade (de tipo a)). Este tipo de tendências não animam nem estimularão a vida académica do departamento. Nem serão eficazes na desfeudalização das práticas.

O modo de sair da situação da segregação em quintas, em que cada um se defende sem tempo para prestar contas detalhadas e em tempo real – como entendo ser desejável, ao modo das avaliações on going, como se praticam nas melhores universidades do mundo –, não deve ser por força administrativa imposta através de apelos de urgência. Sob pena de se institucionalizar e agravar o sistema de apartheid ideológico no departamento e no ISCTE, que deve ser corrigido. Não é copiando a estratégica centralista de pacificação de Luís XIV que se induz a liberdade criativa necessária ao desenvolvimento científico. Ao invés: é fazendo universidade, isto é desideologizando (e despartidarizando) as diferentes abordagens da vida académica e cooperando sob o princípio da liberdade de palavra, independentemente do acordo que mereça a cada um o sentido das palavras do outro.

Os desacordos não devem ser motivo para desqualificações de corredor, em surdina, e pasto de intrigas. Ao contrário: devem ser sinais de estímulo para a organização de oportunidades de se expressarem livremente, de modo organizado e desdramatizado, que é a maneira de se desenvolverem naturalmente saudáveis espíritos competitivos, compatíveis com funcionamentos sinergéticos e solidariedades institucionais.

Essa cooperação é, de resto, indispensável para enfrentarmos (inevitavelmente juntos) os novos processos de avaliação que nos serão impostos, sejam eles formais ou de mercado.


A liberdade e o sindicalismo

2007-11-16

O pai do liberalismo, Tocqueville, ganhou muito prestígio por ter antecipado intelectualmente o que viria a acontecer no século seguinte. Qual Nostrodamus, notou como – nos tempos em que as paixões democráticas na Europa napoleónica ansiavam por igualdade já! – a liberdade poderia ser negligenciada e preterida, desde que o despotismo (populismo, diríamos nós actualmente) parecesse sintonizar-se com as ânsias populares.

Esta oposição entre os valores modernos afirmados pela Revolução Francesa, entre a igualdade e a liberdade, vieram, de facto, a dominar todo o século XX, opondo a União Soviética aos EUA. Nesse tempo, uma das maiores contradições do regime do socialismo real foram as limitações impostas às organizações sindicais dos trabalhadores, alegadamente sustentáculos políticos dos regimes políticos vigentes. Ao contrário, no Ocidente, os sindicatos gozaram de amplas liberdades e de um estatuto de parceiros sociais autónomos mas integrados no aparelho de Estado, como forma de institucionalizar as pressões socializantes, as tendências igualitárias, que continuavam a fazer-se sentir muitas dezenas de anos após a Revolução e em face das ideologias políticas oriundas do mundo soviético.

Com o fim da Guerra Fria as conjunturas mudaram de carácter. Com a convicção activa do fim da história, do fim das ideologias, ainda que não corresponda à realidade, com a simples convicção de que a liberdade não só foi um valor vencedor da luta fratricida entre duas versões da modernidade mas também é irreversível, chegou-se à grande mentira: a guerra pelo petróleo apresentou-se como uma guerra de civilização (a Fé e o Império, lembram-se?) e a luta anti-sindical levada a cabo inclusive por partidos com o nome de socialistas é travada em nome da democracia.

Como diria um político conhecido, podemos errar, torturar, matar. Mas nós investigamos e assumimos publicamente os nossos próprios erros (enquanto formos sociedades abertas, é preciso acrescentar). Ora, será que continuamos a sê-lo? Será que, por exemplo, o princípio da igualdade perante a lei está ainda em vigor, nos EUA e em Portugal? Será que os checks and balances tradicionalmente utilizados na luta social, nomeadamente nos mercados de trabalho estão a funcionar? Será que os tribunais de trabalho fazem justiça aos trabalhadores quando estes se confrontam com as empresas que os contrataram? E quando as empresas são muito poderosas mesmo, se nem os Estados as conseguem controlar – como no caso das deslocalizações – como é que os trabalhadores se podem defender?

A globalização traz consigo problemas de deslegitimação do Estado, em particular no aspecto em que às empresas é, na prática, reconhecido um estatuto de impunidade prática – que, de resto, justifica os paraísos fiscais organizados pelos próprios Estados. Nestas circunstâncias, quando os Estados têm por base de apoio aquelas pessoas que menos possibilidade têm de se deslocalizar – os trabalhadores – como se dá o caso de estarem a ser as organizações sindicais aquelas que estão a ser alvo de desqualificação política por parte de governos a braços com consolidações orçamentais decorrentes das limitações que tenham de cobrar impostos? É pura preguiça dos governantes, que não querem pagar os custos de uma sociedade aberta? Ou será a predominância da tão lucrativa vontade da mistura de interesses públicos e interesses privados? Ou as duas coisas ao mesmo tempo?

Os sindicatos não são organizações perfeitas e muitos deles deixam muito a desejar quanto ao seu funcionamento de representação democrática. É verdade a sua fragilização nas últimas décadas. Mas não haja ilusões: os sindicatos são aquilo que deles fazemos: governantes, patronato e sindicalizados. Menorizar os sindicatos é trabalhar para agudizar os conflitos sociais, numa altura em que a desorganização, desorientação e desmoralização da sociedade portuguesa são evidentes. A quem servirá tal política?


A Casa Pia globalizada

2007-11-09

Os portugueses emocionaram-se com o facto de figuras públicas serem capazes de cometer crimes que, na boa consciência popular, só pessoas vis, desqualificadas, mal formadas e mal-educadas seriam capazes de cometer. Imaginaram ser tais crimes circunscritos, apesar de tudo, a alguns seres perversos acusados em processos judiciais. Assim bastaria castigá-los para que tudo pudesse voltar ao normal.

O que intriga é como é que os castigos podem demorar tanto, quando não há sequer redes incriminadas (como se aventou no princípio haver, e como parece que continua a haver suspeitas fundadas de haver, aparentemente organizadas pelos mesmos de sempre), porque os arguidos têm dinheiro suficiente para contratar bons advogados, sem que o tribunal, aparentemente, se dê conta que tamanha demora não apenas intimida as vítimas e testemunhas, como acaba por negar valor a qualquer decisão judicial, seja de condenação seja de absolvição. Porque razão os superiores interesses da justiça instituída se vergam perante os interesses (legítimos) de defesa dos arguidos com mais recursos? Será isso um bom sinal ou um mau sinal?

Não há respostas fáceis e, por isso mesmo, a existência de conspirações – que é real, pública e notória, mesmo que não sejamos capazes de lhes definir os contornos – não explica tudo. Há que procurar mais fundo: na própria natureza humana e na natureza das nossas sociedades.

Recentemente a actualidade trouxe à baila o caso de uma organização humanitária (?) que terá raptado mais de uma centena de crianças a seus pais no Tchade, país centro-africano de colonização francesa, para os trazer para a Europa como se fossem crianças órfãs vítima das guerras genocidas que ocorrem naquela região do mundo. A grande preocupação do presidente francês, a quem o primeiro-ministro espanhol agradeceu publicamente, foi subtrair à justiça local os indiciados de um tal crime, por imaginar – com razão? – obter com tal atitude uma imagem de dureza e de capacidade de actuação (moral?) em França e no mundo. O grande argumento de defesa da organização acusada é o “amadorismo” da acção dos seus membros no terreno. Que quer dizer isto? Que os que foram apanhados são operacionais inocentes ao modo dos funcionários nazis que organizaram e realizam burocraticamente o Holocausto em nome das ordens recebidas dos seus legítimos chefes? E, nesse caso, a que ordens ou políticas gerais obedecem? Será desse modo que se pretende rejuvenescer a demografia europeia assegurando a exclusão de culturas estranhas e exóticas que podem trazer os imigrantes? Haverá um plano para isso? Sarcozy está a par desse plano?

A incapacidade de indignação das oposições políticas e morais nas sociedades europeias ao status quo secreto e fora da lei, do facto consumado e da dispensa de lei para os nossos amigos versus o estado de sítio para os inimigos, estabelecida primeiro nos EUA e agora seguida pela França e pela Europa, é um mau sintoma do estado das nossas sociedades, desorientadas e exaustas de correr atrás de coisa nenhuma. A moral da guerra sempre impediu que se envolvessem mulheres, crianças e velhos na violência bélica. O século XX, com o desfile de genocídios, mostrou que a civilização moderna passa frequentemente ao lado da moral. Será que o século XXI não pode mudar isto?


Finalmente a normalidade

2007-10-12

Por palavras semelhantes àquelas proferidas pela actual Provedora da Casa Pia o Provedor ao tempo do rebentamento do escândalo da descoberta de uma indústria de abusos sexuais foi exonerado de funções. Disse a senhora Provedora fazer o que lhe é possível – e não mais – para evitar abusos e, por isso, entende que todas as denúncias públicas de situações de que não tenha conhecimento apenas perturbam o melhor funcionamento da instituição. Isto no mesmo dia em que a organização dos representantes dos funcionários da mesma instituição vem denunciar o inferno que terá sido o período de vigência da Provedora escolhida para apanhar com o escândalo.

Quando rebentou o escândalo público – ou melhor: quando foram dados à estampa nomes conhecidos envolvidos pelo Ministério Público no assunto – houve quem reclamasse da demência geral, da excitação desproporcionada, do moralismo e do judicialismo.

Pessoalmente acompanho estas últimas duas queixas, mas não as primeiras. A indignação, a repugnância, a revolta são salutares perante a ignomínia e o abuso. Exigem reflexão normativa e moral, o que é uma coisa boa. Sem dogmas e preconceitos: aí estou de acordo. Entregar a coisa a especialistas (magistrados e advogados), ainda por cima quando toda a gente sabe que são incapazes, por sistema, de realizar os objectivos da sua missão colectiva, um dos pilares (em falta) da democracia, foi um erro grave das massas de portugueses que ficaram enojados e desorientados durante muitos meses. O pior que se fez foi resumir o assunto a um processo judicial, omitindo responsabilidades políticas que, principalmente à esquerda (a direita tem mais pudor, parece), se pretendem branquear, como se fosse coisa boa esconder a lama debaixo da alcatifa. (claro que a alcatifa cheira mal!).

Os escândalos são óptimas oportunidades para conhecermos melhor a natureza das coisas e das pessoas, incluindo nós próprios, e testar a capacidade de intervenção das instituições morais e judiciais. Nesse sentido, que lições se pode dizer que aprendemos colectivamente? Na boca da actual Provedora, absolutamente nada. Os mais altos responsáveis (acompanhados pelos representantes dos funcionários) da Casa Pia – após um interregno manifestamente doloroso para eles (são insensíveis a dores alheias) – querem a normalidade, uma esponja sobre assuntos desagradáveis cuja memória ou recordatória impede que continuem a sua “missão educativa”(?).

Ele houve psicólogos que se inquietaram com o sofrimento das crianças e foram perseguidos por isso (recebam a minha solidariedade!). Ele houve psicólogos empenhados em explicar que acontece nas vidas plebeias momentos de excitação descontrolada, mas que essas coisas sempre acabam por acalmar. Não houve perseguição destes últimos, até porque parece que têm razão. Os senhores ainda são senhores e os meninos e meninas da Casa Pia continuam desprotegidos.


O extraordinário início do ano

2007-09-25

Na segunda aula tenho quinze alunos, o mesmo número que da primeira. Entre todos apenas três estiveram nas duas aulas. Isso não é novidade. Faz anos que vou reparando que os alunos se revezam de modo a evitarem a maçada das aulas o mais que podem sem, todavia, boicotarem completamente a possibilidade de haver aula. Ao mesmo tempo, as condições de ensino pioram, concretamente o tamanho das turmas aumenta, sem que isso se reflicta no trabalho docente: afinal mantemos o volume da audiência. Talvez facilite é o planeamento de desdobramento de horários entre os alunos.

A presença dos alunos nas aulas, muitos nos queixamos, parece inerte. É realmente difícil estabelecer algum diálogo com eles. Há, evidentemente, também alguma inépcia pedagógica da nossa parte. Os docentes universitários imaginam eventualmente que os jovens já acompanham raciocínios básicos – para nós – quando ninguém os ensinou – a eles. A minha questão é esta: de que serve queixarmo-nos da inércia ou apelarmos à participação dos alunos nas aulas, de que serve tentarmos melhorar as nossas práticas pedagógicas, se os alunos estão principalmente preocupados em fazer corpo presente nas aulas apenas o suficiente para fingirem – connosco, docentes – que elas funcionam?

Esta questão é tanto mais importante quanto estamos a viver uma profunda reforma no ensino superior. Até agora temos assumido que a maturidade dos estudantes do universitário era um dado e que os resultados académicos eram da sua responsabilidade pessoal, não dos docentes ou da escola. A partir da reforma instalou-se um sistema oposto, tão estúpido quanto o precedente digo eu. O desempenho da escola é medido em sucesso escolar (despachar alunos entre os anos) e no prazer que os alunos tenham tido no convívio com o professor – que por sua vez responsabiliza estes últimos pelo sucesso da escola, através de uns questionários aos alunos sobre o valor dos professores. O futuro dirá se esta descrição é demasiado simplista – afinal, dirão alguns, há avaliações internacionais da qualidade do ensino. A ver vamos, digo eu.

Até agora a reforma significou, no meu caso, encontrar formas de evitar o abandalhamento visivelmente crescente da vivência das aulas: converseta é praticamente inelutável. Entradas tardias e saídas precoces tornaram-se vulgares e recorrentes, às vezes praticadas em acumulação pelo mesmo aluno(a). Os sinais de olhos que três ou quatro anos atrás eram suficientes para acabar uma conversa mais prolongada são actualmente imperceptíveis para os alunos. Avisos explícitos ou mesmo ralhetes têm efeito por dez minutos.

Claro que os alunos têm o direito de não gostar do que lhes é oferecido. Têm é, digo eu, a obrigação de reclamar explicita e racionalmente contra o que entendem estar mal, para que seja possível melhorar. Não é isso uma reforma? Mas será isso que lhes é pedido? Ou o facto de estarem a ser usados como armas para responsabilizar os professores pelas (más) qualidades do ensino (ficando as gestões e as políticas com os eventuais méritos) não lhes estimulará a irresponsabilidade, prática de resto anteriormente já conhecida nos graus de ensino não superiores? Quem irá acabar por ganhar com isto?

Pela minha parte, e isso é extraordinário, escrevi um regime disciplinar para as minhas aulas. Jamais pensei em vir um dia a fazê-lo. Mas ele aí está.

No fim da aula uma das três alunas que esteve nas duas aulas e que, eventualmente por coincidência, interveio numa aula de exposição levantado questões sobre o sentido do que dizia, tendo em conta matérias aprendidas no ano anterior, desculpou-se dizendo que é o entusiasmo pelos assuntos e não outra coisa qualquer que a levou a interpelar-me. “Os meus colegas acham que o faço para dar nas vistas, mas não é. Vou tentar conter-me!”. Por email, uma aluna do ano passado pediu-me uma opinião e um conselho. Trocámos três ou quatro emails. Por fim pediu-me desculpa e para não interpretar o contacto como um pedido de uma cunha.

A reforma será capaz de libertar e prestigiar os alunos que querem aprender ou não será. O caminho que está a levar, pelos vistos, não mudou o essencial.


A quem serve o alarme público contra a diminuição dos tempo de prisão preventiva?

2007-09-16

As mesmas entidades sociais manifestaram-se publicamente, nas últimas semanas, em defesa da presunção de inocência de companheiros formalmente acusados de tortura e apelando ao alarme público contra políticas governamentais que libertam presos preventivos, presumíveis inocentes acusados de crimes graves.

Este tipo de atitudes é compreensível e condenável. A civilização resulta do esforço pessoal e institucional para criticar as tendências naturais da espécie humana, e é a essa luz que as condenações devem ser usadas e dirigidas. Dos órgãos de justiça exige-se, a este respeito, maior preparação e sensibilidade que ao comum dos cidadãos, meros beneficiários do ambiente seguro possibilitado pelos progressos da civilização. Os membros concretos de cada instituição, porém, são fundamentalmente pessoas como as outras, sujeitas às mesmas necessidades de todos nós: defender os amigos e desconsiderar, eventualmente injustamente, tudo o que as possa incomodar. Onde acontece a institucionalização da aplicação sistemática de dois pesos e duas medidas, o perdão para os colegas e a condenação de terceiros com problemas judiciais, está a desenvolver-se uma sociedade de castas – os intocáveis, neste caso a classe alta de que se reclamam parte integrante, e os outros. Os essencialmente bons e o eixo do mal.

Os processos Casa Pia e Meddie mostraram a todos os portugueses como os casos de justiça são, uns mais que outros, politicamente manipulados, às vezes até partidariamente manipulados, para os dois lados, por forças obscuras que não dão a cara. Sobre quem tenha a razão – ou se existe uma razão pura – isso não foi objecto de consenso. Mesmo quem declara frequentemente acreditar na justiça – na esperança de que o processo lhe corra de feição – mais parece fazê-lo sem convicção. Isso é natural, compreensível, mas também não é útil. A justiça não é uma questão de fé. A lei portuguesa, por exemplo, admite não penalizar as tentativas de manipulação dos arguidos – por isso se diz ser esse um estatuto privilegiado para quem seja chamado a colaborar com a justiça; por isso as pessoas comuns não gostam de ser testemunhas na polícia ou nos tribunais, pois sentem, com razão, estarem a ser usadas para fins desconhecidos e eventualmente contraditórios com o seu próprio sentido de justiça: o suspeito não pode ser perseguido se em sua defesa mentir, desviar as atenções da justiça, ao contrário da testemunha. E merece juridicamente o estatuto de presumivelmente inocente até à condenação definitiva. Precisamente porque se reconhece a ocorrência de erros judiciais e a necessidade de dar meios técnicos de defesa a todos, culpados de facto e inocentes.

Durante o processo, é trabalho da acusação inventar os cenários de inculpação para organizar as provas susceptíveis de convencerem os juízes da culpabilidade dos suspeitos. O sucesso dos trabalhos resume-se à condenação, ainda que seja de inocentes – o que também acontece, naturalmente, mesmo sem intenção da acusação. Compreende-se, mais uma vez, que os profissionais da acusação sejam particularmente afectados pela sua própria idiossincrasia. Devem representar com persistência a perspectiva acusatória. Devem, por isso, estar especialmente bem formados. Devem ter formação permanentemente actualizada sobre justiça. É mau sinal para Portugal quando as posições vernáculas das tendências securitárias produzidas pelos ossos do ofício vêm a lume em bruto.

Não há, evidentemente, nenhum perigo para a segurança pública significativamente maior do que haveria antes, depois da libertação de mais de uma centena de presos preventivos, acusados de crimes (de outra forma não se poderia justificar a sua prisão). De facto, todos os anos, um número semelhante de presos preventivos sai das cadeias portuguesas, depois de meses de clausura e amesquinhamento, inocentados ou à espera da conclusão de processos. Muitos outros saem condenados à pena de prisão já cumprida em prisão preventiva. Diz-se ser assim para evitar os números de injustiças reconhecidas oficialmente aumente ainda mais. Porque se dá o caso de aqueles que agora se queixam dos perigos nunca tenha reparado anteriormente nos mesmíssimos perigos também  eles decorrentes das intoleráveis demoras dos processos?

As taxas de criminalidade (mesmo depois dos aumentos recentes) em Portugal são das mais baixas da Europa e do Mundo. As taxas de encarceramento são das mais altas da Europa, principalmente pelo tempo exagerado (e socialmente contraproducente, tanto do ponto de vista financeiro e como da reincidência criminal) da duração das penas efectivas e das prisões preventivas. De facto, há evidência científica interpretada no sentido de afirmar serem as penas de prisão, e as práticas institucionais de criminalização, uma das principais fontes de insegurança nas sociedades modernas, Tudo se passa como se as sociedades fossem capturadas pelos seus próprios protectores. Quem nos protege dos nossos protectores? Costuma perguntar-se, com razão.

No contexto global actual é indispensável tomar posição contra o partido do ódio e do alarme social provocador de medo, instigador da violência. O mundo não é feito por bons e maus: somos todos feitos da mesma massa, mesmo quando aquilo que vemos ao espelho seja repugnante, ignóbil e merecedor da nossa acção condenatória. Não devemos cair na posição mimética daqueles que condenamos – eis o nosso maior desafio civilizacional. Em Portugal e no mundo.


Estado de Direito ressuscitado

2007-08-20

Por estes dias terá ressuscitado o Estado de Direito em Portugal. Qual Fénix, para defender a propriedade privada e os trangénicos, ei-lo reaparecido depois de ter sido avistado moribundo em luta contra a estupidez, a pedofilia e a corrupção.

Quando a banca faz arredondamentos ilegalmente a seu favor, aproveitando o conhecimento que tem das primeiras técnicas de crime informático e esbulhando milhões de portugueses, o Estado de Direito serve para procurar evitar que os bancos - em crise, como se sabe - devolvam o que roubaram. Quando um grupo organizado fora dos partidos usa os meios que (não) tem para fazer propaganda política, os que jamais souberam clarificar como são financiados os partidos chegam-se ao "Estado de Direito" para condenar tal concorrência. Do mesmo modo que a prometida livre circulação de bens e recursos financeiros num mundo globalizado, teoricamente para todos, por via de regulamentos acordados entre os que têm as armas, acaba por ter apenas um sentido, dos pobres para os ricos, que se tornam mais opulentos com a crise dos primeiros.

PS: recebi mensagens com informações úteis para quem queira entender o que está em causa AQUI e AQUI e AQUI


António Balbino Caldeira

2007-07-21

António Balbino Caldeira alimenta um blog contra o sistema.

Impressionado com o processo Casa Pia e as (ir)responsabilidades do Estado neste caso foi levado a procurar respostas. E a incomodar muita gente poderosa.

Pelo que foi tratado de forma intolerável e impune, que julgávamos improvável depois da PIDE ter sido denunciada.

Sobre isso vale a pena ler http://doportugalprofundo.blogspot.com/

Tal correspondência sugere a possibilidade de haver processo causa-efeito, que apontaria para a confirmação da sua tese principal: a pedofilia não é apenas uma excrescência do sistema. É um dos cancros do sistema.  

Quando surgiram dúvidas públicas sobre o percurso “académico” de Sócrates, investigou o assunto. Persistentemente. Passados alguns meses tinha conseguido fundamentar as suas dúvidas na incapacidade de respostas do primeiro-ministro. A ponto de ser secundado pelos meios de comunicação de referência, permanecendo actualmente a questão nebulosa e alvo de processos judiciais para eventual esclarecimento – se alguma vez vier a ser possível tal coisa.

O anúncio público da iniciativa política do PM de instaurar um processo-crime contra António Balbino Caldeira é um acto de instrumentalização política do poder judiciário que não é próprio de um democrata com princípios. Como têm chamado a atenção vários sectores sociais, a democracia e a liberdade que lhe é suporte, estão em causa nesta fase da vida nacional. O medo dos advogados instigado institucionalmente, o medo dos empresários em participarem na vida pública, como veio a lume a propósito da contestação à Ota, o medo de existir do José Gil. O sebastianismo estimulado pelo voyeurismo televisivo sobre os supostos radicais, que tem promovido o salazarismo e o neo-nazismo na praça pública.

É melhor prepararmo-nos para lutar pela Liberdade.


 

A censura do chefe da oposição

2007-04-19 

A novela da atribulada vida académica do primeiro-ministro está a ser secundada por um debate despoletado pela acusação de falha de carácter que lhe lançou o chefe da oposição. E se foi preciso os jornais insistirem na tecla da vida académica de Sócrates para que o líder do PSD levantasse a questão de carácter dos políticos – como o tinha feito anteriormente a respeito das eleições autárquicas, para dentro do seu partido – talvez isso venha a valer a pena, isto é, possa ter consequências práticas na política portuguesa.[1]

Ouvi dizer na televisão que a questão do carácter dos políticos não deveria estar a escrutínio público ou político. O que me parece inaceitável em democracia é que os dois argumentos (a censura do debate e a censura do político) sejam alegados conjuntamente. Das duas uma: o debate está na praça e quem não gosta abstém-se; se não se abstêm, que sentido faz estar no debate para dizer que o debate não deve existir, sem explicar porquê?

Este problema tem a ver, nitidamente, com a prática dos órgãos de comunicação social de destacarem políticos para o seu serviço (como acontece com outras empresas do campo financeiro, energético, etc.), para animarem fora de comentários políticos. Como tem a ver com a qualidade da democracia portuguesa, autista e cada vez mais isolada da vida a que falta cidadania. Quando quem comenta não o faz desinteressadamente, produz-se uma enorme confusão entre a tentativa de fazer pedagogia – fazer opinião para povos livres e democráticos, bem formados – e a tentativa de controlo da opinião pública e publicada. Esta rede de conspirações entre partidos e meios de comunicação social faz e desfaz primeiros-ministros e governos, gerando a instabilidade política que emerge da falsa estabilidade produzida nas urnas pela mesma cumplicidade da comunicação social e os políticos, denunciada entre outros por Santana Lopes.[2] Vivemos em Portugal a instabilidade política estabilizada e pouco democrática.

Voltámos à noção de que o povo português não está preparado para assistir e participar em certas discussões, como as do carácter dos políticos, que por isso devem ser censuradas? Ou o que é democrático é organizar a discussão política de forma racional, ampla, participada e inteligível, em liberdade? A promiscuidade entre poder político e direcção dos media, que alegadamente deveria ser combatida pela privatização dos meios de comunicação, deve ser combatida ou auto-regulada?

Pessoalmente entendo a censura da censura de carácter como uma atitude política que pode até ser racional. Mas isso mesmo, a sua racionalidade, precisa de ser melhor debatida, entre comentadores independentes dos partidos/media de preferência, independentemente das suas preferências partidárias.

É racional evitar a demagogia e é fundamental combater o ódio na política. Mas se assim é, como se dá o caso dos cartazes no Marquês? Como fica de pé a mensagem de ódio – entretanto combatida pela polícia judiciária – e é apeada a mensagem humorística? Porque é que os tribunais não estão expressamente mandatados, nestes casos e noutros de emissão de mensagens sociais de ódio, para intervirem preventiva e pedagogicamente? Porque é que os cidadãos justamente indignados e disponíveis para agir civicamente contra o ódio estão democraticamente desarmados, à mercê da disponibilidade dos partidos políticos ou dos dirigentes das instituições – Câmaras Municipais, Procurador Geral da República – para lidarem com a serpente ainda no ovo? É que se os tribunais tivessem poderes para acolher de forma expedita petições contra o ódio e em defesa da democracia, também no caso das conspirações contra o primeiro-ministro certamente teria havido uma ou mais iniciativas de cidadãos a argumentar o inverso do que acredito: não é legítimo aos media levantar o problema de carácter do primeiro-ministro a propósito da vida académica, pelo menos enquanto este não sair de funções. Se um tribunal pudesse pronunciar-se sobre esta questão, qualquer decisão que tivesse tomado, desde que fundamentada na lei e na constituição – que é democrática – seria um acto político útil e de primeira relevância. A falta de capacidade dos sistema judicial em intervir politicamente lá onde faz falta à democracia, como é manifestamente o caso, por desconfiança e/ou inépcia dos partidos, sequiosos de poder, de todo o poder, faz com que Portugal esteja nesta situação ridícula na véspera de uma presidência da União Europeia, desnecessária e antecipadamente frouxa e desacreditada, qualquer que venha a ser a evolução dos acontecimentos.

O que parece vir dar razão aos que entendem que é melhor acabar com a liberdade para que os políticos possam, ainda mais tranquilamente, prosseguir os seus negócios que faz deste país ao mesmo tempo o mais pobre e o mais desigual e o mais economicamente comprometido da União. Mas de facto é o inverso que se passa: os partidos devem ser capazes de seguir o exemplo dos militares de Abril e, democraticamente, abrir mão dos seus poderes exagerados e imorais e entregá-los ao povo, nomeadamente formando um sistema de justiça que possa ser uma instância de recurso às fraquezas de carácter dos responsáveis políticos – que se manifestou em José Sócrates sob a soberba de insistir, sabe-se lá porquê, em assegurar ao mundo (ou a si mesmo?) o valor das suas credenciais académicas, manifestamente tão miseráveis como os indicadores de literacia do país.

O que falta ao povo português é liberdade. Falta-lhe um sistema judiciário que defenda, como lhe cumpre mas não é capaz, a liberdade de todos e de cada um, incluindo o governo e o seu primeiro-ministro. Isto porque os partidos portugueses (todos, incluindo os que estão fora do arco do poder) se entendem como sorvedouros de poderes públicos e privados à custa da inibição de órgãos de soberania deficitários, como é manifestamente a judicatura e como passou a ser também, a meio do mandato, o governo.

É claro que a felicidade não está à nossa esquina. A persistente e cada vez mais profunda crise da justiça, que o Presidente da República significativa e surpreendentemente resolveu desvalorizar, deixou os tribunais a pender mais ainda para a tese da ditadura e do ódio, como o demonstram os extraordinários acórdãos legitimadores da violência doméstica e da censura jornalística em caso de eventual ofensa à honra de entidades poderosas com a verdade (outra vez a verdade no caminho dos poderosos que pretendem manter-se irresponsáveis). A falta de preparação e de auto-responsabilização das magistraturas portuguesas e a recorrente chocante irracionalidade do sistema judicial e das decisões que profere, possível pela manutenção persistente de uma situação que atravessa e mina toda a II República, não se ultrapassa de um dia para o outro, nem se ultrapassa subtraindo competências a este pilar da democracia política. Nem é ultrapassada por políticos que desvalorizam a moral e a ética, como gostam de fazer os economistas mas não devem fazer os políticos.

Voltando à vaca fria, como é possível que, no mesmo governo, um ministro despeça um assessor por ter usado um fax do seu gabinete para enviar uma mensagem pessoal para a comunicação social, por alegada incompatibilidade de mistura de funções públicas e actividades privadas, e outro ministro alegar comportamento exemplar do primeiro-ministro que usou timbres e fax públicos para trocar correspondência com um influente professor de uma universidade durante a realização do seu curso superior? Como é possível quem apoie o primeiro-ministro vir censurar a censura de carácter do seu primeiro, sem se ter indignado – ainda que menos intensamente – com a atitude do ministro que despediu o assessor? Há aqui, de facto, questões de equidade e balanços morais e éticos que são relevantes de ver esclarecidos: haverá duas classes de cidadãos em Portugal? Os assessores cujo comportamento ético escape ao controlo dos ministros podem tornar-se primeiros-ministros impolutos? Os últimos ficam autorizados em partilhar livremente e a seu bel-prazer os recursos naturais e institucionais do país e os primeiros devem ser mantidos envergonhados e condenados, excluídos do debate político, reduzidos a fiéis funcionários? Não é por isso que alguns concidadãos perguntam, cada vez mais abertamente, que no tempo do Salazar, como agora, onde está a diferença? Não será melhor para a democracia afirmar, confirmar e defender essa diferença? Não será de dar prioridade ao combate ao medo, à auto-censura e à desmobilização de operadores judiciários, jornalistas e cidadãos perante o poder desmesurado da partidarite portuguesa?

[1] Não tenho vida partidária e não sinto nem jamais senti qualquer simpatia pelo PSD, com ou sem PPD. O contrário é mais certo.

[1] O Santana jamais deveria ter sido empossado primeiro-ministro. Foi-o por razões que o Presidente Sampaio jamais explicou, eventualmente por ser inexplicável também para ele.